Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O amarelo e o playboy

No ano longínquo de 1984 eu militava no movimento estudantil, presidia o Centro Acadêmico “XI de Agosto” e tinha o privilégio de ser amigo de Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense. No comecinho daquele ano ele me veio com uma ideia de marketing político que eu descartei liminarmente, achando que era coisa de playboy. Agora, ao longo desta semana, lembrei-me muito daquela conversa – e você já vai entender por quê.

Aos meus olhos infantojuvenis, o Caio era contraditório. Esbanjava entusiasmo com as utopias socialistas. Ao mesmo tempo, não recusava nenhum dos luxos burgueses. Idolatrava o deputado estadual Eduardo Suplicy (“um santo”, ele dizia) e desfilava feliz da vida com um MP Lafer sem capota. Com intuição e engenho, soube imprimir à Brasiliense uma linha subversiva tanto na esfera da política como no plano costumes. Prestigiou autores nada acomodados, como Caio Fernando Abreu, lançou Marcelo Rubens Paiva com Feliz Ano Velho, encomendou ao poeta Paulo Leminski uma biografia de Leon Trotsky e publicou dezenas de obras de pura provocação, como Porcos com Asas, de Marco Radice e Lidia Ravera. A Brasiliense de Caio Graco era um polo cultural do Brasil nos anos 80. Por ser de esquerda, enfurecia os militares (que não tinham como censurá-la). Por ser libertária, causava urticária nos comunistas da velha guarda (que não podiam amaldiçoá-la em público).

Na nossa conversa do início de 1984, Caio estava empolgado. “Quero lançar uma campanha: Use Amarelo pelas Diretas!”. Em seguida, bateu as duas mãos abertas na mesa e me intimou: “Por que não fazemos isso pelo ‘XI de Agosto’?”.

Torci o nariz. Não que eu fosse contra as eleições diretas, éramos todos a favor (a bandeira entrara na agenda das ruas em 27 de novembro de 1983, num comício de 15 mil pessoas, convocado pelo PT, em frente ao Estádio do Pacaembu). Mas aquela história de “usar amarelo” me pareceu afetação de esquerdista grã-fino. Do alto da minha caretice arrogante, recusei polidamente a proposta: o “XI de Agosto” não iria entrar no ramo de figurino de passeata.

Sim, sim, é óbvio que cometi um erro crasso, preconceituoso e estúpido. Dias depois, o então senador Severo Gomes envergaria uma gravata amarela e lançaria a moda que virou uma onda gigantesca. Eu aderi, é claro, como todo mundo, numa euforia intensa e breve. Em abril daquele mesmo ano, a emenda que restabeleceria o voto direto foi derrotada no Congresso Nacional. Tivemos de esperar mais cinco anos para votar. De resto, fiquei com a consciência tranquila: errei na cor, mas não errei na causa.

Gente grande

Agora, em 2015, o amarelo está de volta às ruas. Como em 1984, alguma coisa me incomoda e por isso me lembro do Caio Graco. Desta vez, porém, meu desconforto não é com a cor, mas com a causa. Posso estar sendo preconceituoso como já fui, mas não creio. A bandeira do “Fora Dilma” ganhou o estatuto de dogma por antecipação. Se você é contra o governo, mas não quer derrubar a presidente antes do final do mês, fique fora da passeata. Está desconvidado. Tanta inflexibilidade foi responsável, ao menos em parte, pelo esvaziamento das marchas. Entre o primeiro grande protesto, de 15 de março, e o segundo, de 12 de abril, a multidão diminuiu. Gente que queria expressar descontentamento com a presidente, mas não concordava com a tese de guilhotinar-lhe o mandato de modo sumário, pulou fora ou foi expelida.

Até mesmo lideranças de partidos de oposição preferiram manter distância. O PSDB, por exemplo, disse que “apoiava”, mas não foi às passeatas. Do alto do muro, ficou vendo a banda passar e se esvaziar. É bem verdade que, depois de domingo, e principalmente depois da prisão do tesoureiro do PT, os tucanos começaram a encomendar estudos preliminares, veja bem, a considerar caminhos jurídicos para, então, eventualmente, poder dar início ao pedido de uma ação de impeachment, tudo ainda em caráter muito hipotético, etc. Mas até domingo estavam olimpicamente empoleirados no muro. Em resumo, nem a oposição se sentiu à vontade para ir à rua.

É claro que protestar é necessário. A mais recente campanha publicitária do PT na televisão deveria ser recebida pelos brasileiros com protestos enérgicos, indignados e contundentes. Ao chamar para si o mérito pelo aumento das prisões por crime de corrupção no Brasil, o PT agride o brio da cidadania, que sabe muito bem onde está a inestimável contribuição petista para essas prisões: do lado de dentro das celas. O ato de protestar, enfim, pode ser assumido como um dever inadiável. Acontece que os atos públicos, em vez de acolherem a diversidade dos insatisfeitos, foram monopolizados pela teimosia furiosa de transformar a cadeira da presidente da República num assento ejetável. Ora, qualquer cidadão sabe que não é assim que a democracia funciona. O impeachment requer um rito processual formal, e esse rito não está colocado, nem de longe. Os manifestantes fundamentalistas do “impeachment já” mostraram-se desagregadores e espantaram quem não quer partir para o tudo ou nada.

A exemplo dos que gritam por um golpe militar (que são ridículos, mas poucos, ridiculamente poucos), ficaram com a imagem sectária de adeptos da ruptura da ordem democrática e perderam o punch. Eles mesmos viram. A julgar pelas declarações dos dirigentes das manifestações, eles perceberam que precisam corrigir o curso. Um ou dois passeios dominicais na Paulista, em congraçamento com a Tropa de Choque, não darão conta de mudar o Brasil. Se quiserem fazer diferença, os radicais do “Fora Dilma” terão de parar de simplesmente cuspir nos políticos para começar a fazer política de gente grande. A democracia se tece com partidos, não contra todos os partidos. A democracia não se faz na base da birra infantil.

Em 1984, ir às passeatas com camisa amarela não foi coisa de playboy. Definitivamente. E hoje? A pergunta está em aberto.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP21