A capa da última Exame foi uma homenagem aos incríveis empreendedores brasileiros que levaram o Brasil à liderança mundial no mercado da carne. É uma matéria assanhada, mais uma daquelas que há 20 anos vendem como água nas bancas: o rei da soja, o rei do milho, o rei do café, e agora temos o rei da carne e seus príncipes, os empresários que dominaram o mercado da exportação da carne nos últimos anos, mais precisamente de 1996 para cá.
É tudo espetacular, é uma matéria arriba hermanito, que apela para as origens humildes dos açougueiros e mais uma vez repete a velha receita: para crescer é preciso ser competente, como o rei da carne, nada mais. Crescer significa ser o maior de todos, é um objetivo sem fim, sem ética, sem preocupações sociais ou políticas e obviamente a favor de uma maior segregação econômica e moral, um caminho rumo ao agravamento da situação já caótica da distribuição de renda. É nesse crescimento que aposta a Exame, uma das principais revistas especializadas em economia do país.
O tal do outro lado, que toda matéria deve ter segundo a fórmula dos primos dos Norte, na mídia brasileira sempre aparece em casos duvidosos, como o do Paulo Maluf, por exemplo. Depois de comprovado na Justiça, por mais de dois países, o que todo o Brasil já sabe faz pelo menos 20 anos, ainda se coloca o microfone lá para o homem dizer: ‘É mentira, tudo o que dizem a meu respeito é mentira’.
Agora, na hora de esclarecer o que aconteceu com o açougueiro Seu Nildo, o Seu João e os milhares de outros açougueiros e pequenos criadores de gado do Brasil, na hora de escutar o outro lado de tamanho crescimento vertical no mercado de exportação da carne brasileira, aí não interessa. O leitor, se quiser, que pense ou fique anestesiado, imaginando que para crescer basta ter talento para negócios e tenha a certeza de que, se não cresceu, se faliu no seu pequeno negócio porque foi engolido por um grande, nada mais pode ter sido do que puro azar e incompetência. Vai, pequeno produtor, vai pastar que o Brasil é o país dos grandes.
Um tempo na gaveta
Na mesma Exame há uma matéria de sete páginas, o Especial Crescimento, cujo título é ‘Um Brasil para poucos’. Cruz credo, não diz coisa com coisa, faz um traçado sobre os últimos ‘vinte e poucos anos’ da economia brasileira, traz dados sobre a pobreza, a falta de crescimento econômico, a alta de juros, até cita o problema da má distribuição de renda, mas não atina em despertar qualquer reflexão sobre como se configura uma distribuição de renda tão ruim como a brasileira e, lógico, o reportariado não foi atrás das possíveis soluções.
É o tipo de reportagem que não acrescenta nada porque fica em cima da lógica capitalista, não vai atrás das alternativas. Pior até: o Especial Crescimento não é reportagem, mas um artigo recheado de obviedades. ‘O problema não está no setor privado, mas no próprio governo’, eis um exemplo. Outro: ‘É difícil dizer onde termina a culpa de um governante e começa a do outro – se é que alguém tem culpa.’ Mais um exemplo do que se pode classificar como c… de regra: ‘A má distribuição de renda é um problema tão antigo que já está tatuado na pele do Brasil. Quem quiser encontrar suas origens deve pesquisar a história colonial brasileira. Mas a antiguidade do problema não é desculpa para não enfrentá-lo’.
Além de não trazer nada de novo, a matéria carrega evidências de que passou um tempo na gaveta. Na página 95 está escrito: ‘Há duas semanas, a fila de quilômetros de caminhões carregados de soja mostrou a falta de investimentos no porto de Paranaguá’. Duas semanas? Bota semana nisso. As filas de Paranaguá foram notícia em março. A data de banca da última Exame é 26/5.
Doenças da civilização
Os leitores podem dar um desconto pelo fato de que houve uma troca na direção da revista. Como se sabe, as pessoas levam algum tempo para se adaptar a um novo veículo. Dirigir um trator ou um caminhão não é a mesma coisa que pilotar um Corolla ou uma Blazer. Talvez haja uma desinteligência na cúpula da redação. Pode estar sendo revisada a fórmula (manjada, convenhamos) de bater no governo para puxar o saco da iniciativa privada. Afinal, muitos veículos mudam a linha de conduta ao sabor dos arreglos feitos pelas suas empresas. Perdem os leitores, perde o jornalismo, perde a História.
Voltando aos bois e vacas, nota-se claramente que editores e repórteres ainda não entenderam, ou por razões que um bom jornalismo não pode explicar, que se o mercado interno da carne é controlado por meia dúzia de ex-açougueiros humildes que tiveram a ‘sorte’ de crescer desbaratinadamente em apenas sete anos, isto é um problema de distribuição de renda, um problema social, um problema que exige reformas (entre elas, a agrária, justo aquela que mais amedronta os proprietários dos meios de produção) e, finalmente, um problema de qualidade do produto.
Por mais assépticas que sejam, as grandes indústrias de alimentos podem apenas evitar doenças antigas, conhecidas e a maioria, curáveis. Mas só tendem a aumentar a incidência de doenças novas, consideradas doenças da civilização, causadas por grandes criações e grandes plantações, que cada vez mais necessitam de intervenções, como ‘defensivos’ (na realidade, venenos), aditivos, remédios e modificações genéticas. Tudo bem, não exageremos, a Exame é uma revista de economia, e não tem nada a ver falar de problemas de saúde, intervenções necessárias quando o crescimento é exorbitante e que tais, afinal o conteúdo da revista se resume a dados e números.
Com vergonha
Ótimo, poderia começar a contar quantos pequenos açougueiros e criadores de gado foram dizimados nessa brincadeira da vaca fria nos últimos sete anos, poderia questionar ou pelo menos tentar explicar aos leitores que a concentração de renda não é apenas um problema social dos pobres e miseráveis, mas uma renda imensa que, em vez de circular dentro do país, aquecendo a economia, diversificada em vários setores, atingindo a massa da população, fica ‘parada rendendo’ no topo da pirâmide. E isto é particular e privado, não governamental, a concentração de renda, o dinheiro que fica parado rendendo só é usado em benefício dos seus detentores.
Realmente, vivemos sucessivos governos eternamente comprometidos com esse método econômico falho, que não encaram de frente o que deve ser enfrentado, mas o pior é não poder contar com esclarecimentos de uma revista ‘respeitável’, que em vez de defender nossos interesses de cidadãos e leitores tem a ousadia de contar o milagre e não contar o santo, tem o desplante de ‘torcer’ por uma distribuição de renda defendendo idéias e práticas contrárias a isso em gênero, número e grau. Na edição inteira temos nenhum exemplo de pequeno produtor, nenhuma citação a novas formas de economia, nenhuma entrevista com empresários favoráveis à limitação de lucros, nenhuma menção aos engolidos, nenhuma matéria sobre o rema-rema em que vivem os ecológicos, os orgânicos os da permacultura. A maior ONG sobre economia alternativa do mundo, a Attac, não valeria uma matéria? Como trabalham e lucram os bancos éticos, que agem de maneira a distribuir renda? Por que essas iniciativas não merecem capas em nossas revistas?
Matérias assim, que estão também na Época, na Veja e na maioria das publicações acessíveis nas bancas, são uma afronta à inteligência dos leitores e nos deixam envergonhados quando alguém pergunta: qual é sua profissão?
******
Jornalista