Na semana passada, a imprensa de todo mundo foi tomada pelas manifestações contra a publicação de 12 caricaturas do profeta Maomé pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten e sua reprodução por outros jornais europeus. Acontece que o Brasil também tem uma história sobre imprensa e religião. Intolerância religiosa e liberdade de imprensa e seus limites estiveram presentes em nosso país, nos últimos 44 anos, principalmente.
O caso similar mais marcante foi sem duvida o de Nossa Senhora de Aparecida com a cabeça do jogador Pelé e o mais recente o vilipendiamento da imagem da própria Nossa Senhora, levado a efeito diante de câmeras de televisão por um pastor da Igreja Universal.
A imprensa é livre?
Na década de 1960, o jornalista Ciro Queiroz invadiu uma clínica em São Paulo para obter o depoimento da esposa do ex-atleta e milionário Willy Otto Jordan, que a internou contra sua vontade – uma versão real do que acontece com o personagem Julia da novela Belíssima, da Globo. A série de reportagens de Ciro foi publicada, a despeito das inúmeras tentativas do milionário de impedir a divulgação e o escândalo que se seguiu.
Na mesma década, pouco antes do escândalo da família Jordan, o chargista Otávio viu uma criação sua sair na primeira página do jornal Última Hora – e o barulho que a publicação causou. O chargista, embora continuasse a trabalhar para o jornal, passou a desenhar sobre temas menos polêmicos e não assinou mais nenhum deles por bom tempo. O motivo de tudo isso é muito fácil de se entender: Otávio desenhou Nossa Senhora de Aparecida com a cabeça do jogador Pelé.
O ‘Doutor Alceu’
A publicação trouxe uma reação imediata. Padres e bispos ficaram chocados. O cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta exigiu reparação. O problema chegou rapidamente à mesa de Samuel Wainer, fundador e presidente do jornal, no Rio. Otávio ficou assustado com tudo o que viu e ouviu. Ele, um ex-gerente de banco que havia optado por seus desenhos e caricaturas, teve que esperar um longo tempo para o fato virar passado e poder assinar novamente seus trabalhos. Nunca mais, porém, abordou o tema religião. O maior país católico do mundo agiu em 1962 da mesma forma que os mulçumanos, agora. E se a caricatura da santa tivesse sido reproduzida por outros jornais do país, pode-se imaginar o que teria acontecido.
A Igreja sempre esteve representada na imprensa. Nesta época da charge do Otávio, Gustavo Corção (1896-1978), defensor intransigente do pensamento mais convencional da igreja, ainda militava na imprensa. Corção teve uma longa lista de jornalistas perseguidos por sua pena felina, por se oporem aos dogmas e idéias que hoje são considerados os mais reacionários, mas que na época ainda sustentavam toda a estrutura religiosa, desde Roma. Corção foi o mais combativo defensor da tradição católica, ‘defensor da Santa Igreja’, tanto nos jornais associados como em O Globo, onde trabalhou por 10 anos seguidos, como em seus diversos livros, nas décadas de 1940, 50, 60 e 70. Mas, por outro lado, foi um articulista e escritor de primeira ordem, verdadeiro mestre da língua portuguesa.
Outro pensador católico, menos radical que Corção, mas com uma veemência ainda maior, desta época era Alceu de Amoroso Lima (1893-1982), o Tristão de Athayde. Começou muito cedo, em 1919, mas nos anos 1960 ainda estava bem ativo (assim como na década seguinte), escrevendo na Folha de S. Paulo. Também passou pelos diários associados e pelo Jornal do Brasil. Diferente de Corção, Tristão, chamado por Nelson Rodrigues de ‘Doutor Alceu’, não considerava o adversário um inimigo e procurava combater idéias, e não pessoas, apesar de nos anos 1930 ter se filiado ao movimento integralista de Plínio Salgado. Tornou-se o representante leigo autorizado pela Igreja junto ao governo Vargas, defendendo em 1931 a instituição do ensino religioso nas escolas públicas.
Um equívoco
Nesse mesmo 1962 da charge de Otávio sobre Nossa Senhora, a Igreja estava vivendo um de seus momentos de transição. O surgimento de uma Igreja modernista, a partir do Concilio Vaticano II, de João XXIII, e da encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI, fez surgirem padres com idéias antes só defendidas por comunistas. Frei Josafá, dos dominicanos, por exemplo, dizia em um de seus sermões, meses antes do golpe militar de 1964: ‘Me acusam de vermelho, mas o único vermelho aqui é o da cruz de Cristo’, dando um sorriso irônico, junto com segundos de silêncio para fazer o público refletir.
Momentaneamente, os católicos tradicionais se viram perdidos, diante desse novo posicionamento, que atingia principalmente os padres mais jovens. Tristão de Athayde e Gustavo Corção também não escaparam dessa perplexidade. Entretanto, a ditadura não gostava dessa nova igreja e facilitou muito para o contra-movimento criado por Plínio Correia de Oliveira, chamado de Tradição, Família e Propriedade, mais conhecido por TFP. Era o que havia de mais reacionário.
Defendendo posições arcaicas e utilizando-se de concentrações de adeptos bem vestidos e perfumados, empunhando bandeiras, em locais de grande movimentação, como os centros urbanos, a TFP ainda contava com os jornais, que não podiam lhe negar algum espaço para não ver esta ala radical da Igreja contra eles. Geralmente, o representante da TFP adentrava a redação, com certa timidez, indo direto ao secretário levar seu release e pedir a publicação. Todo aquele barulho das ruas contrastava com a fala mansa do representante da TFP, porque eles sabiam que não eram bem-vindos nas redações, mas tinham que passar por isso para que a notícia saísse, mesmo em pequena nota.
A TFP foi um equívoco da ala direita da Igreja, que acreditou na radicalização no estilo fascista, com o provável intuito de divulgação rápida entre as massas populares e também de intimidação, principalmente dos meios de comunicação. Mas, não conseguiu nenhuma das duas coisas, caindo na verdade no esquecimento e praticamente desaparecendo nos anos 1970, quando as esquerdas, incluindo a Igreja progressista, encontraram terreno fértil para crescer, diante da censura e da repressão da ditadura.
Ato chocante
A tradição católica reduziu-se praticamente a pequenos feudos, como o bispado de Campos, no Rio de Janeiro. Apesar do crescimento significativo da Igreja progressista, as autoridades católicas nunca deixaram de agir com grande dose de intolerância em assuntos de fé. Em meados dos anos 1960, estrelava o filme inglês que recebeu o titulo em português de Privilégio. Contava a trajetória de um ídolo de música jovem, tipo Roberto Carlos, no Brasil, mas com base mesmo nos Beatles. A agressividade desse ídolo atrai as massas de fãs e, buscando uma mudança de comportamento coletivo, banqueiros, empresários e representantes da Igreja criam um plano para controlar a juventude e evitar que esta se torne uma massa perigosa para a sociedade.
O filme era realista demais, principalmente ao mostrar uma igreja manipuladora da opinião pública. Um colega de redação viu o filme e me aconselhou a ir logo ao cinema, antes que fosse retirado de cartaz. Fui no mesmo dia, acertadamente: no dia seguinte, o filme saía de cartaz, como previra o colega. A opinião de todos nós que assistimos a Privilégio, era de que o filme desabava acusações muito pesadas sobre a Igreja e por isso acabou ‘inexplicavelmente’ retirado do cinema com poucos dias de exibição.
Primeiro cardeal brasileiro e da América Latina, o cardeal Arcoverde, no começo do século passado, parece que não foi tão intolerante, pelo menos com líderes de outras religiões. Há uma troca de correspondência entre o cardeal e esses lideres, debatendo questões como a injustiça do perdão. Arcoverde, que era formado em Direito Canônico pela Universidade Gregoriana, de Roma, e em Ciências Naturais pela Sorbonne, de Paris, não transigia em suas posições, mas era democrático no diálogo. Entretanto, se um dia se deparasse com uma charge daquelas que Otávio publicou em 1962, corpo de Nossa Senhora e cabeça de algum famoso da época, estampada no Correio Paulistano ou no Estado de S.Paulo, o que faria?
O mais recente caso de reação religiosa é o do vilipendiamento da imagem de Nossa Senhora de Aparecida durante um programa de televisão. Era um programa da Igreja Universal pelo canal de sua propriedade, a TV Record. O pastor-apresentador, para reafirmar com mais veemência a crença dos evangélicos da inutilidade de ícone, apresentou uma imagem de Nossa Senhora e passou a chutá-la, num ato chocante até mesmo para os fiéis que o assistiam.
Mais moderna
Algumas horas após, na manhã seguinte, o caso do vilipendiamento da imagem da santa estava repercutindo e criando reações das mais diversas autoridades religiosas contra o pastor responsável, bem como contra o próprio bispo Macedo, líder da Igreja Universal. Imediatamente o pastor foi afastado, depois transferido para um dos templos que a Universal tem no exterior. E a igreja do bispo Macedo passou a ter cuidado maior ao tratar de assuntos de outras religiões, até mesmo nas cenas teatralizadas do exorcismo de exus (entidade de umbanda e candomblé), que sempre foi uma das demonstrações mais fortes para o público presente nos templos.
Em 13 de novembro de 2001, a televisão americana, mais precisamente o programa Dateline, da NBC, apresentava um exorcismo ao vivo, promovido por um grupo de pastores liderados pelo reverendo Brian Connor, da Carolina do Sul. Aquilo que passava a ser um novo assunto para a TV americana já tinha rendido muito nos cultos da Igreja Universal. Mas agora o exorcismo estava em segundo plano nas reuniões da igreja. Tudo por causa do vilipendiamento da santa e do risco que corre uma religião em tratar de forma desrespeitosa santos, dogmas e mesmo práticas de fé. Segundo pesquisa do Instituto Gallup americano, a crença na possessão pelo diabo diminuiu de 49% para 41% ao longo da última década do século 20.
Ao longo desses mais de 40 anos, entre 1962 e hoje, a Igreja adotou um papel efetivo em defesa da condição social de seus fiéis, dos direitos humanos e das causas coletivas, o que influiu decisivamente para que se tornasse uma religião moderna, ao ponto de aceitar e conviver com as demais religiões e seitas. Entretanto, mesmo nesse contexto, se algum de nossos jornais (ou revistas) surgisse com uma charge de Nossa Senhora com a cabeça do jogador Ronaldinho, não há dúvida de que a reação da Igreja seria tão barulhenta ou até maior, em virtude da rapidez dos meios de difusão, do que aquela enfrentada pelo chargista Otávio e pelo jornal Ultima Hora, em 1962.
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Jornalista