Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O assassino e a cumplicidade da imprensa

Os desastres naturais não podem ser evitados, mas podem ser minimizados. Da mesma forma, os desastres humanos dificilmente serão impedidos, mas podem ser atenuados. A chacina na Escola Municipal Tasso da Silveira em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, já teve precedentes no Brasil. Contudo, a magnitude da ação criminosa e covarde com doze crianças mortas e outras feridas só teve similar no exterior. Existe a possibilidade de novas tragédias como essa ocorrerem. Então o que pode ser feito para minimizá-las? E a função da imprensa se limita a informar, ou também deve se considerar como instituição integrante no intuito de atenuar possíveis novos ataques?


Os distúrbios psicossociais podem ser explicados por diversos estudos e teorias legítimas, mas não o suficiente para compreender a tragédia que se abate contra a população vitimada. Pessoas inocentes sofrem com as ações perturbadas desses indivíduos e os traumas para as vítimas não fatais e dos familiares das que morreram são gravíssimas e, talvez, irreversíveis.


No caso das tragédias naturais, a tecnologia e as táticas de ação podem salvar vidas, pois as causas do evento quase sempre são conhecidas e podem ser medidas, embora os locais e tempos não sejam exatos. Igualmente, ocorre com ataques de pessoas que se dizem vítimas da sociedade e praticam crimes covardes como o visto na escola municipal em Realengo.


Danoso para a sociedade


Algumas hipóteses foram levantadas como a única forma de prevenir ataques como esses, como retirar as armas das ruas. Isso é utópico, mesmo porque o controle demandaria políticas e investimentos públicos até agora nunca vistos em nosso país. Até países desenvolvidos não conseguiriam isso. A segurança de estudantes como reforçar a vigilância nas proximidades da unidade escolar demandaria um efetivo de pessoal nunca visto por aqui. Tanto a guarda municipal como a Polícia Militar teriam que aumentar significativamente o contingente. E, mesmo que o ideal fosse alcançado, armas de fogo não são os únicos instrumentos para quem pretende entrar para história. Facas, bombas e outros utensílios podem ser usados para executar a estratégia maligna, como já ocorreu na China, em 2010 (http://pt.euronews.net/2010/05/12/novo-ataque-na-china/), e em outras partes do mundo.


Outro instrumento indiscutivelmente usado por esse tipo de criminoso é a mídia. A imprensa tem papel fundamental nesses casos, quando a motivação para o crime é sair da obscuridade e ganhar notoriedade. E nessa época da mídia sem fronteiras, pode o algoz aprender técnicas para executar o que pretende na rede mundial de computadores, como também receber incentivos de pessoas que compartilham de pensamentos similares. Não foi à toa que a polícia achou o computador do assassino premeditadamente destruído.


Mesmo assim, deve-se evitar destacar a biografia do criminoso e não publicar cartas, bilhetes ou vídeos produzidos para esse intento. Neste caso, a mídia compactua com a motivação do crime, dando voz a quem buscou tê-la da forma mais covarde e desprezível. A imprensa tem a informação como algo inerente à sua existência, mas o fundamentalismo até mesmo no jornalismo é danoso para a sociedade. Exceções devem existir para o bem comum, que é outro valor importante para os profissionais da imprensa. Isso seria ético. Contribuir para minimizar ou até mesmo desestimular futuras ações.


Exposição como recompensa


Não podemos negar que a publicidade em torno desses sociopatas é o principal motivo para alcançar o objetivo pretendido. A estudiosa de mentes criminosas Ilana Casoy sabe que não existem monstros entre os humanos, e apenas uma minoria esmagadora, em torno de 5%, estava realmente doente quando praticou os crimes. Ela esclarece que o ‘conceito legal se refere à habilidade do indivíduo em saber se suas ações são certas ou erradas no momento em que elas estão ocorrendo’ (2008: 35).


O seu trabalho sobre assassinos em série é relevante para entendermos superficialmente a motivação do assassino de Realengo. Pessoas que cometem vários crimes, em minutos ou horas são classificados como assassinos de massa, mas alguns aspectos podem ser equivalentes no pensamento desses criminosos. Os tipos de serial killers são, resumidamente, o sádico, que mata por desejo, o emotivo, que o faz por pura diversão, o visionário, que é insano, psicótico, sofre com alucinações e ouve vozes, e o missionário, que socialmente não parece ser um doente mental, mas tem ‘interiormente a necessidade de `livrar´ o mundo do que julga imoral ou indigno’. Este tipo de assassino escolhe um grupo para matar e podem ser prostitutas, homossexuais e até crianças (2008: 19).


A pesquisadora, no começo da obra, esclarece que o incentivo do trabalho dela foi entender o que leva um assassino em série a cometer atos tão extremos. Embora esse tipo de criminoso não se enquadre em teoria alguma, ela apresenta algumas explicações pertinentes. A teoria da escola positivista, muito em voga na atualidade, acredita que os indivíduos não têm controle das ações por serem produtos da classe social, meio ambiente, genéticos e sofrerem influência de outras pessoas. Acha possível a recuperação do criminoso.


Outra hipótese, usada por poucos hoje, porém mais adequada para casos extremos e que deveria ser considerada mais de perto por nossos políticos na elaboração das leis brasileiras – levando em conta o contexto nacional de impunidade, falta de respeito ao próximo e, portanto, da ausência da simples civilidade em pleno século 21 –, entende que as pessoas cometem certos crimes por livre arbítrio unicamente. A escola clássica acredita que o criminoso toma uma decisão consciente com base em uma medida que relaciona custo e benefício. Ela explica que de acordo com essa linha de pensamento, se a recompensa for maior do que o risco, o indivíduo aposta que vale a pena corrê-lo. Se a punição for extrema, ele não irá cometer crimes (2008: 17). No caso desses assassinos em massa, que matam várias pessoas em curto espaço de tempo e se matam em seguida, a única recompensa é a exposição na mídia e a imprensa acaba sendo usada e contribui com esse planejamento macabro.


Interesse público ou curiosidade perversa?


Sobre ética e imprensa, de Eugênio Bucci, um esclarecedor debate sobre a ética jornalística, destaca os ‘dez mandamentos’ contra as falhas jornalísticas elaboradas por Paul Johnson. Apesar do mandamento número 1 ser o desejo dominante de descobrir a verdade, os subsequentes deixam claro o que deve ter peso maior para o profissional de imprensa. O segundo mandamento é simplesmente ‘pensar nas consequências do que se publica’. Ele exemplifica a afirmação com um editorial do jornal Il Tempo, que decidiu não publicar mais nada relacionado às circunstâncias e métodos dos suicidas. Dez jovens italianos já tinham usado uma dessas metodologias para se matar. A informação mata e o mandamento seguinte é enfático ao afirmar que ‘contar a verdade não é o bastante. Pode ser perigoso sem julgamento informado’. Já no quinto mandamento, que seria ‘distinguir opinião pública da opinião popular’, o jornalista corrige o termo popular, que teria um valor negativo para ele, e diz que o melhor seria ‘distinguir interesse público da curiosidade perversa do público e distinguir legitimidade de popularidade’ (2000: 165-166).


Realmente, divulgar os manuscritos ou o que fazia o assassino das doze crianças de Realengo antes de cometer o crime múltiplo, como a biografia e a convivência familiar dele, é dar destaque demais a quem não merecia nem ter o nome divulgado. O objetivo dele foi alcançado e com certeza o planejamento obteve sucesso. O assassino tem conquistado o espaço na mídia depois de morto como nunca conseguiria se tivesse vivido um século.


Uma analogia com uma política pública aplicada no sistema penitenciário pode ser relevante. As prisões abrigam pessoas que cometeram crimes, mas não pretendem voltar a praticá-los. Contudo, a maioria – vide as estatísticas de reincidência não só no Brasil, como também em outros países, inclusive nos desenvolvidos – é composta por criminosos convictos. No caso de ações extremadas, como rebeliões e assassinatos de massa, esse distúrbio coletivo pode se assemelhar a perturbação de um indivíduo que se revolta contra os semelhantes e executa pessoas inocentes. Como na cadeia, eles usam reféns e agentes do Estado para ganharem voz por meio da imprensa. Muitas delas tiveram motivos como a falta de políticas básicas para respeitar o direito dos presos, mas pesquisas mostram que o principal motivo era indireto: a tentativa de fuga. Aqueles que não obtinham sucesso na empreitada se rebelavam e reivindicavam itens quase sempre passados despercebidos na vida dentro do cárcere.


Ultimamente, com o fortalecimento da democracia – quando cresceu a participação da sociedade civil organizada e houve um maior envolvimento das instituições como o Ministério Público, Defensoria Pública e sindicatos –, como também o pleno funcionamento da República com o equilíbrio entre os poderes e uma maior fiscalização dos poderes Legislativo e Judiciário nas ações do Executivo, além do aumento da consciência dos próprios governantes no tocante ao papel importante na custódia de pessoas condenadas pela Justiça, parte desses direitos estão sendo respeitados. Desta forma, o motivo para novas rebeliões diminuiu consideravelmente. Exceto pela manutenção de regalias ilegais ou facilidades no cumprimento da sentença para o cometimento de novos crimes mesmo intramuros seria a razão para novas revoltas no cárcere.


Sabendo disso, o Rio de Janeiro criou um grupamento (de Intervenção Tática) que atende prontamente a unidade que se encontra com presos rebelados. A impossibilidade de permanecer com reféns e ter a mídia para expor pretensas reivindicações praticamente zerou esse tipo de ocorrência nos últimos cinco anos. E quando há, as negociações são rápidas e quase sempre sem vítimas. A última rebelião antes da criação do grupamento foi na Casa de Custódia em Benfica em 2004. O evento durou três dias e acabou com 30 presos e um agente do Estado morto.


Maturidade editorial


O professor Nilson Lage classifica essa tese como radical. Segundo ele, supostos desafios éticos como a crítica de que a divulgação de certos procedimentos poderia induzir pessoas a reproduzi-los e, portanto, seria necessário impedir a divulgação de notícias negativas como suicídios e roubos ardilosos, não correspondem à realidade. Ele afirma que viveríamos em um mundo maravilhoso, de comportamentos éticos e corretos, mas imaginários. Ele está correto, apesar de também usar um argumento radical ao não lembrar que cada caso tem sua especificidade e por isso deve ser analisado separadamente, em vez de se estabelecer uma norma de procedimento como se o jornalismo fosse uma indústria de produção em escala.


É importante frisar que, nas ciências humanas, quando se generaliza, a possibilidade de encontrar erro no resultado é imensa. Apesar das coincidências, nada se repete e cada indivíduo é diferente do outro em decorrência da biografia que envolve as relações sociais, familiares, o ambiente em que viveu e as oportunidades que teve como uma boa educação, alimentação e até uma gestação sem complicações. Deve-se considerar também como e o que praticou. Portanto, é razoável estudar caso a caso e articular as estratégias e políticas mais adequadas para o bem comum. A comunicação de massa responsável, o papel da imprensa em uma democracia, questões éticas da profissão e a busca do bem comum devem orientar o jornalista. Principalmente em casos que ameaçam a segurança da população.


Por outro lado, Lage reconhece que a divulgação de um processo em curso pode alterá-lo, como em uma investigação policial sobre um sequestro. Apesar de afirmar que há limite para isso, o autor assume que a restrição é legítima (2001: 99-100).


Da mesma forma que um indivíduo, como esse infanticida, possa ter sido desrespeitado nos direitos inerentes ao ser humano, ter sofrido de bullying (agressão verbal ou física e outros tipos de humilhações por parte de colegas de escola, vizinhos e até mesmo familiares) e ter sofrido abusos sexuais na infância, é óbvio que não justifica a covardia executada.


A principal motivação, até mesmo por conta dessa biografia conturbada, é a necessidade de expor o que pensava, mesmo sendo argumentos dos mais absurdos. E por isso mesmo tal pretensão deve ser negada pela imprensa. E isso deveria ser apresentada de forma explícita, como feita pelas organizações Globo, quando decidiram não mais divulgar o nome das facções criminosas. Uma política editorial que demonstrou interesse social e maturidade democrática. Esse extremismo é necessário em alguns casos. Serve para equilibrar o fundamentalismo na defesa dos direitos individuais que em casos específicos prejudica a sociedade. Negar isso pode ser inocência profissional ou mesmo uma atitude intencional, inescrupulosa e que busca somente o lucro inconsequente.


Além do autor dos crimes, a mídia também pode se tornar cúmplice no assassinato de massa. Cabe aos profissionais de imprensa e à própria sociedade debaterem até que ponto exato e em quais casos o direito a informação deve ser respeitado.

******

Assessor de imprensa do Sindicato dos Servidores do Degase, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Unesa, em Gestão Penitenciária pela UERJ e em Gestão de Organizações em Segurança Pública pelo Iuperj