Dona Augusta, 63 anos, mãe de Reinaldo Aparecido Leite, motorista do microônibus que foi tragado pela cratera surgida na obra do metrô na Zona Oeste de São Paulo, fez ao repórteres presentes ao enterro do seu filho, na sexta-feira (19/1), as perguntas que nenhum jornalista havia até então apresentado às autoridades e responsáveis pela construção.
Ela começou contestando o modelo de negociação geralmente utilizado nas desapropriações para obras públicas, que consiste basicamente em estrangular o proprietário até fazê-lo aceitar o menor preço. ‘Por que pagar o valor venal do imóvel, se vale mais?’, perguntou, em sua simplicidade, questionando por que esses processos não consideram o valor real de mercado dos imóveis. Mais adiante, levantou a hipótese de o consórcio responsável pela obra ter negligenciado a necessidade de interditar a rua Capri aos primeiros sinais de instabilidade no terreno.
Dona Augusta compôs suas dúvidas durante o tempo que passou conversando com moradores de casas interditadas na região. Desenvolveu suspeitas, como um jornalista deveria fazer, e lançou-as ao ar quando teve a oportunidade e microfones diante de si. Iniciou sua resposta aos jornalistas pontificando sobre a simplicidade e os valores de sua família. ‘Somos pobres, mas trabalhadores, gente honesta’, declarou, e alinhou as perguntas que, segundo ela, sua família gostaria de ver respondidas.
De resto, as dúvidas de dona Augusta são muito semelhantes às questões que ficam para a opinião pública, passados mais de dez dias do acidente que paralisou a cidade e que provavelmente vai afetar a reputação da Companhia do Metropolitano, até aqui muito bem avaliada pelos usuários de transporte coletivo.
Maximizar lucros
Por trás dos questionamentos da mãe do motorista Reinaldo, sobram espaços para a sociedade discutir as relações entre a imprensa e o poder público e entre a imprensa e as empresas encarregadas das grandes obras de infra-estrutura.
No momento em que o governo federal conclui seu PAC – Programa de Aceleração do Crescimento em meio a discussões sobre o papel do governo e da iniciativa privada no financiamento de obras públicas, parece interessante analisar o comportamento da mídia diante do desastre que coloca em questão o modelo de concessão de obras no qual a presença fiscalizadora do Estado é considerada irrelevante.
Primeiramente, convém observar que, para a imprensa em geral, é quase tabu questionar a qualificação técnica do setor privado. O máximo que se constata é a alegação genérica de ‘falha humana’ ou ‘falha técnica’, como um evento circunstancial, e não como um risco altamente previsível, diante do modelo que comprime investimentos considerados não essenciais.
Como disse um engenheiro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas ao comentar o desastre, ‘se houve falha e o consórcio admite, podemos esperar mais segurança na seqüência da obra; mas, se, como quer fazer crer a imprensa, o desastre foi resultado de uma sucessão de fatalidades como a chuva ou as falhas geológicas do terreno, melhor não andar de metrô daqui para a frente’.
Também faz sentido lembrar que o modelo de negócio em si, que o governador José Serra chamou de ‘porteira fechada’, no qual o Estado contratante descreve suas exigências e deixa tudo por conta das empresas contratadas, é aceito genericamente pela imprensa como a única forma de melhorar a infra-estrutura do país.
O noticiário dos últimos dez dias, rico em detalhes técnicos sobre a construção do túnel, apenas resvalou nos riscos inerentes a contratos nos quais o interesse público colide com o interesse privado de maximizar os resultados de investimentos – com a inquestionável tentação de reduzir custos onde for possível.
Noticiário e o ‘opiniário’
Por trás do noticiário sobre uma tragédia, pode-se notar claramente os sinais das escolhas ideológicas dos meios de comunicação. Nos últimos dez anos, consolidou-se no imaginário da imprensa a idéia de que apenas a privatização pode nos resgatar do subdesenvolvimento.
Desde os protestos diante da Bolsa do Rio, durante os leilões de privatização das empresas de telefonia e de energia elétrica, quando os manifestantes eram tratados como marginais irracionais, fixou-se na mídia a tese de que o Estado é incompetente para cuidar de si mesmo.
Evidentemente, os benefícios das escolhas de políticas públicas nunca podem ser avaliados no curto prazo, e a revolução que ocorreu no setor de telecomunicações no Brasil deve-se em grande parte aos investimentos privados, mas também é preciso considerar que a qualidade dos serviços só vem se tornando aceitável com as mudanças no sistema de monitoramento por parte do poder público e com a imposição de maior competição entre as empresas operadoras.
Há certamente um ponto de equilíbrio entre as estratégias de financiamento de obras de interesse social – seja através da concessão de direito a exploração de serviços públicos a empresas privadas, seja pela operação direta do serviço por gestores do Estado. O que não se vê, no Brasil, é um debate maduro e equilibrado sobre o tema.
Para a imprensa, em geral, privatize-se tudo e ponto final. Para alguns protagonistas influentes, entre os quais alguns ministros do atual governo, manter tudo sob o manto do Estado é a melhor solução.
Esta é a semana em que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), marco inaugural do novo governo do presidente Lula da Silva, começa a ser destrinchado por articulistas, editorialistas, comentadores e especuladores em geral. O noticiário e o ‘opiniário’ que nos foi oferecido nos últimos dez dias à beira da cratera na Zona Oeste de São Paulo não deixa muita margem para otimismo quanto à possibilidade de sermos apresentados a um debate enriquecedor sobre nossa estratégia de desenvolvimento.
O bom senso parece ter rolado para o buraco junto com a rua Capri.
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Jornalista