A irrupção da crise militar por conta dos desajustes governamentais no comando da política aérea nacional não é outra coisa senão a comprovação da falência do poder civil neo-republicano sob o modelo neoliberal em vigor no país, com amplo apoio da mídia, desde a grande crise monetária dos anos de 1980, desencadeada pelos Estados Unidos, ao elevarem, em 1979, de 5% para 17%, a taxa de juros norte-americana, em nome do combate à inflação. Pintou o ‘apagão da autoridade’, como destacou o repórter Marconi Formiga, na revista Brasília Em Dia.
Em excelente artigo no Correio Braziliense, ‘A reeleição e o novo PIB’, (29/03/2007), de sínteses das crises monetárias internacionais que afetaram a economia mundial e brasileira em particular, ao longo de dois séculos(1826, 1876, 1931 e 1982), o repórter Luiz Carlos Azedo identifica em tais crises momentos em que a situação política e social, nos países capitalistas periféricos, foram intensamente abaladas por períodos relativamente prolongados. A de 1982, que foi detonada em 1979, abalou e desestruturou geral o capitalismo nacional, mantendo suas conseqüências destrutivas ainda no presente. A América Latina sucumbiu terrivelmente.
E o que a mídia fez de lá pra cá? Simplesmente comprou barato o argumento do Consenso de Washington de que a causa da crise seria a inflação, e não os estragos provocados pela dívida detonada pelos juros altos norte-americanos. Cuidou, portanto, de atacar o efeito – a inflação – e não a causa – a dívida importada. Marx destaca em O Capital que as crises capitalistas são provocadas, essencialmente, pelos desajustes econômicos provocados no capitalismo central, que são transferidos, em forma de desajustes monetários – juro alto, invariavelmente – ao capitalismo periférico, que paga o pato.
Inflação, a causa maior
Havia excessiva liquidez internacional em dólares, eurodólares, petrodólares e nipodólares que os Estados Unidos jogaram no mercado internacional depois da II Guerra Mundial, via Plano Marshall, para salvar a Europa e o Japão do comunismo. Ao mesmo tempo, expandiam a guerra fria para tentar anular a União Soviética, o que acabou acontecendo no final dos anos 80. O Instituto Pew destaca que foram gastos no pós-guerra, até final da guerra fria, cerca de 15 trilhões de dólares. A economia de guerra keynesiana puxou a demanda global nesse período. A praça lotada de dólares leva a moeda norte-americana ao descrédito. O Banco Central norte-americano, prevendo o perigo, puxou os juros para cima e derrubou quem devia em dólares – os países pobres, dependentes de poupança externa para sobreviver, como aconteceu em todo o século 20.
Para fazer os governos dos países capitalistas periféricos pagarem as contas dos estragos provocados pelos capitalistas cêntricos, em seus ajustes globais do pós-guerra, criou-se o Consenso de Washington, que determinaria as novas ações a serem seguidas pelos endividados mediante o pensamento único neoliberal, cuja estratégica tratou, essencialmente, de atacar os efeitos para fugir das causas do problema. Nessa, a mídia embarcou de corpo e alma.
Os governos da Nova República, que haviam herdado dívidas dos governos militares keynesianos-nacionalistas, embarcaram no combate tenaz aos efeitos, e não às causas da crise. Trocaram os pés pelas mãos. A inflação, que se expressou na elevação dos preços e dos juros por conta da súbita dívida alavancada por fatores externos à realidade nacional, foi eleita, unanimemente, a causa maior da crise monetária produzida por manobras do Banco Central dos Estados Unidos, onde estava a causa do problema.
Alternativas heróicas
O Consenso de Washington estabeleceu as regras e os neo-republicanos, juntamente com a mídia, refém do pensamento único forjado nos Estados Unidos, chancelou o novo status quo. Este se voltava à liberação geral dos mercados, à privatização geral da economia e à desregulamentação geral do aparelho de Estado. Tudo isso era regado por uma oferta monetária – determinada pelos credores, monitorada pelo FMI, coordenada pela Casa Branca e aplicada pelo Banco Central do Brasil – relativamente insuficiente para sustentar o crescimento econômico reclamado pela demanda social, mas também relativamente suficiente para gerar dinheiro, via superávit primário crescente, ao pagamento dos juros da dívida pública interna e externa. Assim começara a ser paga a dívida e os juros altos que explodiram com a crise monetária norte-americana.
Ao não cuidar de ver a realidade de frente, as suas causas deram lugar aos seus efeitos e o sujeito passou a ser comandado pelo objeto. A inflação foi fruto desse processo, mero efeito, produzido pela desorganização da elevação descontrolada do endividamento, e impulsionado de fora para dentro. Ao eleger o combate à inflação, de um lado, por meio de milagres – congelamentos de preços e salários – e, de outro, por alternativas heróicas – sobrevalorização cambial como arma de combate à inflação – os neo-republicanos-neoliberais-washingtonianos, amplamente apoiados pela mídia, derrubaram a inflação e todo lo más, como destacam os repórteres argentinos, ao analisarem a Era Menem, também ultra-neoliberal.
Suicídio econômico
O apagão aéreo, que a mídia, cinicamente, analisa aos olhos da visão neoliberal – que enxerga erro dos outros, mas nunca o de si mesma – é apenas um elo na cadeia dos apagões de energia, da saúde, da educação, da segurança, da infra-estrutura. Está tudo sucateado depois que o efeito – a inflação – foi vencido, sem que se atacassem as causas que provocaram o mesmo – o elevado endividamento público, que, há duas décadas, mantém a economia em ritmo de banho-maria. Conseqüentemente, o país continua sendo dominado pelo efeito da sua incapacidade de ver a causa, ou, melhor, de fugir dela.
A crise monetária da década de 1980 ainda está a exigir dos governos neo-republicanos e da mídia, que os acompanha cegamente para não contrariar os pontos de vista de Washington, uma profunda avaliação. Não se formulou o problema em sua dinâmica dialética e, conseqüentemente, não se achou ainda a sua solução. O coalizão rasgaria a máscara?
Os ajustes monetários e fiscais que a crise monetária norte-americana desencadeou levaram, paulatinamente, o governo e o Estado liberal no terceiro mundo a perderem a sua função e sua utilidade social. Os crescentes cortes nos gastos públicos, levando os serviços públicos ao colapso, foram o preço pago pela população pelo aumento do juro norte-americano que elevou a inflação e destruiu a economia. Do ponto de vista do utilitarismo, a essência da ideologia capitalista, caminhou-se, no Brasil, para o suicídio econômico no compasso das medidas economicidas aplicadas, sob orientação do Consenso de Washington.
As crises monetárias
Os PhD’s formados nas mais modernas e avançadas universidades norte-americanas, de onde vieram o pensamento econômico neoliberal que a Nova República abraçou ternamente sob embalo satisfatório dos editoriais e comentários políticos neoliberais ao longo dos últimos 22 anos, ergueram-se ao eleger o combate à inflação prioridade número um, como politicólogos pacoteiros-milagreiros-heróicos. Seus milgares embalaram euforicamente os neo-republicanos, que precisaram, depois do autoritarismo militar, de ganhar eleições no voto, e não no tapetão da democracia neo-republicana.
Eleger a inflação como impopular, algo que realmente é, e transformar o combate a ela, efeito da crise, em causa maior desta, levou os economicidas a serem vistos como salvadores da pátria neo-republicana, até que suas mágicas, a partir de 1997, revelaram ser seu coveiro. Nesse período, FHC controlou direitinho a mídia nacional ao levá-la a informar, amplamente, que a crise brasileira era provocada pela crise na Rússia, no México, na Argentina etc. Todos esses países estavam sob impacto da grande crise monetária, como o Brasil. Era farinha do mesmo saco. Tergiversação fernandina.
Entre os conservadores, somente Delfim Netto, nessa ocasião, esboçou comentário racional, mas deixou de dizer o que precisava ser feito, concordando com a orientação dos Estados Unidos. Para ele, a crise monetária norte-americana da década de 1980 foi necessária aos Estados Unidos para segurar o movimento socialista internacional diante da crescente desmoralização do dólar. O ex-ministro pensou como Lênin, que assustou Keynes. Para o líder soviético, nada melhor para o socialismo do que as crises monetárias capitalistas. A crise da década de 1980, impulsionada pela Casa Branca, livrou o capital de sucumbir ao socialismo soviético, mas destruiu a periferia capitalista, que precisou amargar o prejuízo imposto pelo Consenso de Washington. Delfim, porém, ao contrário de Lênin, não queria saber de revolução socialista.
O Estado mínimo
A podridão os serviços públicos hoje em dia tem em sua base a desestruturação imposta por aquela crise que se insere como um dos momentos marcantes da história econômica da humanidade sob o capitalismo, mas que a mídia nacional, para ser compatível com os seus interesses externos, recusou ir fundo em seus pressupostos, para não ter que revelar sua própria mentira.
Que moral tem agora de cobrar dos neo-republicanos / neoliberais financeiramente falidos, à beira de uma crise de identidade, sob o governo de coalizão, coerência, se ela não revelou, ao longo desses anos todos, percepção para ver a realidade sobre o movimento dos interesses de classes socialmente antagônicos e que se interrelacionam por meio da negação até superar a contradição, fixando novos parâmetros históricos?
A Nova Republica e a mídia, obediente ao Consenso de Washington, enterraram o discurso nacionalista-getulista, que os déspotas-autoritários militares adotaram, e iniciaram, especialmente, sob FHC, com a pregação neoliberal que tomou conta da América Latina. O Estado máximo getulista-peronista teria que dar lugar ao Estado mínimo collorista-fernandista-menemista-lulista. O resultado prático dessa opção tem tudo a ver com a crise do apagão aéreo.
Transe civil-militar
Os governos neo-republicanos, com amplo apoio midiático, subordinados aos interesses dos credores do Estado nacional em escala crescente, quanto mais combateram a inflação ao longo da existência da Nova República, mais colheram dissabores. Agora, falido e sucateado, o Estado nacional, sob o poder civil neo-republicano-neoliberal desmoralizado, revela-se biruta de aeroporto.
Nasceram e proliferaram nos jornais, rádios e tevês, durante o período neoliberal-neo-republicano, toda uma geração de jornalistas, analistas e economistas que cuidaram de empenhar seus esforços intelectuais para tentar explicar que a causa do problema brasileiro teria que ser solucionada apenas pelos ataques aos seus próprios efeitos. Perseguiram o caminho direto à esquizofrenia. Viraram de cabeça para baixo para enxergar a realidade. Quem ficou em pé, no mesmo lugar, passou a ser considerado doido. A obsessão anti-inflacionária que o Consenso de Washington despertou na mídia brasileira tornou-a acrítica simplesmente porque, ao priorizar o efeito sobre a causa, na abordagem da problemática nacional, subordinou-se à ideologia mecanicista, que visa explicar o sujeito pela luz do objeto.
A escorregada do presidente Lula em desautorizar o financeiramente falido poder militar hierarquicamente na condução da crise do setor aéreo, constitucionalmente reservado à Aeronáutica, gerando inquietações nos quartéis, representaria tão somente a forma e não o conteúdo do problema. A forma é puro transe civil-militar neo-republicano-neoliberal. O conteúdo, a incapacidade de o governo, sob o modelo neoliberal, pautado pelo elevado superávit primário, administrar competentemente o Estado a serviço da cidadania em seus aspectos econômicos e éticos.
Equívocos históricos e ideológicos
O relatório do Tribunal de Contas da União relativamente à Infraero, empresa estatal do transporte aéreo, um dos elos da cadeia da crise, junto com o Ministério da Defesa, a Aeronáutica e as empresas aéreas, representa perigo mortal para o poder civil, expresso na coalizão governamental na presente crise, durante a qual a mídia permanece altiva, temerosa de ir às raízes da sua consciência. Apoiado em informações encaminhadas pelo Ministério Público de São Paulo, o TCU pinta com cores fortes e comprometedoras a imagem da empresa governamental. O governo Lula escorregaria feio se viessem à tona denúncias, com sua respectiva comprovação, em investigações da previsível CPI do Apagão Aéreo. Seria a morte política do governo de coalizão.
Com ela pode ir também para o túmulo a própria mídia, acompanhada de seus equívocos históricos e ideológicos cometidos em todo o perigo neo-republicano-neoliberal. Não foi à toa que o Partido da Frente Neoliberal (PFL) mudou seu nome para Democratas, para fugir do estigma do neoliberalismo, que não dá mais voto. Só consegue manter seu prestígio inalterado nos editoriais da grande imprensa.
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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília, DF