Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cerco à imprensa “independente”

O jornal fluminense O Globo publicou no domingo (29/11), em duas páginas (43 e 44), uma reportagem especial sob o título geral ‘Cerco à mídia independente na América Latina’ que mereceu chamada de capa com o logotipo ‘GDA’ e o título ‘Imprensa livre sob cerco no continente’.


As matérias foram publicadas simultaneamente em onze países – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Peru, Porto Rico, Uruguai e Venezuela – e pretendem mostrar ao leitor dos jornais consorciados no Grupo de Diários América (GDA) ‘um panorama do que vem acontecendo no continente americano’ e que coloca em risco a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa ou a liberdade de informação – expressões utilizadas como equivalentes.


O consórcio GDA


A primeira curiosidade é saber o que vem a ser este consórcio GDA, cujo contato disponível é um endereço na Brickell Avenue, em Miami, Estados Unidos. Uma rápida busca na internet nos remete a esta página, onde se encontra o seguinte:




Grupo de Diarios América


Once periódicos. Once países. Una sola fuente.


Bienvenidos a GDA, un consorcio exclusivo integrado por los once periódicos independientes con más influencia en Latinoamérica: La Nación (Argentina), O Globo (Brasil), El Mercurio (Chile), El Tiempo (Colombia), La Nación (Costa Rica), El Comercio (Ecuador), El Universal (México), El Comercio (Perú), El Nuevo Día (Puerto Rico), El País (Uruguay) y El Nacional (Venezuela).


Cada uno de nuestros diarios juega un papel clave al informar e influir en la opinión pública en sus respectivos mercados. Sus lectores son individuos altamente educados, con recursos financieros y alto poder de decisión (grifo nosso).


Los diarios de GDA cuentan con más de 2.900 experimentados periodistas en la región, así como corresponsales en más de 25 países. Con una audiencia que excede los 5 millones de lectores diarios y 10 millones durante los domingos, el alcance del GDA no tiene paralelo en América Latina.


Más de quince años de experiencia y credibilidad han llevado al Grupo de Diarios América a ser considerado como el recurso más poderoso de comunicación en América Latina (grifo nosso). Sea usted un anunciante o una agencia que busca captar a quienes deciden en el mercado latinoamericano, no encontrará quien llegue a ellos mejor de lo que nosotros podemos.


Historia


GDA fue fundado en 1991 por los periódicos de mayor tradición y prestigio en la región sur de Latinoamérica. El Comercio de Perú, El Mercurio de Chile y La Nación de Argentina. (…)


Objetivos


(…) Fortalecer el intercambio de contenidos periodísticos y editoriales consolidando al GDA como la mejor fuente de información sobre América Latina.


Velar por la libertad e independencia expresada en la línea editorial y mantener el liderazgo y credibilidad entre los lectores.


Dentre os jornais fundadores do GDA, chama a atenção a presença do famoso El Mercurio, ativo defensor do golpe de Estado contra Salvador Allende, no Chile, em 1973. Entre os consorciados está também o venezuelano El Universal, que esteve envolvido no golpe midiático-militar contra Chávez, em 2002. E, claro, o carioca O Globo, com ampla tradição de envolvimento na vida política brasileira, inclusive como apoiador e defensor do golpe de 1964.


O que identifica o cerco?


A matéria sobre a Venezuela – ‘Chávez multiplica as formas de controle’ – acusa a Lei de Educação de ‘obrigar’ os meios de comunicação a contribuir com a educação (sic) e a Comisión Nacional de Telecomunicaciones (Conatel) de querer impor cotas máximas de publicidade e mínimas de conteúdo à TV por assinatura.


Sobre a Argentina – ‘As três frentes de ofensiva dos Kirchner’ – acusa-se a Lei 26.522 de impedir ‘a possibilidade de os grupos (de mídia) de acumularem licenças (…); proíbe um canal aberto de possuir um sistema a cabo; e proíbe que um canal a cabo transmita mais um de um sinal de notícias’.


Já no Equador – ‘Lei vale para a imprensa, mas não para o governo’ – acusa-se antecipadamente a Assembléia Nacional que ‘deverá aprovar’ (sic) uma lei que deve criar um Conselho de seis membros: ‘dois serão delegados dos ministérios de Educação e da Cultura. Outros três serão designados pelo Conselho de Participação Cidadã, o que não garante uma total independência do governo. O sexto representará as faculdades de Comunicação Social’.


Na Colômbia – ‘Sob a mira de paramilitares e corruptos’ – as ameaças à imprensa independente partem, sobretudo de ‘grupos armados e funcionários corruptos’.


E, finalmente, no Brasil – ‘Censura prévia por ordem da Justiça’ – o nobre deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), segundo a matéria, considera que ‘as restrições impostas a jornais, revistas, rádios e TVs pela Justiça são, em alguns casos, piores até que a censura do período da ditadura militar. `Algumas ações são típicas do autoritarismo. Antigamente a censura era exercida pela polícia ou pelo Ministério da Justiça. Agora ela se tornou mais grave porque está sendo ditada pelo Poder Judiciário´’.


Independência vs. ameaça


Um leitor atento verificará que algumas das normas ‘legais’ citadas pelo GDA como ‘ameaças’ ao ‘recurso más poderoso de comunicación en América Latina’ já constam de nossa legislação: preferência a finalidades educativas (inciso I, Artigo 221, Constituição); cotas máximas de publicidade e mínimas de conteúdo (Artigo 124, CBT-Lei 4.117/1962); e acumulação de licenças (§5º, Artigo 220, Constituição).


A referência à existência de ‘censura prévia judicial’ no Brasil é, no mínimo, polêmica como já mostrou neste Observatório o jurista Dalmo Dallari (ver ‘Estadão, censura e autocensura‘).


Já a ameaça de grupos armados na Colômbia certamente extrapola as questões referentes aos demais países. Lá existe uma guerra civil que envolve interesses políticos e do tráfico internacional de drogas.


Por fim restaria perguntar: os onze jornalões que formam o consórcio GDA e se autodenominam ‘imprensa independente’ seriam exatamente independentes em relação a quê? As ameaças e/ou o cerco às liberdades de expressão ou de imprensa ou de informação partiriam exatamente de quem?

******

Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)