Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bochinche no governo sem on nem off

Os repórteres Kennedy Alencar e Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, escreveram o que terá sido a primeira e mais bem informada reportagem sobre a disputa de poder no Planalto provocada pela promoção do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a porta-estandarte do governo (capa da Veja de 9/6) e pela expansão da influência do ministro Aldo Rebelo, da Coordenação Política (aprovação do mínimo de R$ 260 na Câmara, por larga maioria).

Segundo Cristiano Romero, do Valor, a propósito, foi o próprio presidente quem tomou a iniciativa de dar a máxima visibilidade a Palocci, por causa dos bons números recentes da economia e de um ibope segundo o qual 63% dos entrevistados acham que a política econômica está no caminho certo.

Entre um Palocci desfilando para o público externo e um Rebelo costurando com o público interno – o Congresso –, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, ficou à margem da agenda positiva de que Lula depende para reerguer a imagem do governo. E partiu para o revide – ou assim se divulgou.

No Corpus Christi, sob o título ‘PT pressiona Lula a devolver articulação política a Dirceu’, Alencar e Rodrigues debulharam numa coluna de alto a baixo o bochincho planaltino – ou melhor, bochinche, como dizem os portenhos, para combinar com o fim de semana prolongado de Dirceu em Buenos Aires.

Bancaram, por exemplo, que o ministro da Casa Civil disse a Lula que estava sendo ‘sacaneado’ dentro do governo; que, sob pressão, entre outros, do presidente da Câmara João Paulo Cunha e do presidente do PT José Genoíno, Lula admitia passar Rebelo para a Defesa, no lugar de José Viegas. E bancaram que Dirceu disse a ‘interlocutores’: ‘Não estou brigado com o Antonio Palocci. Com o resto [Rebelo, presumivelmente] é guerra.’

No sábado, enquanto os cartunistas faziam a festa casando a guerra de bastidor com o arraial daquela noite na Granja do Torto, o noticiário trazia o desmentido oficial: Lula não vai mexer no Ministério. Quando for fazê-lo, ele próprio comunicará o fato à imprensa, disse por intermédio do secretário Ricardo Kotscho.

Por sinal, só a Folha, em matéria assinada pela repórter Gabriela Athias, lembrou que essa era a segunda vez que o presidente divulgava nota para negar mudança ministeriais: ‘No dia 6 de janeiro, ele ‘desautorizou’ a imprensa a fazer ‘especulações’ sobre uma eventual troca de ministros. Dias depois [foram 16, a rigor], demitiu seis ministros e fez a sua primeira reforma’.

Duas escorregadelas

Mas o importante é que o Planalto não desmentiu a reportagem da dupla Alencar/Rodrigues.

Toda a imprensa deu, embora não exatamente com essas palavras, que Rebelo continua onde está porque Viegas, a quem ele substituiria na Defesa, partiu para o ataque.

Ele mesmo contou para o reportariado, nas comemorações da batalha do Riachuelo, que foi cobrar do presidente o que havia de verdade sobre a sua saída – ‘e ele me disse que não tem nada a ver’.

O ministro não deixou por menos: ‘A imprensa tem suas fontes, mas não tenho insegurança’. E nada mais lhe foi perguntado.

Olhando as coisas bem de perto, está claro que só Genoíno resolveu brigar – menos com a matéria do que com as supostas fontes de seus autores. Primeiro, tratou de desvalorizar a história. ‘Isso é espuma de gelo seco’, fez pouco. Depois, como sempre diz a imprensa, ‘desabafou’: ‘Estou ficando irritado com esse baixo clero que faz especulação’.

Mesmo a concorrência, que teria interesse em puxar o tapete da reportagem da Folha, aceitou-a como verdadeira.

‘Nas últimas 48 horas, o presidente (…) acionou parte de sua equipe para cobrar explicações pelo vazamento de informação de que pretenderia promover mudanças na equipe ministerial’ – assim começa a matéria do Estadão, assinada por Tânia Monteiro e Gilse Guedes, sobre o desmentido da troca.

E logo adiante: ‘Quando soube que a informação partira de petistas, interessados em revitalizar o papel de Dirceu, Lula irritou-se e decidiu soltar uma nota oficial (…)’.

Distraída, a Folha, numa matéria com o ministro Dirceu, de Buenos Aires, escorregou ao falar duas vezes em ‘rumores’ para se referir ao que os dois repórteres do jornal apresentaram como fatos – de forma incomum.

Porque a matéria é inteiramente desprovida de corroboração.

Autorização do chefe

Naturalmente, não seria de esperar que alguém assumisse as suas informações. Mas o incomum é que, à falta disso, os repórteres resolveram dispensar o endosso das proverbiais ‘fontes’ não identificadas – ‘um auxiliar do presidente’, ‘um político com trânsito…’, ‘um colaborador próximo…’, ‘um assessor…’, ‘um integrante da cúpula…’.

Foi como se tivessem decidido que, não havendo o on, apelar para o off não faz diferença alguma. A decisão parte implicitamente do princípio de que, se o repórter está seguro do que vai escrever, a atribuição das informações a um elenco de anônimos pode ser apenas um ritual para resguardar a credibilidade do jornal.

Nenhum grande jornal americano publicaria uma reportagem como essa, que dá a impressão de que os autores estavam presentes quando os protagonistas da matéria disseram o que lhes foi atribuído.

No entanto, ‘em off‘, a corroboração pela corroboração não corrobora coisa alguma. Não é um breve contra o erro nem contra a mentira. Se o repórter entendeu mal, foi preguiçoso, ou agiu de má-fé, o fato de ele citar uma ou mais fontes com o grau de generalidade dos exemplos acima só servirá para tornar verossímil o trabalho errado, incompleto ou desonesto. Portanto, pior para o leitor, a quem toda informação não assumida pede implicitamente um voto de confiança.

É o que pensa também o ‘editor público’ do New York Times, Daniel Okrent – cujo artigo do último domingo, ‘Um eletricista da cidade ucraniana de Lutsk’, sobre os usos do off, obrigou este leitor a reabrir, a partir do parágrafo precedente, a nota que dera por pronta e acabada na véspera.

‘Por que citar fontes anônimas, afinal?’, pergunta Okrent. ‘Será que as suas palavras ganham credibilidade por estarem cercadas de aspas?’ Para ele, esse recurso ainda por cima impede que se cobre de quem de direito – não as fontes duvidosas, mas os próprios redatores – a precisão das informações.

Okrent abomina offs, embora reconheça serem um mal necessário. Ele acha ‘exasperante’ passar uma manhã com o Times por causa do que o jornal tem de ‘um analista’, ‘um entendido’, ‘um advogado envolvido no processo’, ‘um alto funcionário do Departamento de Estado’, ‘um estrategista democrata’…

E isso, mesmo depois da política adotada pelo jornal em fevereiro sobre o uso de fontes anônimas. O fundamento dessa política é que o off requer que jornal ‘assuma a obrigação não apenas de convencer o leitor da confiabilidade das fontes, mas também de transmitir o que se possa apurar de suas motivações’.

Pela nova linha, o repórter deve identificá-los a um editor da cúpula da redação, a menos que o off envolva ‘cruciais questões legais ou de segurança nacional, em que as fontes, se expostas, enfrentariam graves conseqüências’.

Se o repórter não quiser entregar a sua fonte, tem o direito de pleitear imunidade à regra, mas só o editor-executivo Bill Keller pode dispensá-lo de cumpri-la. (Ninguém lhe pediu isso ainda.)

Rasteira das fontes

O que a política do Times tem de melhor é a determinação de que as fontes sejam descritas de maneira a menos abstrata possível. No exemplo de Okrent, em vez de ‘um funcionário do Congresso’, deveria se mencionar ‘um membro do corpo de servidores do Congresso que trabalha para o líder da minoria’.

O ponto, obviamente, é que, sendo o off parte das regras do jogo da notícia, o leitor tem o direito de ter pelo menos um vislumbre das possíveis intenções por trás de uma inconfidência sem paternidade assumida.

Uma coisa é um aliado de José Dirceu dizer que Aldo Rebelo está na marca do pênalti. Outra coisa é um desafeto de Dirceu dizer que este está a fim de colocá-lo na marca do pênalti.

‘Em conversas reservadas ao longo do dia de ontem’, escreveram Alencar e Rodrigues, ‘o presidente deu demonstrações de que deve ceder ao PT, para preservar Dirceu’. Dado que eles não estavam no recinto onde se deram essas conversas, pode fazer diferença para o leitor ter uma pista de quem terá vazado o seu teor.

Não está em jogo a integridade de quem recebeu e vai transmitir a informação. Mas estão em jogo, por definição, os interesses e a seriedade de quem a passou.

Okrent vai mais longe. Sugere que os repórteres avisem aos seus informantes anônimos que, se ficar demonstrado que eles se aproveitaram do off para mentir, serão identificados.

De qualquer forma, não existe solução ‘ótima’ para o problema do off. Por mais cuidados que tome e por mais honesto que seja, nenhum repórter estará a salvo de levar uma rasteira de sua(s) fonte(s) sigilosa(s). E nenhum leitor, por mais esperto que seja, estará isento do risco de ter depositado a sua confiança onde não deveria.

P.S. O ‘eletricista da cidade ucraniana de Lutsk’ do título do artigo de Okrent reproduz como um repórter do Times descreveu uma fonte que não queria ser identificado. Outro exemplo do gênero citado no artigo é ‘um homem de olhos azuis com a barba esvoaçante’. [Texto fechado às 12h58 de 13/6]