O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (04/10) discutiu a cobertura da mídia sobre a polêmica em torno das atribuições do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Instalado em 2005, o CNJ é um órgão do Poder Judiciário voltado para o controle e a transparência administrativa e processual. Inicialmente, a corregedoria do conselho atuava na orientação, coordenação e execução de políticas públicas voltadas à atividade correcional e ao bom desempenho da área judiciária, mas uma resolução aumentou o controle do conselho sobre processos administrativos contra magistrados. Incomodada com os novos poderes da corregedoria do CNJ, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando esta resolução.
Em entrevista à Associação Paulista de Jornais (APJ), a corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, disse que a Adin é o “primeiro caminho para a impunidade da magistratura, que hoje está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga”. A declaração da ministra teve grande repercussão. O presidente do CNJ e do STF, ministro Cezar Peluso, exigiu que Eliana Calmon se retratasse, mas, diante da recusa, divulgou uma nota assinada por outros 11 conselheiros repudiando as declarações da corregedora. Já a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Juízes para a Democracia apoiaram a manutenção dos poderes do CNJ. Em meio à celeuma, a votação da ação no Supremo, prevista para quarta-feira (28/9) passada, foi adiada por falta de clima.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio de Brasília Ophir Cavalcante, presidente do Conselho Federal da OAB, e o diretor da sucursal de Brasília de O Estado de S.Paulo, João Bosco Rabello. Advogado há 28 anos, Ophir Cavalcante também preside a União dos Advogados de Língua Portuguesa e o Comitê Nacional para o Brasil da Union Internacionale des Avocats (UIA). Rabello trabalhou no Correio Braziliense, Jornal do Brasil e O Globo, no qual participou da cobertura do último governo militar, da eleição de Tancredo Neves, do governo Sarney e da Assembléia Nacional Constituinte, em 1988. No Rio de Janeiro, o programa contou com a presença do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Mauricio Azêdo. Jornalista há mais de 50 anos, Azêdo é advogado formado pela Faculdade de Direito da antiga Universidade do Estado da Guanabara e foi conselheiro do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro.
Censura togada
Em editorial, Dines disse que a polêmica frase da corregedora nacional de Justiça está se transformando em um “refrão nacional”. “A AMB já não consegue esconder suas motivações corporativistas, já que existem outras associações de magistrados, como a dos Juízes Para a Democracia, que apoiam com entusiasmo a manutenção dos poderes do CNJ. Este Observatório da Imprensa vem denunciando há anos a aberração da censura togada. O Estado de Direito convive no Brasil com a sua negação – magistrados preferem a mordaça da censura prévia à liberdade de expressão garantida pela Constituição”, criticou. Para Dines, este não é um choque de personalidades, mas uma “turbulência” institucional em um momento histórico favorável a revisões.
A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou jornalistas, juízes e juristas. O representante da Associação Juízes Para a Democracia, João Batista Damasceno, destacou que é preciso lembrar que a luta das oligarquias locais contra o poder central é um problema historicamente presente nas relações institucionais no Brasil. “Nós temos no presente momento esta questão que permeia estas relações desde a instituição do CNJ. Quase mensalmente, uma ONG chamada Colégio de Presidentes editou notas repudiando o papel disciplinar do CNJ que, segundo as notas, violava a autonomia dos tribunais. O que nós temos aí é uma tentativa permanente de fugir a este controle central”.
A imprensa, na avaliação de Damasceno, tomou o partido do CNJ. “Evidentemente, a imprensa poderia esclarecer mais a população, inclusive mostrando que não adianta construir um órgão forte no poder central porque amanhã ele poderá também passar a demandar de um órgão que o controle. Eu acho que estas questões serão melhor tratadas com a democratização do Judiciário”, disse. Pedro Gontijo, secretário-executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, vê com preocupação a tentativa de limitar os poderes do CNJ. Gontijo ponderou que a atuação da corregedoria do Conselho é um avanço reconhecido pela sociedade.
Discreto vs. secreto
A desembargadora federal Salete Maccalóz relembrou que os juízes têm suas obrigações e direitos definidos em Lei desde a época do Império. De acordo com a desembargadora, qualquer situação inadequada é imediatamente posta em disciplinamento. “E se, por acaso, em um determinado momento, alguém não disciplinou como devia, tem este órgão [o CNJ] acima que diz: ‘você não fez bem feito, então, nós vamos refazer’. É isto que está um pouco na fala da ministra Eliana Calmon”. Na visão da desembargadora, a ministra quis ressaltar que há algumas situações dentro da Justiça onde o processo de averiguação pode não estar sendo eficiente.
A forma como esta disputa de poder está ocorrendo, na avaliação do jurista Dalmo Dallari, é absolutamente negativa. Todo o sistema Judiciário está tendo a imagem prejudicada nesta batalha. “Além das acusações em si, o comportamento do Judiciário não pode ser este e não deve ser este. Sempre se afirmou, se reconheceu que o Judiciário precisa ser independente, precisa ser absolutamente livre, mas deve ser sempre discreto, o que é completamente diferente de secreto”, sublinhou.
Em 2002, o jornal O Globo publicou uma premiada série de reportagens sobre um esquema de venda de sentenças envolvendo três importantes desembargadores do Rio de Janeiro. O repórter Chico Otávio, que participou desta cobertura, destacou que a categoria dos magistrados, com algumas exceções, é corporativa e fechada. “Evidentemente, como repórter, eu vou sempre defender a transparência. E se o CNJ garante esta transparência, esta fiscalização do trabalho do magistrado, eu não tenho nenhuma dúvida de que o CNJ tem que manter seu trabalho, sua independência e continuar exercendo este papel de fiscalização”, defendeu. O jornalista lembrou que, durante o trabalho de apuração da série de reportagens, os editores do jornal ficaram inseguros porque as denúncias envolviam renomados desembargadores, mas as informações eram tão contundentes e bem embasadas que tornaram a reportagem irrefutável.
Poderes limitados
O Poder Judiciário, na visão do jurista José Paulo Cavalcanti, jamais aceitou o controle externo da magistratura. “O modelo atual está correto. Os casos continuam sendo examinados pelas corregedorias, que coletam provas e definem seus prazos, mas o CNJ tem chance de, em uma situação ou outra, interferir e fazer o julgamento direto. É este modelo que se quer findar, convertendo o CNJ em uma mera instância recursal das corregedorias estaduais. Isto significa, de alguma maneira, a própria morte do CNJ como órgão autônomo de controle externo da judicatura”, criticou.
No debate ao vivo, Ophir Cavalcante ressaltou que, quando a ministra Eliana Calmon falou sobre “bandidos que estão escondidos atrás da toga”, estava se referindo à exceção e não a todos os juízes. “A maioria da magistratura brasileira é uma maioria de pessoas sérias, que têm um compromisso com a Justiça e com o fortalecimento da democracia no país”, sublinhou o representante da OAB. O Poder Judiciário não poderia continuar sem um mínimo de transparência, de investigação e de fiscalização e o CNJ veio a ocupar este espaço. “O CNJ está tentando dizer para a sociedade que a Justiça é una, o Judiciário é um só e não se justifica que as regras de apuração para processos disciplinares no Acre sejam diferentes do estado do Rio Grande de Sul”. A autonomia dos Tribunais de Justiça deve ser mitigada em função do CNJ, que divulga para a sociedade números que os juízes não gostariam de revelar.
Há uma queda de braço, na visão do presidente da OAB, entre a magistratura – um segmento conservador – e a ideia de transparência que vinha sendo articulada pelo CNJ. “A Constituição é muito clara no artigo 103 B e diz que o CNJ é um órgão de controle externo e recebe reclamações de qualquer interessado a respeito do comportamento dos juízes, da magistratura, sem prejuízo daquilo que as corregedorias possam apurar. Ou seja, ele é uma adição. O CNJ existe para ir além do que as corregedorias poderiam fazer”, ponderou. Ophir explicou que o conselho foi criado por conta da ineficiência, desestruturação e do acentuado corporativismo das corregedorias públicas. “Quando ele começou a punir segmentos importantes da magistratura, sobretudo da magistratura estadual, presidentes dos Tribunais de Justiça e corregedores, ele passou a incomodar”, sublinhou.
Imprensa censurada
Há dois anos, o jornal O Estado de S.Paulo está sob censura prévia. Por determinação do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), o diário está proibido de publicar informações sobre a Operação Faktor, da Polícia Federal, que investiga o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). João Bosco Rabello contou que, depois de o jornal insistir, a Justiça declarou que o desembargador não tinha isenção para proferir esta sentença e impedir a continuidade da publicação das reportagens. No entanto, o Tribunal de Justiça manteve a validade da sentença de Dácio Vieira. Por isto, o jornal recorreu ao STF para tentar suspender a censura.
A questão chegou ao Supremo logo após a revogação da Lei de Imprensa e, depois de um impasse, o STF decidiu que adotaria os princípios da Constituição Federal para o julgamento de crimes cometidos pela imprensa. “Mas o STF mergulhou em uma discussão interna em torno da súmula da sessão que derrubou a Lei de Imprensa e se omitiu da decisão sobre o mérito do caso do Estadão. E, nesse momento, o caso deixa de ser um caso restrito ao Estadão para ser um caso de abrangência de toda a imprensa brasileira, de toda a mídia, porque o Tribunal recusou-se, e até hoje mantém esta postura, a examinar o mérito do caso”. Para Rabello, falta um “coro unido” da imprensa para fazer pressão porque não se trata mais de um episodio restrito a O Estado de S.Paulo. Além da passividade da mídia diante do assunto, Rabello criticou o “sonoro” silêncio da classe intelectual.
O presidente da ABI relembrou que a “titularidade da propriedade” de importantes veículos de comunicação e jornais, no passado, dependia de decisões judiciais, inclusive no âmbito do Supremo. Esta conjuntura condicionava a forma como jornais e jornalistas cobriam o Poder Judiciário. Havia o temor de que qualquer ofensa ou crítica à Justiça pudesse gerar decisões hostis aos interesses dos grupos de comunicação. Azêdo destacou que, durante a ditadura militar, o preparo dos magistrados foi insuficiente e, hoje, parte deles não têm uma valoração adequada da importância das instituições democráticas incorporadas ao texto constitucional.
“Em relação à censura prévia, o texto constitucional é claríssimo, incisivo, curto, objetivo e muito expressivo. Diz que não haverá censura política, ideológica e artística. E nós vemos, a ABI tem um acompanhamento permanente disso, que ao longo de todo o país, juízes de primeira instância, desafeiçoados e com esta preparação doutrinária insuficiente, têm adotado a censura prévia como uma forma de perseguição a jornais e a jornalistas. Este é um quadro que precisa ser mudado e que precisa de um grande exemplo”, criticou. É inadmissível, na opinião do representante da ABI, que o presidente do Supremo não tenha adotado uma medida para por termo ao embargo imposto a O Estado de S.Paulo. Para Azêdo, a censura prévia da imprensa é uma “aberração, um escândalo em termos de atropelamento da ordem constitucional”.
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Primavera brasileira
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 613, exibido em 4/10/2011
A indignação está na agenda mundial há quase um ano. Primeiro foi a Primavera Árabe nascida na Praça Tahrir no Cairo sacudindo e derrubando antigas ditaduras. Em seguida, os espanhois acamparam na Porta do Sol em Madri clamando por oportunidades e mudanças. Agora é a vez do outono novaiorquino com a rebelião contra a ganância de Wall Street.
Duas juízas podem se transformar em ícones da recém iniciada Primavera Brasileira: Patrícia Acioly foi fuzilada em Niterói pelos policiais corruptos que investigava, um deles tenente-coronel. Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, não se conformou com a tentativa de limitar a ação moralizadora do Conselho Nacional de Justiça e proclamou que isso abria o caminho para a impunidade da magistratura. “Há bandidos atrás das togas”, alertou a brava corregedora. A frase está se transformando num refrão nacional.
A celeuma foi acionada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que está tentando deslegitimizar o CNJ no Supremo Tribunal Federal. Acontece que, nos seus seis anos de vida, o CNJ já puniu 49 juízes, e neste momento examina 115 processos de magistrados da primeira instância e 35 desembargadores. No estado do Tocantins, a presidente do Tribunal de Justiça foi acusada de fazer parte de um esquema de venda de sentenças. A AMB já não consegue esconder suas motivações corporativistas, já que existem outras associações de magistrados, como a dos Juízes para a Democracia, que apoiam com entusiasmo a manutenção dos poderes do CNJ.
Este Observatório da Imprensa vem denunciando há anos a aberração da censura togada. O estado de direito convive no Brasil com a sua negação – magistrados preferem a mordaça da censura prévia à liberdade de expressão garantida pela constituição. A censura ao Estadão já dura dois anos e, como se não bastasse, o Superior Tribunal de Justiça acaba de anular as provas levantadas pela Polícia Federal na operação Boi Barrica, que investiga os negócios da família Sarney.
Já não se trata de um choque entre personalidades ou querela entre instâncias judiciais; estamos diante de uma turbulência institucional num momento histórico muito favorável a revisões, mutações e avanços. A OAB encampou a defesa do CNJ, a ABI fez o mesmo, a Comissão Justiça e Paz da CNBB também aderiu. A convergência destas siglas nos remete a cruzadas empolgantes do passado recente. A Primavera Brasileira está apenas começando. Este não é o nome de uma telenovela. Pode ser um novo capítulo da nossa história.