Fato amplamente divulgado pela imprensa, o Ministério Público paulista acusou – e a Justiça acatou – denúncias de crimes sexuais, manipulação genética e evasão fiscal contra o médico especialista em reprodução humana Roger Abdelmassih, o que o levou à prisão e também acarretou a suspensão temporária de seu registro profissional pelo Cremesp. Tentativas de habeas corpus foram negadas pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Considerações merecem ser feitas, especialmente por quem está de fora na atuação judiciária ou ético-profissional, portanto sob impedimento de prestar maiores esclarecimentos.
O início do caso em tela não deixa de ser curioso: a Unicamp sempre teve atuação de ponta e ética na área de ginecologia e obstetrícia. O falecido chefe do setor em Campinas e na Faculdade de Medicina da USP, José Aristodemo Pinotti, ficou muito conhecido também por sua atividade política, mas sua competência técnica sempre foi considerada internacionalmente como expressiva.
Com pioneirismo na área de reprodução humana e fertilização artificial, vários anos atrás um médico de Campinas ganhou notoriedade e muita discussão na área da ética médica, pois o assunto era novo e não regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina – tratava-se do dr. Milton Nakamura. Sucedeu ao mesmo o médico Abdelmassih, que montou clínica de renome na capital paulista e ficou famoso.
Arquivamento por falta de provas
Eis que um número expressivo de ex-pacientes suas começaram a denunciá-lo, sendo a primeira pessoa a fazê-lo uma ex-funcionária demitida da clínica. Em resumo, sempre houve alguma coisa de polêmico envolvendo essa sub-especialidade e o médico em questão.
Não conheço o dr. Roger pessoalmente e, naturalmente, não tive acesso a seus processos na Justiça e no CRM. As considerações, então, serão de natureza genérica.
Nos tempos em que era conselheiro do Cremesp, volta e meia apareciam denúncias de assédio sexual. Como resolver a questão espinhosa de casos se nem ao menos uma testemunha, pois as coisas se passavam apenas entre médico e paciente, ou seja, palavra de um contra a do outro? A maioria dos casos era arquivada por falta de provas, o que só fazia aumentar a freqüente alegação de corporativismo entre médicos. Não obstante, alguns casos em que fui o instrutor da sindicância me chamaram a atenção.
O primeiro deles foi de uma moça, que veio com o marido no CRM, encaminhada por uma Delegacia da Mulher e que não quis abrir inquérito (?). Sua história é a de que teria ido a um serviço público de saúde por diminuição de audição, foi atendida só e às pressas, foi diagnosticado cerume no conduto auditivo e marcada uma lavagem de ouvidos para alguns dias depois. Contou a denunciante, mulher simples, que ao fazer a lavagem de ouvidos, o otorrinolaringologista, já acima dos 60 anos, começou a apalpá-la e tentou beijá-la. Disse que fugiu chorando, contou ao marido e foi imediatamente à delegacia e depois ao Cremesp.
Como de praxe, após lavrar a termo o acontecido, foi convocado o citado médico para tomar ciência da denúncia e dar sua versão por escrito, também lavrada. Na audiência presencial, o médico mostrou-se horrorizado. Dizia – verdadeiramente – que nunca tivera problemas éticos com o CRM, que era tudo invenção da paciente e por aí afora. Nada que fosse surpresa. Como os únicos elementos da sindicância eram a palavra do médico e a da paciente, dei meu parecer no sentido do arquivamento por falta de provas, acatado por unanimidade pela plenária de conselheiros.
Fotos do plantonista
Embora não fosse obrigatório, pois a conclusão final da sindicância era enviada por carta com aviso de recebimento para as partes envolvidas, julguei necessário convocar novamente a paciente para lhe explicar os motivos do arquivamento. Esperava uma conversa tensa, cheia de trovões e relâmpagos. Para minha surpresa, a moça, com seu marido, me agradeceu imensamente – apenas o fato do médico ter sido chamado ao CRM representou para ela uma vitória moral! Depois que o casal foi embora, passei da dúvida à certeza: alguma coisa de errado certamente deveria ter havido, pois o simples andamento da sindicância havia aliviado a denunciante. Contudo, mesmo querendo, nada mais poderia ser feito, pois era a eterna questão da ausência de provas.
Outro caso foi a denúncia de uma mãe de adolescente, que denunciava um plantonista de pronto-socorro também por assédio sexual. O resumo dessa ópera é o de que aquela família estava retornando das férias e a moça estava com sinais de resfriado e febre. Resolveram, antes de ir para casa, passar no PS de seu plano de saúde. Foram atendidas por médico jovem, que examinou detalhadamente a moça e declarou aos familiares que havia, sim, um quadro infeccioso, mas que poderia não ser um mero quadro gripal, e sim, uma apendicite, no início. Pediu que todos se retirassem, inclusive a enfermeira e, a sós com a garota, procedeu ao toque retal e à medida da temperatura oral e anal. Esse é o procedimento correto na avaliação de uma suspeita de apendicite, mas o fato é que o quadro evoluiu como um resfriado mesmo.
Passado um período de vergonha, a moça, de uns 16 ou 17 anos, contou o que se passou no consultório quando estava a sós com o médico e sua mãe compareceu ao Cremesp para fazer a denúncia. Fui eu a sindicar o caso: além do relato da mãe da paciente, também registrado, a mesma trouxe algo inusitado – ainda não haviam as câmaras digitais e quando voltaram das citadas férias ainda havia filme na máquina fotográfica e resolveram acabar o mesmo com fotos do médico, do mesmo com a linda e bronzeada moça, todos sorridentes.
Presença obrigatória de enfermeira
Como de praxe, foi solicitada a manifestação do médico. Eu esperava novamente as tradicionais negativas, mas surpreendentemente o tal plantonista reconheceu como verdadeiros todos os fatos e em várias páginas justificou cientificamente como uma dor de garganta se transforma em apendicite. Tentou, na verdade, salvar a vida da paciente e agir técnica e eticamente da maneira correta. Ora bolas! Até hoje, nenhum médico que soube da história conseguiu concordar com nem 1% das alegações do médico denunciado. E acredito que para os leigos também as coisas devem soar muito estranhas. O caso (com as fotos até) foi transformado em processo disciplinar e o médico punido (por burrice própria e por imaginar que os conselheiros também fossem asnos…).
São poucos, mas há casos de assédio sexual com testemunhas: também me lembro de um médico que já tinha processos em andamento no Cremesp, de altercação verbal a tentativa de assassinato de paciente em PS (atenção: o médico é que saiu correndo pelo corredor atrás do paciente, com um canivete em mãos, sendo contido pelos seguranças e chamada a polícia). No caso do assédio sexual, deixou a porta aberta e quando alguns colegas e funcionários apareceram começou a se gabar de suas, digamos, qualidades na área do baixo ventre. Foi logo afastado do hospital e, evidentemente, um tempo após teve sua licença para exercer a profissão devidamente cassada, além do inquérito policial. Não soube do desfecho na Justiça.
Em suma, casos que envolvam exageros na esfera sexual possuem essa dificuldade: dificilmente haverá uma prova material, como uma gravação de câmera de segurança, e também é muito raro haver testemunha presente aos atos. Aliás, parodiando os advogados, ‘a prova testemunhal é a prostituta das provas’. Cada um que interprete à sua maneira.
Outros poucos casos puderam ser levados a julgamento por haver justamente um grande número de mulheres denunciantes, sem conexões entre si. Um caso que alcançou a mídia alguns anos atrás foi de conceituado médico de Brasília, que acabou cassado pelo Conselho do Distrito Federal.
Não se deve esquecer que, embora mais raro, também pode ocorrer o assédio sexual de médica contra homem paciente e o homossexual masculino ou feminino. As dificuldades para se chegar à verdade são as mesmas, claro. Não por outro motivo, há resolução já antiga do Conselho Federal de Medicina que torna obrigatória a presença de uma enfermeira, por exemplo, ao se examinar paciente ginecológico, urológico etc.
Conspiração para obter indenizações?
O médico, querendo ou não, ainda goza de certa autoridade em relação ao paciente, que via de regra obedece a suas ordens, mesmo em um exame genital. E não tenho dúvidas de que há, sim, médicos que se aproveitam dessa particularidade. Há uma questão de poder envolvida: querendo ou não, ainda nos dias de hoje, o médico para a prática de atos libidinosos.
Outro aspecto deve ser levado em conta: várias denúncias aos conselhos de medicina fazem parte de uma estratégia de alguns advogados com o fim de obter uma indenização na Justiça cível. Uma condenação pelo CRM pode auxiliar o juiz a tomar uma decisão.
No caso de Roger Abdelmassih, algumas coisas chamam a atenção: a primeira denunciante foi ex-funcionária demitida; a maioria dos alegados ilícitos ocorreu ainda na década de 1970 e só agora vão se somando mulheres a serem ouvidas pela polícia para instrução do devido inquérito criminal. Certamente, as pacientes (cujos nomes e dados estão em segredo de justiça) devem ser pessoas abonadas, pois o médico ora preso sabe-se que cobra bem seus altos honorários.
Haveria uma conspiração para obter condenações no CRM e na Justiça criminal para a obtenção de indenizações vultosas? Parece muito estranho e pouco provável.
Mais de 60 denunciantes
E a imprensa? Como deve a mesma se comportar frente a caso tão espetacular assim? Muitos lembram o caso da Escola Base, outros tantos questionam a necessidade da prisão e nos vários blogs e assemelhados que abordaram o tema as discussões na maior parte das vezes são imprestáveis: ou excessivamente feministas, ou também amplamente machistas e de gosto duvidoso. Alguns defendem ardorosamente o médico, outros o demonizam. Como o papel e a internet a tudo aceitam…
Médico rico e famoso em área de grande importância pessoal e familiar, a da reprodução assistida, é acusado de estupro. Quantas manchetes podem rivalizar com essa? Mas os jornalistas também enfrentam grandes dificuldades: não têm acesso aos autos do processo, pois o mesmo corre em segredo, como já dissemos. O médico não dá entrevistas e o famoso ‘outro lado’ fica a cargo de seu advogado. Não se conhecendo quem são as denunciantes, como ouvir casos teoricamente concretos? Algumas TVs, por exemplo, de alguma forma conseguiram fontes que levaram a algumas das denunciantes, que denunciaram e concederam entrevistas aos repórteres sob a condição do anonimato, com suas feições e vozes disfarçadas. Seriam verdadeiras vítimas ou invencionice de algum jornalista mal intencionado? Difícil, ou mesmo impossível, saber.
O caso ocorrido anos atrás do pediatra pedófilo que se auto-incriminou com vídeos de seus atos jogado no lixo acarou e facilitou as coisas para o julgamento judicial e nos conselhos de ética. Mas não é o que acontece aqui – no caso do pediatra, a imprensa teve acesso a muitos dados.
Minha opinião? Não posso minimamente dizer o que de efetivo em tese poderia ter ocorrido, pois minhas informações são também as da imprensa. Contudo, acredito que pelo grande número de mulheres denunciantes sem relação entre si, o Ministério Público agiu bem e a polícia agora terá que ouvir a história de cada uma delas. Da mesma forma foi correta a atuação do Cremesp, abrindo 51 processos, pois são casos de pessoas diferentes e um único médico, portanto de casos que podem ser entendidos diferentemente. E a interdição cautelar do médico foi medida acertada, pois caso o mesmo venha a ser libertado e aguarde o julgamento em liberdade, não poderá exercer a profissão.
Questiono apenas a necessidade da prisão: o indiciado tem endereço conhecido e fixo, seu nome é conhecido suficientemente para o mesmo desaparecer e creio ser difícil que em liberdade venha a ameaçar denunciantes ou testemunhas. Mas promotores e juízes devem ter suas razões para tal, várias divulgadas pela imprensa.
Concluindo, acredito que é um caso difícil, mas que decisões obrigatoriamente deverão ser tomadas. Não deve cair no esquecimento. Mas a imprensa tem que ser cuidadosa: são mais de 60 denunciantes até o momento, seus familiares e amigos, leitores e espectadores a especular sobre processos que estão sob sigilo judicial: caso ao final de tudo comprove-se a inocência do médico, que parece pouco provável, danos irreparáveis terão sido cometidos e não existe instrumento legal ou qualquer modo de reparar mais uma história de médico-monstro. A sorte está lançada.
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Médico, mestre em Neurologia Clínica pela Unifesp, ex-conselheiro e ex-diretor do Cremesp