Repórter policial daqueles tempos em que se percorriam as delegacias e os locais dos crimes, ouvindo testemunhas e suspeitos, logo a coleção de desculpas esfarrapadas daqueles que são pegos com a mão na massa ou ‘em flagrante delito’, no jargão dos delegas, soma uma coleção de juris esperneandis respeitável. Todos têm sua justificativa esclarecedora e legal, sua interpretação própria da lei que o inocenta, sua versão dos fatos que o exime de culpa. Todo jornalista que se preze conhece o ‘choro do malandro’, suas regras e suas formas de interpretação, suas manjadas cantilenas que permearão suas declarações à imprensa, seus depoimentos no inquérito e o arrazoado dos advogados bem pagos para defendê-los em todas as fases do processo.
Entre os acadêmicos que relacionei no artigo ‘Os responsáveis pela bagunça são…‘ e procuraram dar-lhe uma resposta, todos esses recursos foram avocados pelos implicados na invasão da seara dos RPs pelos diplomados em Jornalismo, uma realidade infeliz do mercado brasileiro de comunicações. O fato de essa infelicidade ser uma exclusividade tupiniquim, proibida em todas as democracias avançadas onde se respeitam os limites impostos pela legislação de cada profissão, por si só revela o quanto a malandragem fez valer seus argumentos ao longo de décadas. De modo que os que se preocuparam em dar uma explicação não tiveram o menor acanhamento em vir a público repeti-los. E o farão à exaustão, por todas as instâncias em que o caso for examinado, porque uma vez estabelecida uma linha de defesa, qualquer bom repórter de campo sabe disso, o bom malandro jamais se afasta dela. Vide as declarações de Paulo Maluf ao sair da prisão.
Dar-se por ofendido é a primeira reação do malandro surpreendido com a boca na botija. ‘Como assim, doutor, eu, eminente catedrático da USP passando o conto-do-vigário em incautos estudantes de Jornalismo que pagam por cadeiras de AIs em cursos particulares e depois são multados pelos RPs? O senhor não pode me ofender dessa maneira, viu? Vou reclamar com o governador, com o secretário, isso não vai ficar assim!’ Como mulher surpreendida com o amante no motel pelo marido que se faz acompanhar pela equipe da viatura, se tem uma palavra que não cabe no caso é traição. ‘Isso nunca, jamais, ninguém pode me acusar disso, se tem alguém traída aqui sou eu, que vim buscar consolo nos braços de outro porque meu marido é um desleixado, impotente, não me dá atenção.’
Com título, olho, lead
Outro apelo comum do denunciado por maus costumes é tentar desqualificar as testemunhas ou quem o surpreendeu no delito. ‘Esse guardinha aí tá querendo aparecer, doutor, quer marcar ponto para promoção, virar notícia nos jornais às minhas custas, podes crer!!!’ Logo depois do ‘estou ofendido’, essa é a argumentação mais comum em todos os processos criminais, tanto que a maioria dos advogados criminalistas já conta com uns 12 parágrafos em seus bancos de dados sobre essas pessoas falsas e vãs que levantam acusações infundadas para ganhar as manchetes. Em todos os processos por injúria, calúnia e difamação que respondi me deparei com esse conjunto de frases que pareciam copiadas de um manual. Sempre, em todas as demandas, era acusado de levantar inverdades ‘para vender jornal’. Sempre fui absolvido, claro.
Apegar-se a minúcias insignificantes para desqualificar o denunciante também faz parte, é claro, do chorinho. Não foi a Fenaj que denunciou o fechamento de 10 mil vagas na grande imprensa desde o início dos anos 90, é óbvio. Por que a entidade maior dos jornalistas brasileiros iria se preocupar com isso ou alguma vez se manifestar sobre o problema? O cálculo só poderia ser de quem mesmo? Do meu dileto professor no Dom Pedro II que respondia pelo nome artístico de Malba Tahan?
O que importa é que existe uma relação entre o fechamento dessas vagas e o crescimento da avalanche de releases que tentam se passar por reportagens enviada diariamente às redações. Releases escritos não pelas técnicas dos RPs, notas sumárias de uma única fonte para informar aos editores, mas com as características redacionais próprias dos jornalistas, com título, olho, lead, declarações entre aspas, para serem publicados na íntegra ou o mais perto disso possível, substituindo assim milhares de profissionais de imprensa que puderam ser demitidos sem que nenhum sindicato coibisse a atuação de seus filiados em AIs. Instituiu-se o texto farsante, paródia de reportagem, esse logro ao leitor, verdadeiro estelionato em grande escala, como prática comum no meio jornalístico. Os sindicatos promovem até cursos de AI para seus associados jornalistas. Pequeno detalhe que, no choro do malandro, nunca vem ao caso.
Para livrar a cara
Outra preocupação constante dos denunciados é livrar a cara dos cúmplices mais importantes, aqueles que poderão ser úteis em fases posteriores do processo. Por exemplo, alegar que o projeto do Conselho Federal dos Jornalistas é bem anterior ao mandato do atual presidente. Foi entregue a FHC. O fato de o presidente Lula ter promovido um acerto do texto, chamando os líderes do sindicalismo pelego ao Palácio do Planalto, de seu governo ter encaminhado a proposta ao Congresso Nacional e ele, pessoalmente, ter convocado os jornalistas a defenderem tal proposta é irrelevante, do ponto de vista de uma defesa que conta com esse cúmplice no poder para legalizar, algum dia, o que é classificado como antiético e imoral em todas as democracias avançadas.
O sonho de todo malandro é que um dia seu crime seja considerado legal. Que os golpes sejam premiados como obras de arte, que o plágio e a falsificação sejam mais importantes do que a obra verdadeira. Então, sim, será um dia de glória para eles, pouco importando que o Brasil passe a constar oficialmente no rol das nações com legislações arbitrárias. Afinal, o que ainda falta para sermos considerados os campeões da corrupção?
Alegar que o crime é cometido por muitos, pela maioria absoluta, se possível, é outra linha de atuação do bom malandro. ‘Todo mundo sonega, doutor, se eu pagar meus impostos direitinho eu acabo falindo.’ Quem já não ouviu isso? ‘Mas doutor, todo mundo passa no sinal fechado naquela esquina, se eu parasse bateriam na minha traseira.’ Pronto, o atropelamento passa a ser detalhe insignificante. Nessa hora, inclusive, a deduragem corre solta na delegacia. O detido vira alcagüete no ato, oferecendo nomes e endereços numa bandeja para livrar a cara.
O que tem de santo…
Obviamente, faltaram alguns nomes na minha lista de acadêmicos que promovem a invasão do mercado dos RPs por diplomados em Jornalismo. Eis alguns que foram colocados na roda: Jorge Duarte, jornalista e relações-públicas, organizador de Assessoria de imprensa e relacionamento com a mídia: teoria e técnica, editora Atlas, com a participação de 23 profissionais e professores, e Roberto Vieira e outros 26 que participaram do livro Jornalismo e relações públicas: ação e reação, uma perspectiva conciliatória possível, Editora Mauad. Ficou, ainda, a oferta de mais 100 autores de obras semelhantes. E nem foi preciso pendurar ninguém no pau-de-arara.
Qualquer erro de qualificação e, pronto, lá está um belo argumento para tentar descaracterizar a denúncia. Que importa se fulano foi presidente ou diretor da Fenaj? Houve erro também na colocação da apóstrofe no nome? Mas choro de malandro sempre leva em conta esse verso. ‘Consta aqui nos autos, senhor juiz, que o réu Pedro da Silva é trabalhador da construção civil, quando na verdade em sua carteira profissional ele está registrado como pedreiro’. Quantos recursos malandros apelaram para essas artimanhas? Perdi a conta. Dez mil? Deve ser mais. Eu, agressor? Só faço dar comida aos pombinhos
O que tem de santo na hora do rolo, meu Deus, só dá escoteiro, coroinha, amigo do bispo ou fiel do pastor. ‘Não tenho e nunca tive intenções de trocar farpas com qualquer profissional, professor ou estudante de qualquer área’. Claro. E todos são muito humildes, cordatos, sem segundas intenções. Gente boa, doutor. E, caindo naquilo que os policiais experientes costumam chamar de contradição, assumem que abordam o assunto em livros e artigos publicados desde 1994, ajudando a ampliar conhecimentos dentro de uma área de estudos a qual se dedicam desde 1985. Como meros diletantes do tema, com toda certeza.
Parcial e dirigida
Como assim, é ilegal? É irregular? Não é ético? É imoral? Contraria a legislação trabalhista? Que importa. Se não existe liberdade de imprensa nas redações, se não temos no Brasil comitês de redação para proteger os profissionais da suprema vontade patronal, então que nos submetamos todos ao poder econômico. Que diferença faz se um release apresenta apenas um lado da questão, a de quem paga para ter os fatos divulgados da sua maneira, se depois, nas redações, todos os profissionais de imprensa serão submetidos aos desejos do dono do veículo? Ou seja, por que não posso matar meu vizinho se amanhã vou ser convocado pelo Exército e mandado assassinar os inimigos do meu governo? Por que não posso receitar apenas os remédios do fabricante que me paga por fora se dono do hospital lucra vendendo esses medicamentos na farmácia? Por que não posso vender uma sentença e soltar um criminoso se amanhã o presidente pode anistiar todos os condenados? Enfim, a leitura das questões éticas envolvidas em cada profissão passa a sofrer a interferência dos critérios mais absurdos. O crime maior sempre justificando aquele que é considerado ‘menor’ pela ótica de quem o pratica. Todo malandro canta esse chorinho quando a pressão aperta.
Então, pega-se o excerto da jornalista Marilene Felinto para justificar o fato dos releases serem censurados por quem paga por eles. Afinal, se as redações de jornalões, televisões e revistonas brasileiras são hoje o reino dos censores… Se censura, cerceamento à liberdade de imprensa hoje no Brasil têm outro nome: chama-se redação de jornal, de telejornal, de revista e outros impressos da enganação, por que não podemos todos nós iludir o público consumidor de informações e vender gato por lebre? Lutar contra o cerceamento da liberdade, impor regras que impeçam o domínio da informação por grandes conglomerados, isso está fora de cogitação. Afinal, numa democracia avançada, respeitado o direito dos cidadãos a uma informação isenta e confiável fornecida por profissionais independentes da pressão política e econômica, jamais se aceitaria jornalista trabalhando como AI. E isso não interessa a quem lucra, vendendo seus humildes ‘ensinamentos’, com o despreparo de jovens que são jogados no mercado dos RPs sem estarem preparados para isso.
De repente, o que a academia defende em livros, conferências, textos que pululam pela internet à disposição de todos não interessa mais. O resultado de uma pesquisa parcial e dirigida, feita entre pessoas envolvidas nessa invasão de mercado, tem maior valor, justifica tudo. Aí já é malandragem demais. Nunca vi alguém apelar para um levantamento de opiniões realizado num presídio, entre condenados pelo mesmo crime, para justificar a prática da irregularidade. E a ofensa vira ‘pessoal’. Dois parágrafos abaixo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é brindado com o mesmo adjetivo, por trair a propalada promessa de seu partido de promover maior transparência e garantir a liberdade de expressão quando propôs a criação do CFJ para entregar aos pelegos do sindicalismo o controle do que a imprensa pode ou não publicar. Mas agredir Lula, saco de pancada da moda desde que suspeito de conhecer em detalhes os esquemas de corrupção denunciados em três CPIs, não é nada ‘pessoal’. Afinal, não tem um rol de diplomas.
A glória do desporto
Quando o governo comete um ato criminoso, fraudulento, a responsabilidade maior sempre será dele. O Estado se sobrepõe ao cidadão e deve dar o exemplo. Se os políticos que o controlam desrespeitam a legislação, como esperar que a iniciativa privada não o acompanhe no ato transgressor? Esse é um princípio ético elementar em qualquer sociedade democrática. Pretender dividir a responsabilidade com a iniciativa privada sempre leva ao velho jogo entre subornador e subornado. E o bom malandro sabe disso e sempre vai bater nessa tecla em seu choro. Mas o Brasil já deu um belo exemplo ao mundo ao impedir um presidente por corrupção, mesmo sem poder responsabilizar nenhum daqueles que o corromperam. Mas voltamos ao velho mote do malandro, será sempre boa estratégia preservar o cúmplice situado nas altas esferas.
Assim, enquanto os diplomados em Jornalismo lideram o ranking de atuação como AIs nas empresas, com 47,9% do total, os relações-públicas perdem espaço ano a ano. De 2002 a 2005 sua participação caiu pela metade, de 32% para 15,4%. Irregularidade que o malandro assume com orgulho por ter tido um importante papel nesse processo. O fato de o mercado de trabalho para os jornalistas continuar fechado, de algumas publicações contarem com apenas duas ou três pessoas em seus quadros e conterem centenas de páginas com releases, isso também não conta. Estudioso do assunto de tão longa data jamais prestou atenção nessa realidade conhecida de todos os que labutam no jornalismo brasileiro.
É o óbvio das obviedades que, para o malandro, essa história não tem nenhuma moral. A única perspectiva que insinua é pela mudança da legislação para tornar legal, no Brasil, uma prática considerada antiética e imoral no resto do mundo democrático. Como os militares que baixaram leis durante a ditadura sem se importar com o reflexo disso na imagem do país no exterior, para o bom malandro sempre será mais interessante que suas artimanhas possam ser exportadas. Afinal, lograr brasileiros é meio sem graça, todo mundo faz isso. Mas enganar portugueses, italianos, franceses, americanos, ingleses, canadenses, isso sim, será a glória do desporto nacional.
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Jornalista