A mídia deveria ser o espelho fiel das contradições e conflitos existentes na sociedade. Da mesma forma que atualmente a imprensa está mais sensível a temas como a violência contra as crianças, é também verdade que ela continua pouco preocupada com outros assuntos importantes, como os direitos das minorias.
É comum nas emissoras de TV aberta, por exemplo, a exaltação da violência de diversas formas: a violência real estampada nos telejornais, a violência representada nos filmes e novelas e a violência simbólica, apresentada principalmente em programas que banalizam o crime, fazem chacotas com as lideranças sociais e religiosas, massacram as minorias e ridicularizam aqueles que fogem dos padrões impostos pela sociedade de consumo.
Assim, a onipresença da violência na mídia pode estimular muito mais as ações violentas para a resolução de simples conflitos cotidianos do que atos pacíficos e de respeito aos outros e a si mesmo. Numa sociedade tão violenta como a nossa (que ostenta, por exemplo, mais de 40 mil homicídios por ano, segundo dados do governo), é preciso mudar essa situação.
A espetacularização da desgraça dos excluídos e de pessoas que fogem ao padrão estético imposto via mídia, em programas televisivos e em publicações impressas demonstra a banalização da violência pelos meios de comunicação social.
Questões sociais
Podemos pensar em muitas violências propagadas insistentemente pela mídia. E o descontentamento da população pode ser dimensionado em ações como as desenvolvidas pela campanha ‘quem financia a baixaria é contra a cidadania’. Esse tipo de mobilização se constitui num dos instrumentos fundamentais para inserir no debate sobre a violência na mídia estratos da cidadania que, via de regra, não têm instrumentos para vocalizar suas demandas, manifestações e frustrações. O pior é que a sensação de impotência frente à dramatização desproporcional da violência parece corroborar um sentimento de resignação social que impede as pessoas de se indignarem frente à barbárie cotidiana estampada em nossos veículos de comunicação social.
Mas não podemos deixar de reconhecer que a mídia, por outro lado, tem desempenhado importante papel social na atualidade. Temos percebido uma crescente preocupação da imprensa, de modo geral, em pautar as questões locais de forma a dar mais visibilidade às mazelas que atormentam o cotidiano dos cidadãos. Aquela mesmice que era evidente há pouco, quando todos os telejornais noturnos noticiavam as mesmas coisas, sob os mesmos ângulos e, no dia seguinte, os jornais impressos registravam os mesmos acontecimentos, parece, aos poucos, estar mudando. As editorias locais e regionais e a criação de novos veículos de difusão têm levado, paulatinamente, as grandes empresas de comunicação a prestar mais atenção na realidade vivida pelos cidadãos.
Ainda se deve registrar que a cobertura do noticiário nacional pela grande mídia tem se pautado no tratamento de questões sociais relevantes. Nunca a mídia foi tão importante para denunciar mazelas antes silenciadas por segmentos corruptos das elites. É verdade que nosso jornalismo investigativo é muito limitado, inclusive pelo fato de as empresas de comunicação não investirem e valorizarem esse tipo de atuação profissional. Mas cada vez mais a imprensa tem acesso a informações que são vitais para desmascarar as falcatruas cometidas por figurões das elites que, antes, eram intocáveis.
Patrocínio público
Alguns problemas afetam a qualidade e a efetividade da mídia no Brasil: seu atrelamento a setores altamente conservadores e sua concentração nas mãos de poucos afortunados. Além desses dois fatores, outra questão é fundamental: a origem das verbas publicitárias. Alguns estudos apontam que cerca de 70% da sobrevivência da grande mídia vem do patrocínio governamental, seja via administração direta, indireta ou das empresas estatais. Esse tipo de situação gera evidente promiscuidade entre a imprensa e os governos. Falar de isenção e independência, para quem conhece por dentro as redações dos grandes jornais, emissoras de televisão e rádio, soa como chacota.
Os dados abaixo foram retirados da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, órgão da Presidência da República. Observemos os investimentos em mídia feitos a nível federal pela Administração Direta e Indireta, nos últimos anos. Vale ressaltar o que está registrado na nota de rodapé de número 3, informando que nesses valores não estão incluídos os gatos com publicidade legal, produção e patrocínio. Em 2001, por exemplo, foram mais de 900 milhões de reais investidos somente no nível federal. Não esqueçamos que estados e municípios, com seus poderes executivo, legislativo e judiciário não estão inclusos nessas astronômicas cifras.
Outro exemplo: durante uma semana, estivemos monitorando os telejornais exibidos pelas principais emissoras de televisão de Minas Gerais. Também ouvimos as principais emissoras de rádio. Vários dos noticiários são patrocinados por empresas públicas. Inclusive, usa-se a estratégia de divulgar as ações do governo através destas empresas. Não que isso seja ilegítimo; porém, fica claro o patrocínio governamental. Outros noticiários exibem nos intervalos comerciais, sistematicamente, os anúncios dessas mesmas empresas públicas, dando a (falsa) percepção ao telespectador menos atento de que o noticiário não tem qualquer vínculo com patrocínio governamental.
Por que o estardalhaço?
O anúncio de que Minas Gerais teria alcançado o déficit zero mobilizou uma das mais intensas campanhas de mídia. Veja o que diz Antônio Siúves, da coluna Mídia Minas (jornal O Tempo, 25/11/2004):
Há muito não se via no país um esquema de comunicação do mesmo porte. A proclamação do déficit zero em Minas, ancorado pesadamente em inserções publicitárias em mídia nacional multidirecionada, foi abrigado no noticiário dos principais veículos nacionais. Anteontem (23), data da divulgação, o acerto de contas mineiro anunciado pelo governador Aécio Neves – transmitido ao vivo pela (rádio) Inconfidência, Rede Minas (de televisão) e, parcialmente, pela (TV) Globo Minas – surgiu no Jornal Nacional, maior de todas as nossas vitrinas. Era o ponto alto da repercussão aberta ainda no sábado por Veja e a reportagem ‘Uma empresa chamada Minas’.
O colunista Nelson de Sá, na Folha de S.Paulo (26/11/04) escreveu:
Surgiu nas redes um comercial do governador e presidenciável Aécio Neves. Locução com música ao fundo: ‘O governo de Minas fez um choque de gestão… Equilibrou as contas do Estado… Reduziu o salário do governador… Coragem e criatividade’.
O mais interessante, neste exemplo, é que a questão do equacionamento do déficit público não é nada mais que obrigação e responsabilidade de todo e qualquer administrador público. Por que tanto estardalhaço?
Conselho ineficaz
Se temos jornalistas e profissionais da comunicação com indiscutível postura ética, por outro lado temos editores, diretores e chefes de redação que, não menos éticos, têm de se explicar constantemente a seus patrões sobre determinados assuntos que desagradam à empresa de comunicação. Como ser livre e isento dessa forma?
Conheço jornalistas, da mais alta estirpe profissional e ética, que não se cansam de reclamar dos cerceamentos reais e simbólicos a que são submetidos cotidianamente só pelo fato de, partindo da premissa do bom jornalismo, desejarem equilibrar as opiniões de partes discordantes quando essas opiniões contrariam acordos ou negociatas que envolvem a empresa e o governo, por exemplo.
As emissoras de TV – que lideram o ‘ranking’ na exibição da violência – e as rádios operam como serviço de concessão pública. Por isso, deveriam ter uma ‘função social’, com uma programação centrada na educação e no resgate dos valores culturais e simbólicos da sociedade.
Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter criado o Conselho de Comunicação Social e a Lei 8.389/91 ter regulamentado esse importante órgão – um dos mais modernos instrumentos de controle da radiodifusão e da televisão –, a ‘tradição editorial tupiniquim’ continua fechando as portas aos que desafiam os oligopólios, e esse Conselho, apesar de ter ‘saído do papel’, ainda não é efetivo na sua (esperada) ação.
A possibilidade da ditadura
Em toda democracia, órgãos e mecanismos de controle externo são necessários. Todas as vezes em que se discute, no Brasil, um órgão de controle para a mídia cria-se uma celeuma. Rememora-se o discurso da censura e teme-se a volta da ditadura.
Quando defendemos um órgão de controle externo estamos falando de um mecanismo representativo da sociedade civil, portanto, um órgão de Estado, e não do governo de plantão.
O controle externo da mídia seria a melhor forma de se controlar a violência desenfreada que campeia nos veículos de comunicação. Também serviria para minimizar os efeitos maléficos dos ditames do capital nas empresas de comunicação. E ainda, garantiria aos bons profissionais da comunicação a possibilidade da apuração isenta de possíveis violações pelos patrões do exercício profissional. Por que, então, temer? Será que muitos jornalistas, bem-intencionados, não estariam defendendo os interesses dos oligopólios midiáticos ao repugnarem qualquer forma de controle social da mídia?
Diante do poder mirabolante da mídia é preciso discutir, sem reservas e de forma democrática e transparente, qual o caminho que a sociedade brasileira quer percorrer. Se repugnamos a idéia do controle externo não deixemos de considerar a possibilidade, cada vez mais presente, da ditadura da mídia.
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Filósofo, especialista em Teoria e Prática da Comunicação Social (USF) e em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (UFMG), mestre em Administração Pública. Professor de Políticas Públicas da PUC-Minas, integrante da União Cristã Brasileira de Comunicação Social, colaborador em veículos impressos e rádios, na área de direitos humanos e cidadania, entre outras