Desrespeito ou brincadeira? No último mês, a frase “Eu comeria ela e o bebê”, dita pelo humorista Rafinha Bastos no programa CQC, da Rede Bandeirantes, sobre a cantora Wanessa Camargo, que está grávida, teve grande repercussão. A artista sentiu-se ofendida, acionou a emissora e o humorista foi suspenso por tempo indeterminado. Após a punição, Rafinha, que é autor de outras declarações polêmicas, atacou a cantora e o canal nas redes sociais. Ele chegou a pedir demissão, mas a questão ainda está em aberto na emissora.
Wanessa Camargo e seu marido, o empresário Marcus Buaiz, entraram com uma ação contra o humorista e exigem R$100 mil de reparação por danos morais. Rafinha é acusado de ter abusado da liberdade de expressão artística e de ter dirigido “grosseira injúria” contra a cantora. Rafinha fez piada até com o processo e disparou no Twitter: “Estarei arrecadando $ para pagar meus processos com shows em Campinas (sab) e Goiânia (dom). Espero sua doação, amiguinho”. O humorista também será processado criminalmente. Com base neste episódio, o Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (18/10) pela TV Brasil discutiu os limites do humor.
Para debater o tema, Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o chargista Ziraldo e o jornalista Guilherme Fiuza. Caricaturista, escritor, jornalista, teatrólogo e cartazista, Ziraldo trabalhou no Jornal do Brasil e em O Cruzeiro e fundou, com outros humoristas, O Pasquim. Ziraldo também é autor de diversos livros infantis de sucesso, como FLICTS e O Menino Maluquinho. Guilherme Fiuza é colunista de política da revista Época e articulista de O Globo. Escreveu Bussunda – a vida do Casseta, biografia do humorista, e Meu nome não é Johnny. Em São Paulo, participou o jornalista e professor Gilberto Maringoni. Doutor em História Social pela USP, Maringoni escreveu Angelo Agostini – A imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal (1864-1910) e foi chargista político de O Estado de S.Paulo.
Humor na berlinda
Antes do debate no estúdio, Dines comentou, em editorial, a charge de Chico Caruso publicada na primeira página da edição de terça-feira, 18, do jornal O Globo. Nela, o chargista retrata o ministro Orlando Silva – que está sendo acusado de corrupção – cantarolando um trecho de uma famosa música do cantor homônimo. “Lábios que beijei, mãos que afaguei…”, diz a canção. Para Dines, a charge foi uma sátira hilariante que não pode ser entendida como agressão pessoal.
Dines sublinhou que a mídia brasileira não gosta de ser envolvida em discussões e que o afastamento de Rafinha Bastos merecia ser debatido abertamente. “Discutir o humor faz bem ao fígado e faz um bem ainda maior ao distinto público que assim se exercita na arte da reflexão e do debate. O Brasil ressente-se da falta de humor. Isso talvez explique a longevidade de certos problemas e certos personagens”, avaliou.
A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou dois profissionais do humor: o chargista Ique e o roteirista e cartunista Claudio Paiva. Para Ique, o comentário de Rafinha foi uma agressão gratuita e sem graça que ofendeu os telespectadores. “Quando eu extrapolo o meu humor e agrido o meu leitor, esse é o meu limite”. Claudio Paiva defende que as manifestações artísticas, durante o processo de criação, devem ser livres. No entanto, existem regras sociais e leis para punir os excessos. “Se você agride alguém com uma piada, terá que arcar com as responsabilidades”, disse.
Sem tabus
O cartunista ponderou que não devem existir assuntos proibidos porque é função do humor não sacralizar nenhum tema e desrespeitar todas as regras. Paiva destacou a inexperiência e o sucesso de Rafinha, que tem 34 anos, como fatores que contribuíram para o comportamento do humorista neste caso. “O cara está com o rei na barriga, achando que pode tudo. Vai ter um custo. Vai ter uma hora que alguém vai achar que aquilo não tem graça”, advertiu.
No debate ao vivo, Guilherme Fiuza ponderou que a discussão em torno da censura tanto por parte do Estado quanto da sociedade, no Brasil, já está superada. Neste episódio, deve-se refletir sobre a relação do humorista com a emissora. Para Fiuza, Rafinha fez uma piada infeliz, mas o canal deveria ter “bancado” o apresentador. Rafinha foi um dos profissionais que ajudaram a construir a marca do programa e contribuíram para a popularidade da atração – que foi calcada justamente na quebra de limites – e, por isso, não deveria ser “rifado” por medo da reação do público a uma piada mais agressiva. Fiuza vê o comentário sobre Wanessa Camargo como um “acidente de trabalho” e avaliou que Rafinha está tentando mostrar que não se arrependeu da sua postura. O jornalista não acredita que a influência do marido da cantora tenha determinado a suspensão do humorista: “O CQC está muito além disso”.
Dines comentou que o humor que está na moda atualmente é direcionado a improvisações e agressões, como nas apresentações stand up comedy. Para Fiuza, o humor tem “instinto assassino”. Na avaliação do jornalista, é preciso ter a gana da “crítica total”. O público de hoje, sobretudo os mais jovens, reverencia os humoristas que “tiram sangue”. Para ele, o humor inteligente é letal e pode ser de bom gosto.
Depende do personagem?
A autorregulação pode evitar que o “instinto assassino” vire “instinto suicida”. Fiuza relembrou que quando Tancredo Neves estava internado com diverticulite, o irreverente grupo Planeta Diário cunhou uma manchete que acabou não sendo publicada em seu jornal. Diante da comoção da sociedade com o estado de saúde do presidente, o grupo decidiu abrir mão do título “Brasil aliviado: Tancredo já está cagando e andando”. Para os integrantes do grupo, a piada perdia a graça diante da tensão do momento e da identificação dos brasileiros com o presidente.
Gilberto Maringoni disse que o humor não tem limite apenas em tese. Na prática, patrocinadores, patrões e o público determinam o que pode virar piada ou não. O professor destacou que em outras ocasiões Rafinha foi ainda mais cáustico, como, por exemplo, ao fazer piadas sobre estupro, e não foi punido. Desta vez, no entanto, ao agredir a cantora, Rafinha agrediu o público e ofendeu o marido de Wanessa, um empresário com importantes contatos na área da publicidade. “Foi muito mais um jogo do limite econômico concreto do que teórico, filosófico ou subjetivo”, disse.
Dines perguntou a Maringoni se seria possível uma saída alternativa com um bem-humorado pedido de desculpas de Rafinha a Wanessa Camargo no lugar do afastamento. O professor sublinhou que o humorista já se retratou em outras ocasiões em que passou do tom. “Agora, me parece que ele está sendo provocado, desafiado, e está dizendo ‘não vou pedir desculpas’ e fazendo graça disso. Está piorando a situação”, avaliou. O problema foi personificar a brincadeira ao falar de Wanessa Camargo. “Ele ‘fulanizou’ a piada”, brincou. Para Maringoni, o caso extrapola o debate sobre os limites do humor porque coloca em pauta os limites de qualquer cidadão, mas a polêmica em torno das declarações de Rafinha deve ser vista com mais leveza.
Velho problema
Humoristas enfrentam reações negativas desde que a caricatura surgiu no Brasil. Maringoni destacou que “o pau comia” no humor brasileiro no tempo do Império. “Você tinha caricaturas extremamente agressivas e muitas vezes o caricaturista não podia sair à rua porque o cara pegava ele na esquina. Isso acontecia com o Ângelo Agostini e com outros”, contou. O professor e jornalista ressaltou que é preciso respeitar os limites de cada época, a circunstância e os personagens envolvidos. E mesmo a morte, quase sempre um tabu, pode virar piada. Maringoni lembrou que, enquanto a sociedade não aceitava brincadeiras sobre a morte de Tancredo Neves, divertiu-se com piadas sobre a morte do presidente Emílio Garrastazu Médici.
Voltando à charge publicada na capa de O Globo de terça-feira, Ziraldo ponderou que Chico Caruso é “genial”, mas não pode “colocar no pelourinho” alguém cuja culpa não foi provada. O chargista deveria aguardar o rumo das investigações antes de “malhar” o ministro. Caso seja provado que Orlando Silva é inocente, já estará desmoralizado perante a opinião pública. Para Ziraldo, a charge foi um trocadilho de segunda categoria e o editor não deveria ter dado um grande destaque para ela na paginação do jornal.
Sobre o episódio envolvendo o ex-apresentador do CQC, Ziraldo disse que não deve haver censura. A liberdade de expressão é garantida na Constituição. Para ele, cada um deve fazer o que quiser, mas terá que pagar pelo que disse. O chargista classificou Rafinha Bastos de “doente” porque o comentário sobre Wanessa Camargo era ofensivo – e nem foi engraçado. Ziraldo considera que a emissora deveria, sim, ter punido Rafinha pelo “nível da grosseria”. No entanto, o canal poderia ter oferecido direito de defesa ao apresentador.
Milhões de críticos
Ziraldo afirmou que o “pensamento estilhaçado” da opinião pública na era digital torna a polêmica ainda maior. “Eu tenho pavor deste tipo de atitude [do Rafinha]. Tudo no mundo tem limite. Você não tem caminho aberto para tudo. Agora, é difícil você ser o dique, principalmente agora que a discussão tem 200 milhões de opiniões diferentes. Antes, você ficava só no jornal. Agora, todo o mundo pode dar palpite”. Ele sublinhou que qualquer comentário pode ter uma repercussão espantosa.
O chargista lembrou que, por muito tempo, sobretudo durante a ditadura militar, o humor exigiu, além de criatividade, coragem. “Todos corriam riscos […] Se você faz humor grosseiro, humor negro, de insulto, e faz sucesso, o céu é o limite para você, o que é uma barbada. A coisa mais fácil do mundo é fazer este tipo de humor. Eu quero ver é fazer o humor do Veríssimo, quero ver fazer o humor do Millôr Fernandes, do Woody Allen”, desafiou.
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A essência do humor
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 615, exibido em 18/10/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
A charge de Chico Caruso no Globo de hoje é duplamente antológica: pela sua qualidade mas também como exemplo da sátira hilariante, arrasadora, que no entanto não pode ser tomada como agressão pessoal. O cartunista simplesmente jogou com os homônimos e deixou que a sensibilidade e a inteligência dos leitores fizessem o resto.
Nossa mídia tem algo de vestal, detesta ser envolvida em discussões, mas o caso do humorista Rafinha Bastos do CQC bem que merecia ser debatido abertamente. Inclusive para lhe oferecer a oportunidade de pedir desculpas públicas à cantora Wanessa Camargo, alvo do seu cáustico comentário.
Discutir o humor faz bem ao fígado e faz um bem ainda maior ao distinto público que assim se exercita na arte da reflexão e do debate. O Brasil ressente-se da falta de humor. Isso talvez explique a longevidade de certos problemas e certos personagens.
A sátira é mais eficaz do que o panfleto: a agressão é incômoda, penosa, por isso quase sempre esquecida. A piada dá prazer, ela pede para ser repetida e multiplicada. Adolf Hitler ficou furioso quando viu O Grande Ditador de Charles Chaplin, o Carlitos. O poderoso Fuhrer não temia ser combatido mas apavorava-se em ser ridicularizado.
O que está faltando em nossa atribulada modernidade é compreender a essência do humor, tanto do bom como do mau humor, já que no fundo eles são contíguos. Este é um segredo ao qual só os grandes humoristas têm acesso.