Bem pesadas as coisas, parecem ter chegado a um razoável empate as opiniões pró e contra as manifestações contra as charges de Maomé. Ao mesmo tempo, aqui e ali, aparecem exemplos de censura aceitável. Tanto que num mesmo dia de amplas e continuadas repercussões do incidente entre islamitas e suas contrapartes, a imprensa divulga exemplos significativos de restrições ocidentais ao que poderia vir a ser chamado de ‘liberdade irrestrita de expressão’.
Assim é que uma mesma edição de O Globo (7/2/2006) noticiava:
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Na primeira página, que os Rolling Stones haviam concordado em ser censurados domingo no Super Bowl (partida final da Liga Nacional de Futebol Americano), considerado o evento anual de maior audiência na televisão americana. O fato: ‘No show de domingo, quando Mick Jagger cantava o popular Start me up, o verso you make a dead man come (você faz um morto gozar) foi cortado, e uma referência a coks (pênis), na nova canção Rough Justice, também desapareceu.**
Em nota na coluna ‘Gente Boa’: ‘A juíza da 28ª Vara Criminal, Mônica Tollledo de Oliveira, acatou a denúncia da Federação Israelita do Rio de Janeiro contra a Editora Centauro, de São Paulo, por editar e vender livros de cunho racista, como Minha Luta, de Adolf Hitler, e Protocolos dos Sábios de Sião (apócrifa). Os diretores da Centauro serão intimados e interrogados’.Os dois exemplos, recolhidos em um mesmo dia, apontam para uma evidência: a democracia costuma conviver com a censura. Certo, a constatação é antipática ou politicamente incorreta, mas é preciso chegar a algum acordo sobre o que se quer dizer com essa palavra.
Toda vez que editamos jornalisticamente um material qualquer, podemos deixar de lado aspectos que não consideramos convenientes ou que julgamos de má qualidade. Esta é a ‘censura estrutural’, necessária para se manter um nível técnica ou socialmente desejável do produto destinado à circulação cultural. Não estamos habituados a pensar nesse tipo de manipulação como censura, uma vez que ela pode ser um requisito de qualidade. O que nos preocupa é a ‘censura conjuntural’, essa operação geralmente violenta, empreendida por donos do poder.
Até o suposto rebelde
Há momentos, porém, em que as duas formas se confundem, fazendo-nos incorrer no risco da paixão dos julgamentos. É que para a consciência democrática do Ocidente, tornou-se ‘natural’ a proliferação infinita dos discursos. Jean Baudrillard, pensador do pós-modernismo, já havia se dado conta disso, cerca de três décadas atrás:
Nós usamos e abusamos de palavras, fonemas, significantes, sem restrição ritual, religiosa, ou poética de qualquer tipo, em toda ‘liberdade’, sem obrigação nem responsabilidade frente ao imenso material que ‘produzimos’ à nossa vontade. Cada um é livre para usar sem fim, para explorar sem fim o material fônico, em nome do que ele quer ‘exprimir’ e com consideração apenas para aquilo que tem a dizer. (A troca simbólica e a morte, 1976).
Essa liberdade de fala, ‘essa idéia da linguagem como uma mídia que serve para fazer tudo’ corresponderia à utopia da economia política, segundo a qual ‘a cada um segundo suas necessidades’. Deste estatuto da nossa comunicação discursiva vive a mídia ocidental. O problema é que outras culturas podem opor restrições simbólicas a essa configuração político-econômica e produtivista da linguagem. Teremos aí, então, o traço forte de uma diferença cultural que, a depender das circunstâncias históricas e das instigações políticas, pode assumir feições histéricas ou violentas.
Foi exatamente o que aconteceu, o que vem acontecendo, de fato. Evidentemente, habituados à apropriação produtivista e nada simbólica do mundo, de dentro de nosso espaço de suposta liberdade discursiva, indignamo-nos com o que nos parece anacrônico ou culturalmente infantil. Mas se prestarmos bem atenção ao nosso entorno, se lemos com cuidado o jornal nosso de cada dia, não demoraremos a nos dar conta de que até mesmo o suposto rebelde Mick Jagger aceita, na hora conveniente, a tesourada do censor.
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Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ