Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O azar dos sortudos


O texto que segue foi enviado por este observador ao Último Segundo, do portal iG, na sexta-feira (26/2), às 16h51, para ser postado logo em seguida na retranca ‘Opinião’, como acontece habitualmente. Como até às 20h o texto não havia sido publicado, fez-se uma consulta telefônica para verificar se efetivamente chegara. Mais de uma hora depois, por telefone, claramente constrangida, a responsável pela edição, Mariana Castro, informou que a colaboração de quase 10 anos fora suspensa e o texto não seria publicado. Raul Castro tem razão: quem manda na mídia são os seus donos. (A.D.)



Tem fama de afortunado, ditoso ou, como diz o povo, empelicado. Mas nem tudo foram flores quando Lula enveredou pela política: perdeu três pleitos presidenciais sucessivos e já começava a ficar com fama de perdedor quando os ventos mudaram e embora não fosse surfista enganchou-se nas ondas certas.


Nesses últimos oito anos, inspirado pelos astros ou pelo bom senso, Lula acionou corretamente todos os botões mesmo quando os companheiros cometiam as barbaridades do mensalão e do dossiê Vedoin. Animado pela infalibilidade, cometeu há um ano monumental asneira ao escolher José Sarney para presidir o Senado. Ainda não pagou por ela, mas não está longe o dia em que será julgado pela complacência na desmoralização do Legislativo e na proteção a um dos coronéis mais corruptos da história do Nordeste.


Estúpido e inútil


A viagem ao México e Caribe prometia ser um cruzeiro de férias: em Cancún, na Cúpula das Américas, deveria envergar a confortável guayabera presenteada pelo anfitrião Filipe Calderón aos participantes homens (excluídas as mulheres) e festejar o lançamento de mais um bloco, não-carnavalesco, a ‘OEA do B’, vedado aos EUA e Canadá.


Em Cuba encontraria Fidel Castro, em franca recuperação e talvez incentivasse as negociações recém iniciadas com os EUA, cumprindo o seu papel de contrapeso à insanidade de Chávez. Não foi avisado ou não deu importância à informação de que o dissidente cubano, Orlando Zapata, em greve de fome há 85 dias, fora internado em estado grave uma semana antes num hospital de Havana.


Como a Parca não distingue sortudos dos azarados, o anúncio da morte de Zapata correu o mundo justamente quando o avião da Força Aérea Brasileira aterrava em Havana e Lula, feliz da vida, preparava-se para abraçar os irmãos Castro. Boas estrelas são volúveis, a sorte é movediça; pior ainda: imprevisível.


O presidente Lula atrapalhou-se ao explicar por que não atendera ao pedido dos dissidentes cubanos para interceder em favor de Zapata e cometeu uma barbaridade ao desqualificar o sacrifício do militante oposicionista. Ignorou ostensivamente a heróica jornada do Mahatma Gandhi que dobrou o invencível império britânico graças às greves de fome.


Desprezar a imolação e depreciar o martírio é uma forma de compactuar com aqueles que não permitem outra alternativa senão a imolação e o martírio. Invocando princípios religiosos Lula foi anti-religioso, ao buscar a racionalidade associou-se aos irracionais que relativizam as liberdades para defender o arbítrio. Não contente, em entrevista aos jornalistas cubanos, fez um apelo à ousadia de Barack Obama para acabar com o embargo econômico dos EUA a Cuba.


Este embargo ianque é estúpido, desumano, imoral e inútil, Obama está empenhado em suspendê-lo mas considerá-lo como único responsável pela ditadura cubana – como fizera na véspera seu homólogo, Raúl Castro – é um raciocínio primário à altura do intelecto de Hugo Chávez.


Valores universais


Atarantada por suas próprias mazelas, a imprensa internacional não deixou sem comentários o simplismo do nosso presidente. O prestigioso diário espanhol El País, o mais importante do mundo ibero-americano, lamentou a oportunidade perdida pelo dirigente brasileiro para forçar o regime cubano a respeitar os direitos humanos:




‘O silêncio de Lula diante de uma ditadura como a castrista macula o que ele representa para a América Latina e, à medida que o Brasil se fortalece como potência emergente, para o resto do mundo.’


Não se trata de uma opinião pessoal do correspondente no Brasil, Juan Árias – geralmente cordato –, mas da opinião institucional de um grande jornal que recentemente ofereceu a Lula um honroso galardão.


Negociar com todas as partes em conflito é a principal ferramenta da diplomacia, mas a confiança dos interlocutores não pode ser conquistada à custa do sacrifício de valores universais. Remember Munique: as concessões pragmáticas de Chamberlain e Deladier, ao invés de aplacar Hitler, só aumentaram a sua ferocidade.


A sorte é imponderável, inexplicável, mas consta que sortudos têm boa memória.


 


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