Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caminho da potência ao poder

As relações tensas entre Lula e a mídia podem ser compreendidas segundo a dualidade poder/potência. Para o sociólogo Michel Mafezolli a sociedade é um amalgama de ambos. O poder político, atualmente centralizado no Estado, permite ao governante concretizar sua vontade qualquer que seja seu fundamento (divino, eletivo ou da força bruta). Sob qualquer governante a vontade popular permanece fragmentada e quase sempre em estado latente (potência). Quando há uma fratura severa entre ambos, o governo (forma de governo) cai e nas entranhas da sociedade um novo regime é gerado e emerge para expressar sua vontade.


Desde que surgiu, a imprensa desempenha um papel central nas relações políticas. Os jornalistas podem aliar-se ao poder ou ser controlados por ele (imprensa nazi-fascista), podem tentar expressar a vontade popular de maneira a instituir um novo poder (jornalismo marxista-leninista); podem, ainda, mediar as tensões entre governo e população de maneira a permitir estabilidade na dualidade poder/potência e transições tranqüilas entre governantes (jornalismo plural, técnico e ético).


Quando surgiu no cenário político, Lula encarnava as aspirações populares contra o poder militar. Naquela época era cortejado pelos jornalistas de oposição e cortejava a imprensa para consolidar sua imagem pública. Em pouco mais de duas décadas ele ajudou a enterrar o regime militar, participou da instituição de um novo regime como deputado constituinte e, após algumas derrotas, chegou ao poder. Após eleger-se presidente, seguindo o exemplo de outros governantes (inclusive militares), passou a encarar a mídia como perigosa opositora.


Equilíbrio dinâmico


Em razão de sua trajetória da potência ao poder, que foi mediada e de certa maneira construída pela imprensa brasileira, Lula deve intuir que sua era está terminando. Mais do que ninguém está em condições de perceber que das entranhas da sociedade algo novo pode surgir e enterrar o PT, como ele próprio emergiu para enterrar a Arena.


A imprensa não deve, portanto, crucificá-lo em seu crepúsculo. Suas relações tensas com a mídia são reflexo de seus temores. E seus temores são perfeitamente compreensíveis. Queremos todos assistir a seu funeral político na mais absoluta tranqüilidade institucional. Torcemos para que novas fraturas entre a potência e o poder não ocorram.


Uma transição tranqüila entre a era Lula e a que está por vir interessa muito aos brasileiros. Interessa especialmente à própria mídia, pois a liberdade de imprensa foi uma conquista importante e deve ser preservada. Dela depende o equilíbrio dinâmico entre extrema-esquerda e extrema-direita – e sabemos que ambas, caso tenham uma oportunidade, podem suprimir a livre circulação da informação.

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Advogado, Osasco, SP