Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O cerne da questão

A proposta do Conselho Federal de Jornalismo pode ter defeitos de método – a maneira como foi apresentada com tanta ênfase por parte do governo, provavelmente mais por oportunismo do que propriamente por alguma intenção de gerar instrumento de controle sobre os jornalistas ou sobre a imprensa – e mesmo de essência. Estes limites transparecem no intenso debate que está suscitando há algumas semanas. É preciso continuar a discussão até conseguir um produto suficientemente afinado com os interesses da sociedade e da categoria dos jornalistas, de forma que se supere a caótica situação em que a imprensa atua de forma autocrática e agredindo direitos, sem que a sociedade – nem mesmo por meio da justiça – consiga colocar remédio algum às suas injustiças.

Precisamos despoluir os horizontes e reconhecer que a proposta tem um grande mérito: suscitou um debate inédito sobre a imprensa no país. Cumpre-nos refocalizar a discussão, impedindo que seja sufocada pelos donos da mídia amedrontados por qualquer leve brisa democrática. Eles intervêm com as armas em punho, procurando impedir que seu mandonismo desenfreado seja atingido. É verdade que o fazem com instrumentos ultrapassados, do tempo da Guerra Fria. As reações revelam o atraso mental e cultural desses senhores da mídia, que não sabem pensar senão nos termos biliosos e maniqueístas da grande guerra ideológica do século 20. Eles foram, com efeito, buscar o ‘leninismo’, o ‘stalinismo’ e o ‘castrismo’ – os espantalhos tradicionais da direita, do mesmo modo que os do lado de lá respondiam com os espantalhos do ‘anti-sovietismo’ e do ‘anticomunismo’ – como instrumentos do diversionismo com que pretendem controlar o debate e, se possível, bloqueá-lo o quanto antes, contra um movimento que pode alargar-se e amadurecer com a participação dos mais diversos setores da sociedade, cujos interesses são freqüentemente adversados pelo caos e o absolutismo em que se encontra o poder da grande mídia no país.

Isto não deve, no entanto, obnubilar a nossa visão do que está acontecendo. Precisamos separar – para fins, bem entendido, de método – a forma do conteúdo e entendê-los corretamente na articulação que deles fazem as diversas partes implicadas no enfrentamento da questão. É necessário, portanto, precaver-se contra os erros de concepção e encaminhamento de qualquer um dos lados da contenda.

Esforços de esclarecimento

Do lado conservador estão os mais orgânicos interesses, visando limpar a pauta e aplastar o debate. Mas do lado dos interesses mais legítimos e gerais podem estar, também, os que arriscam a jogar fora a criança com a água do banho. O pensamento de grande parte da esquerda, de forma mais ou menos profunda, baseou-se no modelo dezenovista (século 19) – como o chamam os estudiosos europeus – da ditadura do proletariado.

Para esta concepção tratava-se de derrubar uma ditadura (da burguesia) e implantar outra (do proletariado) pensada ipso facto como democrática por estar apoiada – no plano lógico, já que era uma hipótese ainda não verificada historicamente – numa base social muito mais ampla do que a do Estado liberal. Esta concepção – linear e mecânica, já que tão profundamente questionada pela experiência no decurso do século 20 – não é mais professada senão por grupelhos relativamente insignificantes, ainda que atuantes.

Mas o que é realmente preocupante é que ela não foi superada por nenhuma outra e mantém a sua influência de forma latente. Ela paira no ar – como uma ‘memória’ cultural, ativa, silenciosa – como a única de que dispõem lideranças e grupos que dirigem hoje, com o governo Lula, numerosos setores do aparelho de Estado. Diz, com efeito, Antonio Gramsci que, ‘enquanto o novo não nasce e o velho não morre se dá todo tipo de aberração’. É necessário, portanto, que sejamos cuidadosos contra este velho que não morreu também nas práticas da esquerda. Ele pode ressuscitar sempre, de forma mais ou menos grave, aqui ou acolá. Isto sem considerar as contaminações corporativas do sindicalismo atrelado aos fundos de pensão, de que nos fala Chico de Oliveira. Afinal, cabeça fria e aberta às vibrações mais puras do coração em consonância com as energias sociais e intelectuais mais amplas, são sólidas condições da sabedoria.

O presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, Aloísio Lopes, faz bem, portanto, em continuar os seus esforços no sentido de esclarecer a proposta da Fenaj e incentivar o seu debate. Seja procurando escutar e incorporar sugestões provenientes dos interesses e setores mais legítimos e amplos da sociedade, que combatendo as tentativas dos setores conservadores e patrimoniais da mídia de criminalizar política e ideologicamente o debate com a finalidade de bloqueá-lo. Ele fez isto nos últimos dias enviando uma carta educada e aberta ao jornal Estado de Minas a propósito do que escreveu um dos seus diretores mais antigos sobre a proposta em epígrafe.

Viés coronelístico

A resposta que recebeu, publicada pelo mesmo jornal no dia 4 de setembro, prima, como assinalamos mais acima, pela quase absoluta predominância, instrumental, da forma sobre o conteúdo. Um parafraseado vazio de conteúdos propositivos, recheado de lugares comuns, condimentado por preconceitos sociais traduzidos por concepções reacionárias, de argumentos de autoridade, de desconhecimento de cânones culturais indispensáveis para o tratamento mais complexo e elevado das questões sociais e políticas.

Para esclarecer estes enunciados, aponto, como exemplo de uma intervenção tipicamente desatinada, a insistência do querelante em rebaixar e desqualificar o presidente do Sindicato pelos mais diversos meios impertinentes. Um deles parece primar sobre os demais, demonstrando a animosidade crescente do articulista do Estado de Minas com a interpelação – ainda que tão educada – do presidente do sindicato.

Lançando mão do vocativo, o articulista interpela o interlocutor insistindo em considerá-lo, por pelo menos cinco vezes, como o ‘atual e eventual presidente do SJPMG’. A subjetividade efervescente do articulista expressa uma linguagem mais caracterizada pelo jargão do que pelo respeito aos significados vocabulares convencionais. O significado de ‘eventual’ se refere ao ‘que depende de acontecimento incerto, casual, fortuito, acidental’ (vide Aurélio, 3ª impressão, 1999). Este significado não se aplica, portanto, ao presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Minas Gerais.

É notório que ninguém é presidente de uma instituição registrada em cartório e dependendo do consenso ativo de uma coletividade, por acaso, eventualmente. Este é um cargo definido estatutariamente, como resultado de uma eleição que se realiza também por periodicidade expressa. Qual é, então, o significado do apelativo senão uma interpelação diminutiva da pessoa do presidente e da instituição que ele representa?

E por que esta admoestação ofensiva se o interlocutor, sem lançar nenhuma invectiva em sua direção, nada mais fez do que usar a linguagem de praxe, pedindo o direito de resposta? Não há como não concordar que esta não é uma resposta democrática pelo seu anti-sindicalismo típico de uma direita obtusa, de viés coronelístico. Isto evidencia também o desacordo – deste posicionamento – com as regras de comportamento mais corriqueiras de mentes educadas.

Não é preciso, enfim, primar pela benevolência, a afabilidade e a finura do trato para se conformar a estas regras embora o tratamento elevado se integre perfeitamente com a natureza das últimas. Basta que haja uma suspensão equilibrada dos ânimos não deixando que as paixões mais negativas predominem sobre os sentidos mais civilizados. O articulista não é, por nada, afeito a esta capacidade.

Exageros passadistas

Interpelações deste tipo se multiplicam no texto do articulista do Estado de Minas – misturando falta de finura do trato à ranços autoritários, hipercorporativos da mídia dominante. Diz ele, de fato: ‘Como não poderia deixar de acontecer, o atual e eventual presidente do SJPMG faz uma afirmativa digna de quem acaba de descobrir o segredo da roda’. Segue-se, então, o trecho com a ‘afirmativa’ incriminada:

‘O que os jornalistas brasileiros buscam, através de decisões coletivas aprovadas em congressos da categoria, é exatamente o mínimo de controle sobre o exercício da profissão dos jornalistas, profissão esta que vem sendo precarizada e ameaçada de extinção pelos donos da mídia, que pagam salários aviltantes e não se preocupam com a formação profissional e ética de seus profissionais, sem contar com o nefasto atrelamento aos poderes econômicos e políticos’.

Ora, as palavras do presidente do Sindicato, reprisadas acima pelo articulista, são expressões felizes, realmente inspiradas, uma leitura crítica e sadia da realidade! Onde está então ‘a descoberta da roda’? Deseja, acaso, o articulista enfatizar a palavra ‘controle’ que consta do texto incriminado e que para ele tem um significado unívoco, pré-determinado de maneira muito estreita, já que assim lhe sugerem os seus horizontes ideológicos?

Se for mesmo este o seu punto dolens, o diagnóstico realizado pelo presidente do SJPMG atingiu o cerne da questão e ficou comprovado. E a falta de qualidades elevadas do texto do articulista do Estado de Minas fica compensada pela maneira dramática e exemplar com que ele evidencia – pelos exageros passadistas da sua prosa – a questão da necessidade da disciplina democrática da mídia como um dos nós mais urgentes a serem dissolvidos como condição para o aperfeiçoamento democrático do nosso país.

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Doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino (Itália) e professor aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG