Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O confronto ideológico em torno de Cuba

Nas últimas semanas, todos os antagonismos ideológicos exaltados a partir do modo de vida cubano voltaram a ocupar grande parte do debate público. Abordada com ênfase pela grande mídia, a morte de Orlando Zapata Tamayo por conta de sua greve de fome num presídio de Havana acirrou a guerra de informações a respeito do que se passa na Ilha. Ainda mais porque se consumou exatamente no dia em que uma comitiva brasileira, comandada pelo próprio presidente Lula, chegara ao país.


Como se sabe, Zapata Tamayo foi apresentado à opinião pública como dissidente perseguido politicamente, o que é veementemente negado pelas fontes locais, além de nebuloso, de acordo com o que informam órgãos internacionais. Assim, puderam voltar a execrar a ‘ditadura’ que vigora há mais de 50 anos e silenciaria todo desejo de mudança ansiado pela população.


Como exemplo da indignação com o perecimento do preso, o implacável editorial de 27 de fevereiro da Folha de S. Paulo, cujo início lamenta que, ‘pela quarta vez em seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se dispôs a endossar, entre sessões de fotos, tapinhas nas costas e desconversas macunaímicas, o mais ditatorial regime do hemisfério americano’.


Alvo oculto


Para os mais desavisados, parece que a onda de violência política em Cuba atinge os mais descontrolados e alarmantes índices, sendo o povo local completamente impedido de qualquer participação e decisão em seu cotidiano. Não é bem assim. Como destacou o jornalista Breno Altman, do Opera Mundi, a população tem participação regular e constante nos processos decisórios. ‘A Constituição de 1976, reformada em 1992, estabeleceu o ordenamento jurídico do modelo. Um dos principais ingredientes foi a criação do Poder Popular, com suas assembléias locais, municipais, provinciais e nacional’, aclara.


E ao contrário do que se pode pensar, não é um processo tão dessemelhante ao da nossa chamada democracia participativa, pois os representantes dessas instâncias, que não aceitam indicações de possíveis nomes por parte do PC, são escolhidos pelo voto. Aliás, o próprio regime teve sua orientação base, o socialismo, referendado pela população, como conta Altman.


‘A Constituição prevê mecanismos de consulta popular. Dispondo desse direito, o dissidente Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de Libertação, reapresentou à Assembléia Nacional do Poder Popular, em 2002, uma petição com 10 mil assinaturas para que fosse organizado referendo que modificasse o sistema político e econômico na ilha. O governo reuniu 800 mil registros para propor outro plebiscito, que tornava o socialismo cláusula pétrea da Constituição. Por causa da quantidade de assinaturas, teve preferência. Cerca de 7,5 milhões de cubanos (65% do eleitorado), apesar de o voto em referendo ser facultativo, votaram pela proposta defendida por Fidel Castro’.


Ou seja, o povo cubano pode ter dúzias de críticas ao funcionamento de sua nação, mas não há nenhuma intenção da maioria em retornar ao capitalismo, o que é, obviamente, o cerne do debate e alvo oculto de uma mídia que, lembremos, é comercial e busca o lucro em seus negócios.


Humanistas


No entanto, as paixões que o assunto desperta de lado a lado não deixam a contenda ideológica arrefecer tão facilmente. ‘Nada disso se confunde com a revoltante `ternura´, para lembrar o célebre dito de Che Guevara, que o governo Lula `não perde jamais´ quando se trata de emprestar apoio a um regime decrépito, ditatorial e homicida’, completa em tom histérico a Folha, não sem antes lamentar a ‘placidez’ com que o assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, tratou dos problemas de direitos humanos na ilha.


É de se reconhecer neste ponto um paradoxo monumental na mídia brasileira (destacando que outros como Globo e Estadão engrossaram as críticas no mesmo tom). Os mesmos veículos indignados com dita tirania do governo de Raul Castro promoveram enorme grita contra o Plano Nacional de Direitos Humanos, que visa criar instrumentos de aprofundamento de nossa democracia (como controle social na mídia), mas que foi tratado pelos mesmos como stalinista, totalitário e por aí afora.


De quebra, a Folha e seus articulistas aproveitam o ensejo para minimizar conhecidas atrocidades do que entendem por democracia nos EUA, quando esta também foi questionada por Garcia (‘Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro’), apontando para as mundialmente famosas violências e ilegalidades em Guantánamo.


‘É o clássico expediente de voltar contra outro país as acusações que se referem, especificamente, à tirania que se quer apoiar. É inegável que Bush maculou as tradições democráticas de seu país a pretexto da `guerra contra o terror´. É também evidente que nunca faltou, nos EUA, liberdade para protestos contra o governo – coisa impensável sob o sistema castrista’. Além de ser questionável o fato de haver espaço para contestações num país cujos sindicatos são nulos, não há margem alguma para comparações do que também parecem ataques aos direitos humanos por parte dos EUA.


A própria imprensa comercial vive noticiando mortes de civis em ofensivas do exército norte-americano em localidades como Paquistão, Afeganistão e Iraque, sendo, aliás, os dois últimos países ocupados militarmente. A unilateralidade da potência também se viu em Copenhagen, quando sua delegação simplesmente se recusou a quaisquer conversas prévias acerca de diminuição de emissões de gases estufa, quando o mundo clama por mudanças de paradigma em favor do meio ambiente.


São muito fortes as evidências que levam a crer que Zapata Tamayo não era um ‘preso de consciência’, como se difunde incessantemente. De acordo com o pesquisador e ensaísta Enrique Ubieta Gomez (diretor da revista La Calle Del Medio), por exemplo, ‘era um preso comum, cujos problemas com a justiça começaram em 1988, ou seja, quinze anos antes da confecção da lista (de presos políticos da Anistia Internacional, de 2003). Em sua larga carreira delitiva foi processado por ‘violação de domicílio’, ‘lesões menos graves’, ‘furto’, ‘lesões e porte de arma branca’, ‘perturbação da ordem’ e ‘desordens públicas”, informa. Muito contrastante com o que escreveu Janio de Freitas, tratando Tamayo como ‘um operário que aderiu à militância política contra o regime’.


Tal informação, mesmo tendo aparência contundente, pode ser, de fato, contestável, ainda mais sabida a considerável impenetrabilidade da vida cotidiana na ilha. Mas ainda assim há elementos de sobra, como a ausência de seu nome nas listas internacionais, que ao menos podiam fazer tal versão de sua vasta folha corrida ser investigada a fundo.


Até porque qualquer analista sério sabe que existe, e sempre existiu, sabotagem política liderada pelos Estados Unidos, cujos planos de destruição da revolução local sempre foram famosos, além de até hoje manterem o embargo e a declaração de guerra contra os cubanos.


Como escreveu no Observatório da Imprensa o advogado Fábio de Oliveira Ribeiro, é impossível não tratar a abordagem do episódio como ‘propaganda política’ por parte dos detratores e inimigos do regime cubano, o que é o caso da grande mídia nacional e internacional e seus governos volúveis na compreensão de atentados aos direitos humanos.


1 vale mais do que 2000?


E para comprovar o interesse político, e possíveis ardis, em torno do desfecho da vida de Tamayo, é necessário comparar a repercussão e indignação nos meios de comunicação com a revelação de que na Colômbia se encontrou uma fossa comum com 2000 corpos, enterrados por paramilitares e soldados do exército local nos últimos cinco anos.


Trata-se de um fato infinita e indiscutivelmente mais brutal. Nessa década, cerca de 14 mil pessoas foram assassinadas pelas forças oficiais e os ‘paras’. E quase todos por serem líderes comunitários, sindicais ou representantes populares. De quebra, relatório recente da Coalizão Colombiana Contra a Tortura apontou que o Estado é o responsável pela maior quantidade dos casos de torturas e outras violações aos direitos humanos que correm à solta por lá. E nunca se viu a nossa mídia denunciar o regime de Uribe – muito menos a potência do hemisfério norte – de ‘homicida’ ou algo que o valha.


‘A Anistia Internacional não menciona em nenhum momento as supostas atividades políticas que o levaram a prisão. A razão é relativamente simples: Zapata nunca realizou atividades anti-governamentais antes de seu encarceramento. Pelo contrário, a organização reconhece que foi condenado em maio de 2004 a três anos de prisão por `desacato, alteração da ordem pública e resistência´. Essa sanção é relativamente leve se comparada com a dos 75 opositores condenados em março de 2003 a penas que vão até 28 anos de cadeia `por terem recebido fundos ou materiais do governo estadunidense para realizar atividades que as autoridades consideram subversivas e prejudiciais a Cuba´, como reconhece a AI, o que constitui um grave delito em Cuba – e também em qualquer país do mundo’, escreveu Salim Lamrani, do Le Monde Diplomatique.


‘Aqui, a AI não pode escapar de uma evidente contradição: por um lado qualifica essas pessoas de `prisioneiras de consciência´, e por outro admite que cometeram um grave delito de aceitar `fundos ou materiais do governo estadunidense´’, completa.


Outros que não desfrutaram da mesma sensibilidade da opinião pública foram os hondurenhos. Recém assaltados em sua democracia pelo golpe de Estado comandado pelas oligarquias locais, mais de cem daqueles que poderiam também ser qualificados de ‘dissidentes’ foram executados. No entanto, não tiveram a mesma visibilidade. Além disso, o pleito que ‘legitimou’ Porfírio Lobo como novo presidente foi assistido por escassos 13% de eleitores, outra ignorada evidência de desaprovação ao golpe.


‘Na França em 2010, até 24 de fevereiro, houve 22 suicídios nas cadeias; em 2009, foram 122 suicídios nas prisões francesas; em 2008, 115’, conta Lamrani, conformando outro exemplo que não causa a mesma comoção.


Em tempos de crise, divergência ideológica acirrada


Enfim, como diz Marco Aurélio Garcia, há problemas de direitos humanos em todo o mundo. Cuba não escapa a tal lógica, por certo. Porém, como citado por diversos de seus defensores, ‘não mantém centros de tortura ou realiza prisões e execuções extrajudiciais’, não está em guerra alguma e oferece condições de emancipação individual – através, por exemplo, de sua saúde e ensino reconhecidamente qualificados e universalizados – em níveis bem maiores do que praticamente todas as ditas democracias.


Debater os processos cubanos é importante, até porque a crise do capital faz o mundo indagar se o atual modelo de economia e desenvolvimento se sustenta; e nisso os cubanos oferecem um ótimo elemento de reflexão, que é o questionamento ao sistema que tem exaurido as riquezas do planeta e comprometido de forma cada vez mais temerária seu ambiente.


Cuba, com todos os seus defeitos e lentidões para promover mudanças e evoluir o regime, oferece uma outra visão de mundo e sugere outra partilha de riquezas. É isso que causa ojeriza nas potências que afundaram Copenhagen, lideradas pelo seu mais inacessível interlocutor (EUA), precisando sufocar e denegrir ao máximo a pequena ilha que não abre mão de sua opção anticapitalista.


Só assim para começar a compreender porque num mundo de 6 bilhões de habitantes e 4 bilhões de miseráveis as polêmicas e o cotidiano de apenas 13 milhões de pessoas centralizam tantas atenções e ‘indignações’.

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Jornalista