De muitas maneiras, tudo começa e termina nas redações. Especialmente dos jornais. O acidente com a estação na Linha 4 do metrô de São Paulo é tipicamente uma dessas tragédias anunciadas, que só se consumam com a negligência continuada, entre elas a das redações de jornais.
Acidentes quase nunca são ocorrências lineares, resultado de um único fato, mas a somatória de um conjunto de situações – como costumam revelar as investigações de desastres aéreos.
Qual a colaboração da mídia, em particular dos jornais, no caso do metrô paulistano?
Num primeiro momento, desatenção no acompanhamento de uma obra executada numa área crítica – tanto em termos de geologia quanto de ocupação urbana – que vinha dando sinais de alerta. Num segundo, falha de discernimento envolvendo argumentos inaceitáveis apresentados pelas equipes técnicas do consórcio que executa das obras. Só quase uma semana depois do acidente é que o noticiário dos jornais atina com alguma lógica, envolvendo o que realmente deve estar por trás do desmoronamento do poço da estação do metrô, que engoliu veículos e pessoas como num terremoto localizado.
São Pedro culpado
Nos anos 1970, os grandes jornais de São Paulo dispunham de boas equipes de jornalistas especializados em urbanismo. Alguns deles haviam trocado os cursos de arquitetura pelo jornalismo e, nas redações, executavam o que se pode chamar de um trabalho de utilidade pública.
Essas equipes, no entanto, se dissolveram com o tempo e não foram substituídas. O resultado disso é que os jornais que antes apontavam riscos e ameaças potenciais agora se limitam a anunciar tragédias consumadas.
No caso do acidente do metrô, o primeiro absurdo registrado impunemente pelos jornais foi a justificativa dada por Mauro Bastos, do consórcio que constrói a Linha Amarela, de que a causa do desabamento foi uma falha geológica, como publicou em chamada na primeira página o Estado de S. Paulo no sábado (13/1), dia seguinte ao acidente.
Falha geológica no sentido atribuído por Bastos é algo muito diferente do que repórteres jovens e inexperientes e editores desavisados não se deram ao trabalho de saber o que é.
Qualquer garoto que jogou pelada em várzeas, ou arrancou minhocas da terra para pescar, sabe da consistência de terrenos que costumam caracterizar a calha de rios. Nessas áreas, quase sempre de estrutura sedimentar, com material produzido e transportado pelos rios, o terreno é inconsistente e perigoso, mesmo para pequenas construções. E o túnel e estação do metrô não são exatamente o que se pode considerar como pequenas construções.
A seguir ocorreu o desfile dissimulado do que, no Brasil, se costuma chamar de ‘autoridades’, funcionários públicos como prefeitos e governadores alçados ao poder pelo voto popular e que deveriam dar o melhor de si em benefício da comunidade.
Deveriam, mas quase sempre não o fazem.
Prefeito e governador declararam repetidas vezes que a responsabilidade por tudo cabe ao consórcio que toca as obras. Estado e município estariam isentos dessa obrigação. A leitura dos jornais dos últimos dias não registra nenhuma pergunta incômoda às autoridades sobre qual é, afinal, o papel de estado e município, além da tarefa histórica de recolher tributos pagos pelos cidadãos.
Com o atual índice de envolvimento ideológico das redações, esta é uma pergunta ‘politicamente incorreta’, com o risco de colocar o repórter atrevido sob suspeição de seus superiores.
A negativa das ‘autoridades’, além da patifaria em não assumir responsabilidade para as quais de alguma forma foram escolhidos, disfarça precariamente o receio de perder pontos na próxima grande corrida eleitoral, aquela que envolve a disputa máxima, a da presidência da República, nas próximas eleições para este cargo majoritário.
Assim, imperturbáveis, prefeito e governador lavam as mãos como a Bíblia diz que fez um certo Pôncio Pilatos. Como o representante do consórcio, rapidamente culpou a estrutura geológica e outro alguém rapidamente incriminou São Pedro pela profusão de chuvas. Ninguém é responsável por nada e tocamos a vida em frente, todos nós, os sobreviventes.
Blague e chacota
Uma simpática senhora corintiana com seus 75 anos, o motorista e o cobrador de uma dessas centenas de vans que cortam a cidade diariamente. Seus passageiros, entre eles uma jovem advogada da periferia. O motorista de caminhões da própria obra.
Esses foram alguns do que, agora já sabemos, acabaram sugados pela cratera que repentinamente engoliu tudo, depois de dar repetidos avisos de que preparava seu bote subterrâneo.
Como acontece neste país – logo depois que Cabral e seus homens aportaram na costa da Bahia para um descobrimento igualmente anunciado por viagens anteriores, mas camuflado pelo que os portugueses chamaram de ‘política do sigilo’, em função de interesses estratégicos – parentes dos mortos que agora reclamam seus corpos foram e continuam sendo tratados como inconvenientes.
Inconvenientes também são todos aqueles que perderam suas casas, rompidas pelas forças que emergiram do subsolo como se fossem estruturas de papelão. Para essa gente toda apenas se inicia uma longa batalha contra a incerteza, a burocracia e o jogo de dissimulação das ‘autoridades’, ganância de advogados e a sensação, literal, de se ter perdido o chão sob os pés.
Imediatista, superficial e desmemoriada quando convém, a mídia – e aqui mais uma vez especialmente os jornais que tratam do dia-a-dia da cidade e do país – não liga coisa com coisa num esforço necessário para se compreender a natureza das tragédias nacionais, todas elas formando um único e grande desastre no cotidiano desta nação: o menosprezo pela cidadania.
As primeiras páginas dos jornais estão todas ocupadas pela cratera do metrô. Com isso caiu no esquecimento a inundação de cidades inteiras por uma mineradora irresponsável, negligente e reincidente que, em Minas Gerais, cobriu de lama três localidades da Zona da Mata.
Rubras de terra vermelha, como numa alegoria à violência impune que faz verter tanto sangue, as cidades de Miraí, Muriaé e Patrocínio de Muriaé se mostram impotentes contra o poder, arrogância, truculência e, claro, negligência da mineradora Rio Pomba Cataguazes, cuja barragem mais uma vez rompeu e inundou essas cidades. Como se fossem o pátio de suas operações.
A extensão do acidente provocado pelo desmazelo da mineradora atravessou as fronteiras de Minas Gerais e afeta o abastecimento de água de cidades no Rio de Janeiro. As ‘autoridades’ acenaram com punições pela repetição do rompimento da barragem da Rio Pomba Cataguazes, mas representantes da empresa fazem blague e chacota disso tudo, baseados no princípio de uma pretensa responsabilidade social porque ‘geram emprego’ e, por isso, sentem-se desobrigados mesmo quando ameaçavam vidas. Em cidades inteiras.
Próximo desastre
Qual a instância de reflexão capaz de fornecer uma idéia de processo para a compreensão das forças desagregadoras que literalmente minam o terreno no dia-a-dia de cada um dos 180 milhões de brasileiros?
Difícil responder. As universidades, especialmente as privadas, não se acham na obrigação de fazer isso. As públicas estão preocupadas com o corporativismo de seus próprios ocupantes. A imprensa, que no passado teve poder para formar opinião, não é capaz de entender nem mesmo o que acontece sob seu nariz. As empresas, cuja preocupação sempre foi a de ganhar o máximo dos lucros, agora operam a pleno despudor – e os bancos são o melhor exemplo disso, contrapondo lucros escandalosos a serviços escabrosos.
Assim, cada um de nós não deve se iludir com a idéia de que um acidente como o desabamento do poço do metrô – ou do apagão das aéreas, da falsificação de medicamentos e combustíveis, truculência policial ou mesmo da quase guerra civil no Rio de Janeiro e outras grandes cidades brasileiras – sejam ocorrências episódicas e localizadas.
Um exemplo disso? Experimente uma viagem pela BR 381, que acaba de ser duplicada e liga São Paulo a Minas Gerais, onde opera com desfaçatez a tal Rio Pomba Cataguazes. Na Fernão Dias, como a BR 381 é conhecida, morre-se aos poucos, quase todo dia, por semanas, meses e anos a fios.
Alguma dose de cinismo pode levar a crer que acidentes são normais em vias de tráfego intenso como é o caso da BR 381, o que não é de todo absurdo. O absurdo líquido, livre de quaisquer outras implicações, é o estado precário da estrada, com buracos, desníveis que resultaram de negligência das empresas que fizeram as obras de duplicação, curvas mortais, ausência de sinalização – ou o que é pior, sinalização errada –, além do mato que tira a visão de quem dirige.
No túnel da Mata Fria, onde começa da Serra da Mantiqueira, uma placa procurou justificar por anos a fio a falta de iluminação atribuindo o fato a ‘vândalos que roubaram os fios’. Só foi substituída e o túnel iluminado às vésperas das últimas eleições para governador. O Estado não tem a obrigação de capturar, punir os vândalos e refazer a iluminação? Por que, além de vítimas do apagão do túnel, ainda somos obrigados a engolir argumentos injustificáveis das tais ‘autoridades’?
Lamentável dizer que o acidente da estação do metrô – que complica ainda mais o trânsito e estressa os já exauridos moradores desta cidade de São Paulo – seja apenas mais uma ocorrência ligada à rede de negligência/impunidade.
Quando o próximo desastre ocorrer, os jornais e emissoras de rádio e TV recomeçarão tudo outra vez, como se, ao contrário do que disse um príncipe dinamarquês, houvesse algo de novo sob o Sol.
Neste sentido não há. O que há absolutamente é falta de memória e escrúpulo.
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Jornalista