Esta é uma história típica de como as instituições são incapazes de se adaptar à realidade e, presas às formas, renegam conteúdos.
Dirigia em caráter interino o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT (e ainda dirijo, embora, cumprida minha missão, espere do ministro de Estado que me exonere, já que o cargo está à sua disposição desde janeiro).
Tínhamos lá (e temos) um problema: para atender a objetivos de inclusão social, levando conhecimento científico a formadores de opinião e ao público em geral, já não bastam hoje os processos tradicionais de transporte, armazenamento de informação, edição de compêndios, transmissão escolar e formação de professores. A velocidade das mudanças é tanta e a especialização de tal monta que é necessário atualizar o conhecimento público mediante informes com o tratamento semântico capaz de difundir conceitos a diferentes públicos, desde pessoas com graduação universitária até usuários menos instruídos de tecnologias agrícolas ou industriais..
Sem cabimento
O provedor de informação em bancos de dados de acesso público não trabalha com atualidade no sentido jornalístico do termo (seria difícil imaginar atrativos jornalísticos em conhecimentos por vezes muito abstratos, como os das teorias matemáticas) nem se parece com o professor do ensino tradicional, não só pela ausência da sala de aula mas pelas contingências e recursos propiciados pelos sistemas eletrônicos que convergem para a internet. É função que pode ser exercida, por exemplo, por pesquisadores em nível de mestrado e bacharéis em vários campos, desde que com algum treinamento suplementar, que varia com a natureza de sua formação.
Pensando nessa hipótese, e imaginando que, com a estrutura dos institutos de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia, seria possível acrescer às habilidades profissionais de pessoas formadas em jornalismo – domínio presumível do texto e do tratamento de imagens – os conhecimentos indispensáveis de sistemas de informação, filosofia da ciência e as especificidades envolvidas, tentamos algo novo.
Por intermédio de uma fundação, pretendemos contratar graduados em jornalismo que serviriam para um projeto piloto. Os salários oferecidos estavam bem acima do piso salarial de Brasília e o horário, como para os demais profissionais envolvidos nesta e em outras atividades do Instituto – cientistas da informação, tecnólogos, bibliotecários, profissionais de informática etc. – seria de oito horas diárias, de segunda a sexta-feira.
Foi o bastante para que o superdiligente e ultracorporativo Sindicato de Jornalistas de Brasília enviasse carta à fundação contratante ameaçando com processos judiciais e castigos demoníacos a suposta violação da sagrada lei das cinco horas. Expliquei pelo telefone ao presidente do sindicato, um homem de voz cansada, que não havia possibilidade de dar o mesmo trabalho a duas pessoas com horários diferentes e que, tal como acontece com redatores de publicidade ou halterofilistas profissionais formados em jornalismo, a prevalência de tal horário não teria cabimento. Se algum jornalista se alista nas forças armadas, ou resolve se especializar na pintura de quadros de nus artísticos, as cinco horas, coitadinhas, já tão velhinhas, são obrigadas a dançar.
Verdade incontestável
Além disso, todo mundo sabe que essa cláusula é quase sempre fictícia e serve apenas como termo de manobra. Em toda minha vida, jamais trabalhei as tais cinco horas e também jamais ganhei, graças a Deus, o tal piso; sempre havia um acordo para remuneração suplementar. Foi o que me aconselhou o tal colega presidente de voz cansada: faça um acordo de duas horas extras diárias horas, compense o sábado e lá estão aos oito horas sem maior problema. E informou que até o Senado faz isso.
O Senado talvez possa. Mas o IBICT, órgão da administração direta fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União, não poderia admitir tal ajuste por debaixo dos panos. Assim, ouvida a Fenaj, que não pôde nem poderia fazer nada, providenciei o cancelamento do edital e abandonei a frustrante idéia de aproveitar a formação dos jornalistas para uma atividade decente de informação não necessariamente atual, porém didática em termos de educação permanente, sobre ciência e tecnologias de uso social.
Certamente os jornalistas de Brasília não bastam para tantos bons empregos. As escolas locais são talvez insuficientes para atender a tão amplo mercado. O sindicato, com a arrogância que o clima do planalto impõe e contagia, impera sobre o melhor dos mundos, em seu castelo com muralhas de cinco horas. Na defesa dessa prerrogativa , agarra-se bravamente à faca e segura o queijo com mão firme.
Como os contratos de terceirização, que padeciam de antigas distorções, estão sendo licitados novamente, tais contratações não sairão já: quando e se saírem, não violarão tão sagrada – como é mesmo o chavão? – ‘conquista dos trabalhadores’ ou qualquer outra das verdades incontestável que brilham na oratória sindical – proposições que eu, velho jornalista incrédulo e pacífico, não sou besta de contestar.
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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina