Há 16 anos surgia o Plano Real, que visava a reduzir a inflação e estabilizar a economia brasileira – o que, de fato, acabou conseguindo. Os louros dessa ‘vitória’ são atribuídos, na maior parte das vezes, ao então ministro da Fazenda, o renomado sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que governaria o país por dois mandatos subsequentes. De lá para cá, o que sabemos sobre a economia parece não ter se diferenciado muito, ou seja, possuímos poucos subsídios, em geral, para analisar os rumos do mercado, as estatísticas econômicas e as complicadas propostas dos profissionais da área.
Antes de tudo, é imperativo lembrar que a economia é uma ciência social e que, embora seus representantes tentem desmanchar esses atributos, é isso que ela é e é isso que ela continuará sendo. Portanto, quando assistimos aos comentários de especialistas na televisão, lemos reportagens com os mesmos fins, ou escutamos notícias embasadas simplesmente em critérios abstratos ancorados no famoso ‘economês’, as profundezas da desinformação configuram-se nas nossas mentes confusas.
Sendo uma ciência social, para falar de economia precisamos entender que sem ela não teríamos condições materiais de sobrevivência, isto é, os produtos que satisfazem nossos anseios básicos não existiriam. Com o desmoronamento das relações feudais de produção, a Europa passou a caminhar no sentido de uma maneira distinta de organizar o trabalho, entendido aqui como a transformação da natureza pelo homem no intuito de facilitar, melhorar a sua vivência. Enquanto o capitalismo ascendia ao posto de sistema econômico dominante no Velho Continente, desligando os laços sociais anteriores e proporcionando novas formas de instituir a divisão do trabalho, noutros continentes as coisas aconteciam com feições diversas. Basta salientar o impacto das grandes navegações, conectando perspectivas de extrema incompreensão mútua e pondo em xeque o futuro de cada território.
Ortodoxos e heterodoxos
Se vamos analisar a economia brasileira, caros proprietários e trabalhadores das empresas responsáveis pela informação de larga escala, tenhamos respeito pela inteligibilidade dos nossos consumidores. Começamos este artigo resgatando o início do Plano Real e partiremos dele para ampliar a compreensão sobre o que ocorre em termos econômicos no Brasil desde o fim dos governos militares.
O ponto final da ditadura comandada pelas forças armadas a partir de 1964 comportou uma gama extensa de disputas políticas, pautadas por uma conjuntura internacional tensa, na qual a economia planificada dos Estados soviéticos dava indícios de que naufragaria mais cedo ou mais tarde. Forjava-se um contexto adequado para que as teses do neoliberalismo pudessem se fortalecer, em contraposição ao modelo do welfare State, que pensava o Estado como compensador das desigualdades geradas pelo mercado.
No Brasil, Gremaud (2007) aponta o espaço que vai de 1985 a 1994 como o momento em que perdurou uma espécie de saga de planos heterodoxos na economia nacional. Desde 1973, com a primeira crise do petróleo, a inflação tinha se tornado uma epidemia incurável e o combate a ela foi eleito como o centro das atenções das equipes econômicas da nova democracia. Nesse sentido, para os ortodoxos, a inflação é originada no processo de emissão monetária devido aos déficits públicos, aumentando a demanda e forçando a alta de preços. Para ser combatida, era imperativa a retração da demanda, mediante uma política recessiva. No pensamento heterodoxo, o exagero na demanda proveniente da emissão monetária é visto muito mais como uma consequência da inflação do que como uma causa. ‘Assim, a inflação poderia ser combatida sem o apelo ao controle da demanda, isto é, não haveria a necessidade de uma política recessiva’ (GREMAUD, 2007: 432).
As receitas austeras do BC
Até chegar ao Real, observamos vários planos que amargaram a derrota, sob o ponto de vista de frear as pressões inflacionárias, do Cruzado ao Collor II. Eles continham alguns elementos em comum, como o congelamento de preços, e acabaram obtendo resultados positivos no curto prazo, que rapidamente se mostravam fragilizados. Nesse ínterim, duas correntes com novas explicações para a persistência da inflação no Brasil ganharam força: os inercialistas e os pós-keynesianos. Os primeiros eram ligados a PUC-RJ e a ideia central deles dizia que, em determinado momento, a inflação adquire certa autonomia, num caráter inercial, no qual a inflação passada condiciona a atual, a atual faz o mesmo com a futura e assim prossegue. Os vilões seriam os mecanismos de indexação (correção monetária de preços, salários, câmbio e ativos financeiros), pois esses difundiriam as inflações pretéritas para o futuro. Os pós-keynesianos, por sua vez, se situavam nas assertivas de Tavares e Belluzzo (1984), ligados à Unicamp. Suas concepções baseavam-se no complexo processo de formação de preços keynesiano, distinguindo duas categorias de bens: o setor flex-price (concorrencial, matérias-primas) e o setor fix-price (oligopolizado, industrial). A despeito das relações interiorizadas nessas teorias, para o término do processo inflacionário seria preciso uma renegociação da dívida externa e um ajuste do patrimônio público, que possibilitariam uma condução estável da política cambial e de juros.
O Plano Real foi amparado por uma proposta de reforma monetária, que significava uma ‘[…] simulação dos efeitos de uma hiperinflação com o convívio de duas moedas, uma boa e uma ruim, com a primeira substituindo a última ao longo do tempo’ (GREMAUD, 2007: 448). O ataque às pressões inflacionárias se dividiu em três frentes: a) o ajuste fiscal, que tentaria equilibrar o orçamento da União para os próximos anos, sedimentado no corte de despesas, no aumento dos impostos e na diminuição das transferências do governo federal; b) a indexação completa da economia, iniciada em fevereiro de 1994, com a criação de um novo indexador, a Unidade Real de Valor (URV), cujo valor se manteria em paridade de um para um com o dólar e consistiria na própria taxa de câmbio; c) a transformação da URV em Reais, noutros termos, a reforma monetária, quando quase todos os preços estavam expressos em URV. O governo aplicou, em paralelo, o controle da demanda e da expansão monetária, restringindo a capacidade de repasse dos custos de produção para os preços – estratégia conhecida como âncora monetária.
É possível caracterizar a política econômica brasileira desde a ‘estabilização’, concretizada em 1999, no tripé que angaria as metas de inflação, o câmbio flutuante e o superávit primário. Apesar de o governo Lula ter começado com certa desconfiança dos capitalistas, o ministro Palocci seguiu os intentos anteriores, orientados pela fortaleza do combate à inflação. O Banco Central, sob as rédeas de um homem do setor financeiro, permaneceu com as receitas austeras e movimentando-se de modo autônomo.
Sentenças interpretativas como verdades científicas
Na rotina diária, o que vemos é o crescimento econômico do país representar pouco para a grande maioria das pessoas. Por que não nos perguntamos, por intermédio dos mass media, se o controle da inflação deve mesmo ser o norte das políticas econômicas brasileiras? Por que não se questiona a prevalência completa do mercado, considerado um organismo eficiente e dinâmico, o reverso do Estado, malvado, opressor, corrupto, ineficaz, burocrático e tudo mais?
Sem querer tirar os méritos dos economistas, em se tratando de uma ciência social, tem razão Maria da Conceição Tavares quando afirma com veemência que não se pode chamar a disciplina senão pela sua alcunha original, isto é, economia política. Estão em jogo não apenas mecanismos de controle disso ou daquilo, táticas de funcionamento da acumulação capitalista e de acomodação dos conflitos de classe. Estão em jogo filosofias sociais carregadas de compreensões acerca de quais grupos sociais devem ser privilegiados no acesso às riquezas, de que modo se deve organizar a divisão do trabalho e de que formas os lucros devem ser apropriados.
Por detrás dos panos, é fundamental discutir a relação entre capital e trabalho e pensar até que ponto o reino da propriedade sagrada deve vigorar universalmente, sem críticas, sem alternativas. Uma política econômica comprometida com uma nova sociedade, na qual as oportunidades de ascensão social realmente existam, terá de enfrentar os grandes capitalistas, certamente não os excluindo de maneira arbitrária, mas regulando os desvios prejudiciais ao tecido societário derivados da acumulação irrestrita de capital.
Algumas medidas, como a taxação das grandes fortunas, a renegociação da dívida externa ou a presença intensa do Estado na fiscalização das transações entre os bancos constituiriam atitudes valiosas. Mas hoje, o que estampam as manchetes é o calvário da inflação, que parece querer retornar aditivada. A rigor, não querendo discutir os pressupostos do capitalismo como único meio possível para a produção nas sociedades contemporâneas, o que por si só ainda é um debate pulsante, pelo menos as belezas do ‘economês’ mais elaborado deveriam pautar as percepções sobre a economia na grande mídia. Sem um ou outro conteúdo, as informações são rasteiras e o pior é que servem de combustível para a retirada de direitos dos trabalhadores, além de espalhar sentenças interpretativas como verdades científicas.
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Sociólogo, professor da rede pública do RS e jornalista