Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O corporativismo contra a democracia

Há quem atribua à Constituição de 1988 o peso excessivo das corporações nos escaninhos da República. Essa percepção não é de todo despropositada. Ela decorre, ao menos em parte, do fortalecimento do Ministério Público (MP) na nova Carta Magna. De fato, em 1988, o Ministério Público adquiriu competências que antes não tinha para investigar e acusar autoridades. Como pré-requisito para suas novas funções, ganhou também uma autonomia muito maior, convertendo-se praticamente num novo poder dentro do Estado. Ao lado dos já conhecidos Executivo, Legislativo e Judiciário, despontou como um “poder” que faz frente aos outros três em embates que, antes da Constituição federal de 1988, seriam simplesmente impensáveis.

Com o tempo, os procuradores da República – e seus pares nos Estados da Federação – conquistaram desenvoltura e terreno, o que foi muito bom para o Brasil. Não há dúvida de que prestam um serviço essencial à Nação. Sem o MP, não haveria a Operação Lava Jato nem teria havido o mensalão. Ficou mais do que provado que um Ministério Público forte e altivo eleva os padrões das rotinas democráticas.

Junto com isso, cresceu também o espírito de corpo no Ministério Público. Era esperado. O problema começa quando o espírito de corpo – um sentimento legítimo, compreensível e, em circunstâncias normais, motivador – dá lugar ao corporativismo, que consiste no hábito de usar prerrogativas funcionais para a obtenção de privilégios para toda a corporação. O limite entre uma coisa e outra é fino, daí ser difícil de administrar e de vigiar.

O Ministério Público é uma corporação típica. Se tem comportamento corporativista, é tema um pouco mais controverso. Pode ser que, às vezes, tenha, sim. Pode ser que, muitas vezes, não. O Poder Judiciário é outra corporação típica. Os servidores do Poder Legislativo, especialmente em Brasília, os milhares de funcionários que assessoram deputados federais e senadores, também são. Há outras corporações de alto coturno, e a todas elas as instituições devem estar atentas permanentemente. Quando descontrolado, o impulso do corporativismo tem potencial para reduzir a República a uma federação de corporações. E aí, já viu.

Antes de seguirmos aqui com estas mal traçadas (ou mal digitadas) linhas, convém fazer um esclarecimento de fundo. Como foi dito na primeira linha do primeiro parágrafo deste artigo, há quem atribua algumas raízes do corporativismo à Constituição de 1988, e essa percepção não é despropositada. Ela apenas é parcial. O vício institucional do corporativismo é mais antigo e mais universal que a nossa valente “Constituição cidadã”. Para não irmos longe, nem no tempo nem no espaço, lembremos que, na Constituição de 1946, jornalistas eram dispensados de pagar imposto na compra da casa própria (art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), num claro benefício conquistado pelo corporativismo abençoado pelo poder constituinte. Não foi a Constituição de 1988 quem inventou esse mal. Ela apenas contém germes de corporativismos específicos – que, repita-se, devem ser vigiados.

Acontece que vigiar é difícil. Em primeiro lugar, porque a matéria é sempre polêmica. Em segundo lugar, porque o corporativismo raramente se deixa ver com clareza. Suas formas de ação costumam ser camufladas, costumam vir disfarçadas de interesse público, como se os interesses daquela categoria isolada fossem sinônimos dos interesses de toda a sociedade. Vigiar o corporativismo é procurar um bicho que nunca aparece de corpo inteiro (o corporativismo esconde o próprio corpo).

O pacotaço corporativo

Nestes dias, porém, demos uma sorte danada. Como um cometa em céu limpo, que se mostra a olho nu, o corporativismo brasileiro passou diante dos olhos do Brasil sem nenhum disfarce. O bicho é grande, e voa. Há coisa de uma semana, a Câmara dos Deputados aprovou numa noitada só um pacotaço de aumentos para ministros do Supremo (de R$ 33,8 mil para R$ 39,3 mil), para servidores do Ministério Público, do Poder Legislativo, auditores fiscais e outras corporações. Na mesma ocasião, foram criados milhares de cargos para carreiras públicas (abrir cargos e chamar novos concursos são fetiches, objetos do desejo das corporações sempre sedentas de expansão, pois o peso do corpo se converte em poder político). Tudo de uma vez. Tudo escancarado.

O privilégio é indisfarçável. Por que aumento para uns e não para todos os trabalhadores brasileiros? Ora, porque esses “uns” contam com a força da corporação. No uso de suas prerrogativas, seus representantes têm acesso direto a presidentes da República – e então aproveitam para pedir aumento – e a parlamentares interessados em fazer média com eles. Graças a esse acesso que ninguém mais tem, passam por cima dos programas partidários e dos direitos dos eleitores comuns. O aumento salarial dessas corporações não foi votado pelos eleitores ao escolherem seus deputados. Beneficia apenas os integrantes da corporação poderosa e mais ninguém.

As corporações são organizações fechadas. Não são democráticas. Não são partidos políticos. Não representam interesses gerais da sociedade brasileira. Sua forma de pressão é a chantagem, como ficou bem claro na fala um tanto lacônica do ministro interino do Planejamento, em tom resignado: “Reabrir essas negociações certamente levaria a uma crise de funcionamento do serviço público”.

Quer dizer: se governo e Parlamento não cederem, a máquina pública terá problemas. O que significa isso? Ela vai parar? Quem manda no serviço público, afinal? Enquanto coçamos a cabeça para descobrir as respostas, fica evidente que, se não encontrar limites, o corporativismo vai sequestrar os trâmites da democracia para submetê-los ao seu egoísmo de corpo. Quanto aos Poderes da República, que se cuidem. Se se dobrarem à chantagem, os Poderes da República se vão apequenar e tudo o mais estará em risco.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP