Na Constituinte de 1987-88, ao contrário de todos os outros temas, o capítulo da Comunicação Social só logrou ser ‘rascunhado’ na Comissão de Sistematização e somente ganhou forma definitiva por acordo de plenário. As normas constitucionais finalmente aprovadas sacramentaram bandeiras defendidas por radiodifusores e representantes de igrejas evangélicas, sobretudo no que se refere ao processo de concessão, renovação e cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão.
A ação coordenada dos interesses da ‘bancada da comunicação’ articulada a parlamentares evangélicos está identificada no artigo ‘Comunicação na Constituinte: a defesa de velhos interesses’ [não disponível online], que publiquei no primeiro número do Caderno CEAC/UnB, ainda em agosto de 1987. Àquela época, no entanto, não estava claro que a Constituinte viria a se constituir no ponto de referência para a atuação e o crescimento de representantes das igrejas evangélicas no Congresso Nacional e, sobretudo, para o avanço significativo de diferentes denominações evangélicas como concessionárias de emissoras de rádio e televisão no país.
A participação de igrejas no sistema de comunicações e na política vem, gradativamente, merecendo a atenção de analistas e pesquisadores. A tese de doutorado defendida há pouco no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) pelo cientista político Valdemar Figueredo Filho, com o título ‘Os três poderes das redes de comunicação evangélicas: simbólico, econômico e político’, é mais uma contribuição ao entendimento de parte importante das relações entre religião e mídia no nosso país.
O argumento principal do trabalho de Figueredo Filho é que ‘a representação política evangélica é o mesmo que representação das redes de comunicação evangélicas’ e ‘nem mesmo os supostos valores morais comuns ao grupo religioso conseguem o grau de coesão alcançados pelos interesses relacionados à formação, manutenção e expansão de suas redes de comunicação’. No contexto legal que regula a concessão, renovação e o cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão no Brasil, isso significa a manutenção de um tipo particular de coronelismo eletrônico, agora o evangélico.
Bases do coronelismo eletrônico evangélico
A representação evangélica no Congresso Nacional (ver Quadro 1) tem aumentado na medida em que também aumenta o percentual de evangélicos no total da população brasileira. Dados apresentados por Figueredo Filho para o ano de 2000 indicam que esse percentual já atingia 15,6% contra apenas 9%, em 1990. Em relação à representação política, no entanto, há uma diferença fundamental. Se até o fim da década de 1980 ela era composta, sobretudo, por usuários do rádio e da televisão (a chamada ‘igreja eletrônica’), a partir de então ela passou a ser principalmente de concessionários deste serviço público.
QUADRO 1
Representação Evangélica no Congresso Nacional (1983-2011)
Legislatura | Titulares |
1983-1987 | 12 |
1987-1991 (Constituinte) | 32 |
1991-1995 | 23 |
1995-1999 | 30 |
1999-2003 | 52 |
2003-2007 | 48 |
2007-2011 | 44 |
O levantamento realizado por Figueredo Filho, apoiado em informações da Anatel e da Abert, até março de 2006 revela que 25,18% das emissoras de rádio FM e 20,55% das AM nas capitais brasileiras são evangélicas (ver Quadros 2 e 3). Há de se notar, no entanto, que as denominações pentecostais são as que controlam o maior número de concessões, destacando-se a Igreja Universal do reino de Deus (IURD) entre as FM (24) e da Igreja Assembléia de Deus (IAD) entre as AM (9).
QUADRO 2
Rádios FM evangélicas nas capitais brasileiras
Evangélicos Pentecostais | 47 | 69,11% |
Evangélicos de Missão | 5 | 7,35% |
Paraeclesiásticas Evangélicas | 16 | 23,52% |
Total de FMs evangélicas nas capitais brasileiras | 68 | 100% |
QUADRO 3
Rádios AM evangélicas nas capitais brasileiras
Evangélicos Pentecostais | 24 | 64,86% |
Evangélicos de Missão | 5 | 13,51% |
Paraeclesiásticas Evangélicas | 8 | 21,62% |
Total de AMs evangélicas nas capitais brasileiras | 37 | 100% |
Em relação à televisão, além do grande número de programas evangélicos que é transmitido por emissoras de TV abertas, existem também redes cujas entidades concessionários são igrejas. E, sobretudo, existe um grande número de retransmissoras (RTVs) controladas diretamente por igrejas (Quadro 4, com dados anteriores a setembro de 2007).
QUADRO 4
RTVs controladas por entidades evangélicas
ENTIDADES | NÚMERO DE RTVs | GRUPO |
Fundação Evangélica Boas Novas | 19 | IAD |
Rádio e Televisão Record S.A | 196 | IURD |
Rede Mulher de Televisão Ltda(desde 9/2007 Record News) | 61 | IURD |
Rede Família de Comunicações S/C Ltda | 10 | IURD |
A criação de uma Frente Parlamentar Evangélica (FPE), em 2003, formaliza a articulação dos interesses evangélicos no Congresso Nacional. Estes são defendidos através da participação de seus membros nas comissões de Comunicação tanto na Câmara quanto no Senado e nas votações das proposições legislativas em plenário.
Fundada por iniciativa do deputado Adelor Vieira (PMDB-SC), membro da IAD, a FPE é atualmente presidia pelo deputado pastor Manoel Ferreira (PTB-RJ), principal líder da IAD da Convenção Madureira. O Quadro 5, organizado por Figueredo Filho, mostra a composição atual da FPE.
QUADRO 5
Frente Parlamentar Evangélica (2007-2011)
N° | NOME | TÍTULO ECLESIÁSTICO | PARTIDO | UF | IGREJA |
01 | Antonio Cruz | Presbítero | PP | MS | IAD |
02 | João Campos | Pastor | PSDB | GO | IAD |
03 | Silas Câmara | Membro | PTB | AM | IAD |
04 | Takayama | Pastor | PMDB | PR | IAD |
05 | Zequinha Marinho | Membro | PSC | PA | IAD |
06 | Dr. Nechar | Membro | PV | SP | IAD |
07 | João Oliveira de Souza | Membro | PFL | TO | IAD |
08 | Jurandir Loureiro | Pastor | PAN | ES | IAD |
09 | Sabino Castelo Branco | Membro | PTB | AM | IAD |
10 | Manoel Ferreira | Pastor | PTB | RJ | IAD Madureira |
11 | Filipe Pereira | Diácono | PSC | RJ | IAD Madureira |
12 | Cleber Verde | Membro | PAN | MA | IAD Madureira |
13 | Antonio Bulhões | Bispo | PMDB | SP | IURD |
14 | Flávio Bezerra | Bispo | PMDB | CE | IURD |
15 | George Hilton | Pastor | PP | MG | IURD |
16 | Léo Vivas | Bispo | PRB | RJ | IURD |
17 | Paulo Roberto | Bispo | PTB | RS | IURD |
18 | Eduardo Lopes | Bispo | PSB | RJ | IURD |
19 | Vinicius Carvalho | Pastor | PT do B | RJ | IURD |
20 | Mario de Oliveira | Pastor | PSC | MG | IEQ |
21 | Jorge Tadeu Mudalen | Membro | PFL | SP | IIGD |
22 | Dr. Adilson Soares | Pastor | PRB | RJ | IIGD |
23 | Eduardo Cunha | Membro | PMDB | RJ | CESNT [Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra] |
24 | Robson Rodovalho | Bispo | PFL | DF | CESNT |
25 | Francisco Rossi | Membro | PMDB | SP | Comunidade de Carisma |
26 | Marcos Antônio | Membro | PSC | PE | Metodista Wesleyana |
27 | Carlos Manato | Membro | PDT | ES | Cristã Maranata |
28 | Carlos Willian | Membro | PTC | MG | Cristã Maranata |
29 | Íris de Araújo | Membro | PMDB | GO | IARC [Igreja Apostólica Renascer em Cristo] |
30 | Geraldo Tenuta | Bispo | PFL | SP | IARC |
31 | Henrique Afonso | Pastor | PT | AC | Presbiteriana |
32 | Leonardo Quintão | Membro | PMDB | MG | Presbiteriana |
33 | Onyx Lorenzoni | Membro | PFL | RS | Luterana |
34 | Luis Carlos Heinze | Membro | PP | RS | Luterana |
35 | Arolde de Oliveira | Membro | PFL | RJ | Batista |
36 | Gilmar Machado | Membro | PT | MG | Batista |
37 | Natan Donadon | Membro | PMDB | RO | Batista |
38 | Neucimar Fraga | Membro | PL | ES | Batista |
39 | Walter Pinheiro | Membro | PT | BA | Batista |
40 | Andréia Zito | Membro | PSDB | RJ | Batista |
41 | Jusmari Oliveira | Membro | PFL | BA | Batista |
42 | Lincoln Portela | Pastor | PL | MG | Batista Renovada (Pentecostal) |
43 | Marcelo Crivella | Bispo | PRB | RJ | IURD |
44 | Magno Malta | Pastor | PL | ES | Batista |
Serviço público ou proselitismo religioso?
A tese de Figueredo Filho demonstra que, a exemplo do ocorre também em relação às outorgas de rádios comunitárias [ver, neste Observatório, ‘Rádio comunitárias – Coronelismo eletrônico de novo tipo‘], número expressivo das concessionárias das emissoras de rádio e televisão (aberta) e RTVs está vinculado a entidades religiosas. E mais ainda: seus representantes são atores políticos que atuam de forma articulada no Congresso Nacional nas questões referentes às políticas públicas de comunicação e na formação, manutenção e ampliação da suas redes de rádio e televisão.
Obviamente os evangélicos não são o único grupo religioso concessionário do serviço público de radiodifusão. E a utilização de concessões públicas não é a única forma de atuação de grupos religiosos na mídia.
A questão que precisa ser discutida, no entanto, é se um serviço público que, por sua própria natureza, deve estar ‘a serviço’ de toda a população pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos.