Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O abate sem debate do CFJ

O projeto do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) é um cadáver insepulto. Em editoriais, colunas, artigos e reportagens, foi antes abatido do que debatido pela mídia.

As manifestações que, no limite, beiraram o jornalismo pitbull prevaleceram sobre aquelas que, embora também refratárias à proposta, deixaram clara a preocupação dos seus autores em manter a compostura que o público tem o direito de exigir dos praticantes do ofício.

Compostura não é escrever com luvas de pelica – nem chamar urubu de meu louro. É o modo como donos de empresas jornalísticas e jornalistas deveriam apresentar os fatos e emitir juízos de valor sobre eles, com vigor e clareza, mas também com cuidados éticos tanto maiores quanto mais polêmicas as questões, sobretudo quando dizem respeito direto à sua atividade. Para não enfiar opiniões a muque em cabeça alheia.

Ao longo de uma semana em que o grosso da imprensa escreveu, como se dizia antigamente, algumas de suas páginas mais memoráveis – só que desta vez no mau sentido –, objetividade, fairness, senso de proporção e esforço honesto para mostrar os múltiplos lados do assunto perderam espaço para a simplificação, o facciosismo e o insultório. E para a fúria desatada, em alguns casos.

No supermercado da palavra imaginado muitos anos atrás pelo jornalista Sidnei Basile, se não falha a memória, houve uma corrida às gôndolas dos adjetivos. ‘Stalinista’ foi consumido feito pão quente.

Publicações que tão recentemente quanto em 2002 apoiaram uma tentativa de golpe de Estado (na Venezuela) enrolaram-se na bandeira da liberdade de imprensa e apontaram o projeto do CFJ como a ponta de um golpe branco arquitetado pelo governo Lula.

A concepção de democracia de um certo número de inquilinos e freqüentadores do Planalto pode não ser flor que se cheire. Nem por isso a mídia conseguiu provar que uma coisa descende da outra. Ficou no simplismo e na inculpação por associação.

Foram muito poucos, perto do que se precisaria fornecer à opinião pública numa sociedade democrática, os comentários que pediam da mídia menos virulência (contra a idéia de um conselho de jornalistas em geral e o CFJ em especial) e mais discussão (sobre as formas de promover os compromissos éticos da imprensa na era da sua oligopolização sem freios nem contrapesos).

‘Proposta bombardeada’

A rigor, só no último domingo, 10 dias depois das primeiras notícias sobre o projeto, ganharam algum peso as críticas ao desempenho da mídia e o chamamento a um debate abrangente dos temas implícitos na iniciativa – em vez de simplesmente se condená-la ao ‘lixo’, como se leu em pelo menos um editorial, e decretar que se está no melhor dos mundos possíveis, em que a Justiça e o mercado dão conta de corrigir os vexames éticos do jornalismo.

O ombudsman da Folha de S.Paulo, Marcelo Beraba, ressaltou que ‘a proposta foi bombardeada na imprensa’. Observou que ‘ao carimbá-lo como chapa-branca, o jornal omitiu [que] o texto tinha sido gerado nos sindicatos profissionais’. Registrou que, nas reportagens da Folha, ‘as opiniões desfavoráveis tiveram muito mais destaque e foram repetidas diversas vezes’. E concluiu: ‘Esse desequilíbrio não permitiu que a proposta fosse debatida com mais profundidade’.

E olhe que a Folha nem levou o ouro na modalidade desequilíbrio. Nenhum grande jornal parece ter superado O Estado de S.Paulo no quesito bombardeio – a começar da cobertura.

Indício de que o diabo está nos detalhes, reportagem publicada na edição de 7/8, depois de citar a ‘presidente da Fenaj’ Beth Costa (ex-presidente, na realidade), contém um período que começa com: ‘Ela pouco se importa que…’. À parte o mau português, é o tipo de comentário feito para indispor o leitor com a fonte, que os manuais da profissão restringem a textos opinativos – e olhe lá.

Ainda em 7/8, o jornal informou que o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas, considera o projeto ‘extremamente perigoso’. Três dias se passaram até o leitor do Estadão ficar sabendo que ‘Audálio vê com bons olhos a criação do CFJ’ (embora tenha revelado ‘temer pela liberdade de imprensa quando viu no projeto do governo a insistência em usar os verbos ‘orientar’ e ‘disciplinar’’).

A rigor, os verbos só aparecem uma vez cada no projeto. Melhor seria, este leitor faz questão de afirmar, que não aparecessem nunca.

Melhor seria também, como revelou neste Observatório o jornalista Maurício Tuffani, que a Casa Civil do Planalto, ao canetar o projeto da Fenaj, não tivesse acrescentado o ameaçador ‘da atividade de jornalismo’, depois do ‘exercício da profissão de jornalista’ que o Conselho teria a atribuição de ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’.

Ainda assim, não se justifica o que o cientista político Fábio Wanderley Reis, da UFMG, em entrevista à Folha de 15/8 – um oásis de análise serena e fecunda – chamou delicadamente de ‘um pouco de exagero’, ao falar da reação da mídia ao projeto e da sua arquidenunciada ‘inspiração autoritária’.

O clima que se criou – e que no seu pior chegou a lembrar o ranger de dentes dos jornalões brasileiros no pré-1964 – estimulou um deprimente vale-tudo.

Comentando notícia sobre a reação do presidente Lula ao título de primeira página da Folha sobre o salto da prefeita Marta Suplicy nas pesquisas – ‘Vocês viram a Marta? Que bela manchete’, teria dito Lula – a coluna ‘Toda Mídia’, do mesmo jornal, saiu-se com o seguinte comentário: ‘É só de manchetes assim que o presidente, o mesmo do Conselho Federal de Jornalismo, gosta. Manchete feia não pode’.

Isto posto, seria faccioso não registrar, com o proverbial por outro lado, que o governo como que se esmerou em oferecer à mídia assanhada o flanco mais descoberto que ela poderia desejar.

Quando o ministro Luiz Gushiken dá de dizer, na hora mais inoportuna, além do mais, que ‘a liberdade de imprensa é um valor definitivo na democracia, mas numa sociedade nada é absoluto’, os barões da mídia ganham um alvo para apedrejar sem susto.

E o presidente Lula – o mesmo a quem não se poderia atribuir maldosamente a vontade de escrever as manchetes da imprensa brasileira, só porque se regozijou com a bela manchete sobre o avanço da sua candidata em São Paulo – deveria ter mordido a língua antes de dizer, embora em tom de brincadeira, que só daria entrevista se os repórteres começassem ‘a defender o Conselho de Imprensa’. Ou de chamar os jornalistas de “bando de covardes” por não terem tido “coragem de defender o conselho” — uma tirada de humor truculento.

‘Constrangimento da exposição’

No fim da semana, sob o impacto da tardia denúncia – passados 11 anos!– do jornalista Luís Costa Pinto sobre o erro que o então editor da Veja, Paulo Moreira Leite, teria bancado a todo custo e que foi fatal para o deputado Ibsen Pinheiro –, três colunistas encararam a óbvia relação entre o escândalo e o enforcement da responsabilidade jornalística.

Dora Kramer (Estado e JB):

‘Nenhum conselho controlador teria o poder de evitar casos como esse. Mas a imprensa livre tem pelo menos como, pelo constrangimento da exposição pública, contribuir para que se mantenham no terreno das exceções’.

Teresa Cruvinel (O Globo):

‘Quando o governo se dispõe a desistir da proposta de criação do CFJ, a confissão do jornalista Luís Costa Pinto confirma que, com ou sem conselho, as práticas da imprensa podem e devem ser discutidas. Por todos’.

Eliane Cantanhêde (Folha):

‘O ‘mea culpa’ (…) corrobora minha posição desde o início: a favor da discussão sobre algum tipo de olhar externo sobre a atividade jornalística e contra um conselho em forma de autarquia proposta pelo presidente’.

A imperdoável asfixia da discussão defendida por Teresa Cruvinel e Eliane Cantanhêde impediu que se fosse ao fundo de um dos principais problemas do exercício ético do jornalismo: bastará o ‘constrangimento da exposição pública’ de que fala Dora Kramer para ao menos reduzir a incidência de denuncismos como o que destruiu a reputação e partiu a alma do também jornalista Ibsen Pinheiro?

Este leitor pensa que não. Quantos leitores perderá ou deixará de ganhar a Veja – a se confirmar que a versão de Costa Pinto é verdadeira – por causa de uma matéria mentirosa publicada em novembro de 1993?

Até porque o ‘olhar externo’ mencionado por Eliane Cantanhêde teria mais coisas a enxergar do que os linchamentos morais cometidos pela imprensa e que lhe custam pouco ou nada. Vamos lá.

‘Existem muitas maneiras de relatar um fato, inúmeras interpretações a seu respeito. E nenhum critério seguro para definir qual delas é a melhor. O melhor serviço prestado pelo jornalismo é divulgar a riqueza desse contraditório’, escreveu Otavio Frias Filho, na Folha. Perfeito.

Essa é a tradição da imprensa brasileira? É isso que faz – se não sempre, ao menos a maioria das vezes – o que a nossa mídia tem de mais poderoso e influente?

Para não ir mais longe, divulgar a riqueza do contraditório foi tudo que a imprensa não fez em relação ao projeto do CFJ.

‘Em um mundo ideal’

Diga-se desde logo que um motivo legítimo de oposição ao CFJ da Fenaj é o seu potencial de limitar a liberdade de imprensa, o qual talvez não seja tão grande como se apregoou, mas que existe, existe.

Faltou demonstrar, no entanto, que seria impossível refazer o projeto, expurgando-o de tudo que pudesse ser entendido razoavelmente como parte desse potencial cerceador.

A menos que se acredite que nenhum conselho seja necessário para defender a sociedade dos maus jornalistas, e os bons jornalistas dos maus patrões, para quem a integridade da informação conta menos do que a afirmação de suas idéias, intenções e interesses.

Nem mesmo um organismo autônomo, desestatizado, dessindicalizado e legitimado pela corporação, na linha da Ordem dos Jornalistas proposta pelo deputado Celso Russomanno, do PP de São Paulo – que também merece um exame despreconcebido (excluídos os seus aspectos folclóricos, como o traje dos profissionais e o seu direito de sentar-se ou ficar em pé).

Comentando a questão brasileira, o Financial Times argumentou:

‘Em um mundo ideal, a regulamentação da mídia deveria ser responsabilidade dos leitores, ouvintes e telespectadores, e a punição dos jornalistas, a perda de credibilidade. Os prejudicados por abusos da imprensa deveriam buscar reparação nos tribunais. E os que passam documentos confidenciais para a mídia também deveriam ser processados, quando isso infringir a lei.’

Dessas 54 palavras, as mais importantes são as quatro primeiras.

Em um mundo ideal, para começo de conversa, o noticiário de órgãos de mídia não seria construído de forma a fazer coro com ‘a posição da casa’. Como foi, predominantemente, no caso do projeto do CFJ.

Com perdão pela platitude, o poder de formar opinião está muito mais no conteúdo informativo de um jornal – desde o que nele se considera noticiável até o modo como a notícia é apurada, editada e publicada – do que nos editoriais e nos textos opinativos.

E como bem sabe qualquer jornalista que já tenha perdido os dentes de leite, a ‘editorialização’ menos ou mais sutil do noticiário é a norma não escrita em muitas publicações e emissoras. Ele se impõe aos critérios técnicos que – embora falíveis e sujeitos a eternas controvérsias – deveriam ser os únicos a determinar o que e como será servido ao leitor/ouvinte/espectador. Em um mundo ideal, claro.

No mundo real, acontece o que o ombudsman Marcelo Beraba flagrou nas reportagens da Folha na semana passada. Elas contêm 15 opiniões favoráveis ao CFJ e 14 contrárias. ‘Mas é um equilíbrio apenas numérico’, comenta Beraba, ‘porque as opiniões desfavoráveis tiveram mais destaque ao longo da semana e foram repetidas diversas vezes.’

É o caso de perguntar se esse padrão seria adotado se o editorial do jornal sobre o assunto, já no domingo, 8/8, fosse agressivamente favorável ao CFJ, em vez de agressivamente contrário.

‘Liberdade para alguns’

Coisa de meio século atrás, o jornalista Cláudio Abramo ensinava aos focas do Estadão que a liberdade de imprensa é antes de mais nada a liberdade dos donos da imprensa.

No íntimo ele decerto sabia que simplificava uma questão tremendamente complexa, mas isso tinha lá a sua utilidade para acabar com as ilusões de noiva da rapaziada sobre as possibilidades do ofício.

E ele estava mais certo do que errado.

O secretário de Imprensa do presidente Lula, Ricardo Kotscho, também tem certa razão quando escreveu na Folha de 10/8 que se deve garantir à sociedade ‘a plenitude da liberdade de imprensa, e não a liberdade para alguns profissionais e algumas empresas divulgarem o que bem entendem a serviço dos seus interesses’.

No debate que não houve sobre o CFJ, perdeu-se a oportunidade de pôr em evidência o fato de que profissionais e empresas têm o mesmo interesse objetivo na defesa intransigente da liberdade de imprensa – mas não necessariamente pelos mesmos motivos. O que faz uma tonelada de diferença.

No último dia 12, o repórter de mídia do Washington Post, Howard Kurtz, publicou uma caudalosa matéria (mais de 3 mil palavras) que conta a inside story do tratamento dado pelo jornal às alegações do governo Bush sobre as supostas armas de destruição em massa de Saddam Hussein.

O Post, como o New York Times e toda a grande imprensa americana compraram – e venderam – pelo valor de face o pretexto da Casa Branca para a guerra ao Iraque. Em geral, tudo que levava água para o moinho do presidente tinha aceitação garantida e lugar na primeira página. Tudo que se lhe opunha ou ia para o lixo ou para a enésima página do caderno nacional.

‘Tais decisões coincidiam com o apoio à guerra da página editoral do Post‘, escreve Kurtz. ‘Esses editoriais levaram alguns leitores a concluir que o jornal tinha uma agenda [no sentido de objetivo extra-jornalístico], embora exista uma barreira do tipo Igreja-Estado entre a redação e as páginas de opinião.’

No Brasil, onde essa barreira costuma ter mais furos que um queijo suíço, alguns leitores não poderiam ser criticados se concluíssem que o bombardeio do projeto do CFJ no noticiário emanava das ‘páginas de opinião’ – ou, sem eufemismo, ecoava a voz do dono.

Isso evidentemente não explica por que a maioria absoluta dos jornalistas com redação própria – aqueles que têm espaço garantido para escrever, assinam o que escrevem e escrevem com independência – escreveram contra o CFJ.

Mas não consta que algum jornal ou revista tenha estimulado jornalistas a escrever a favor do projeto, em nome da pluralidade. Na Folha, entre sete artigos de opinião visitados pelo ombudsman, apenas um (o do já citado Kotscho) apoiava o conselho.

‘A posição da casa’

Rebatendo a declaração de um dirigente da Fenaj de que ‘um jornalista que é obrigado a escrever sobre algo que é contra a ética, porque o padrão determina, não tem a quem recorrer’, um comentarista disse que esse profissional não só pode como deve se demitir – e se não o fizer é porque não tem princípios éticos a defender.

Até parece que o autor nunca entrou numa redação, onde o que não falta são profissionais amargurados ou que sucumbiram ao cinismo como estratégia de autodefesa exatamente porque não podem se demitir quando obrigados a adaptar o noticiário – em qualquer das etapas do processo, da pauta à edição final – para não destoar da ‘posição da casa’ (que dirá colidir com ela).

Primeiro, porque – a menos que faça parte do topo da elite do ofício, e olhe lá – as suas chances de conseguir outro emprego semelhante no Brasil de hoje serão as que todos estão fartos de saber. Segundo, porque, ainda que consiga, as suas chances de topar de novo com a mesma afronta ao seu senso ético e profissional são as que todos estão fartos de saber.

Em suma, o projeto da Fenaj pode ser o que se queira. O governo, ao patrociná-lo, pode ter tido as piores intenções (ou, como antes parece, simplesmente entrou numa fria).

Mas o mencionado sindicalista tem um ponto: a discussão abortada na mídia também silenciou o debate público sobre a impotência do jornalista diante das determinações interesseiras ou sem fundamento profissional do patrão (ou, quando o patrão não parece ter nada com isso, do editor que ordena que se baixem matérias na contramão do que se apurou e checou – vide Veja e Ibsen Pinheiro).

O discurso sobre ética e transparência no jornalismo que não se voltar igualmente para essa realidade distante das vistas do público – e não propor que se tente encontrar remédios para ela – será pouco mais do que uma abstração. [Texto fechado às 17h08 de 16/8]