Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O credo maligno de Anders Behring Brevik

Passei um tempo a ler o calhamaço(mais de 1.500 páginas, em formato A4) de Anders Behring Brevik. O próprio autor postou na web o seu credo, no mesmo dia do massacre. Evitei perder tempo com o conteúdo obviamente copiado e colado da web e passei para os comentários do autor. Não são muitos, por isso não deu tanto trabalho, nem consumiu tanto tempo. Vale a pena ler os absurdos e loucuras de Brevik, desde que não o subestimemos. Ele é articulado e seu raciocínio pode vir a convencer muitos incautos e psicopatas de plantão.

Não podemos (nós, o mundo inteiro) nos dar ao luxo de menosprezar a ameaça da ultradireita e seus discípulos. Não devemos minimizar, ridicularizar ou esquecer rapidamente o que esse homem fez. Ou escreveu e publicou na web. Apesar de “haver muito pouco de sua autoria”, como registrou José Roberto de Toledo, no Estado de S.Paulo, o pouco que existe merece estudo e avaliação severa e meticulosa.

É verdade que às vezes ele soa louco e absurdo: propõe que se acabe com os cursos de Sociologia nas universidades e diz que 99% dos jornalistas noruegueses são traidores. Mas apresentou um capítulo inteiro descrevendo como fazer uma bomba usando fertilizantes, com riqueza de detalhes. Mesmo que ele seja o movimento de um homem só, como muitas vezes o documento deixa transparecer, seus motivos e suas crenças não podem ser ignorados.

É o que também acredita o jornalista norueguês Mads Andersen, do VG Net, que usou as seguintes palavras para descrever Brevik e seus feitos:

“Assassino em massa da nossa democracia e da política norueguesa. O terrorismo foi um ato motivado por um ponto de vista distorcido e extremamente político. Como sociedade, temos que ver as opiniões por trás do que ele fezconosco, para aprender com ele. É importante, mesmo que seja doloroso e difícil.”

Concordo com Andersen: temos que entender e procurar encontrar o sentido do que Brevik escreveu e colocou na web“e se espalhou como fogo pelos meios sociais, antes que amídiatradicional tivesse acesso a uma palavra”, como asseverou o jornalista norueguês.Por isso é certo e justo examinar a fundo o louco credo do assassino.

Era guerra ou guerra

O terrorista tem conexões de família com a América do Sul. Seus padrinhos de batismo foram imigrantes, na Noruega. Eram chilenos marxistas que se refugiaram naquele país. Ele mesmo afirma isso, na página 1.387 de seu manuscrito. Inexplicavelmente, não revelou o nome do padrinho, só o da madrinha. Um canal de TV chileno localizou a senhora, na Noruega (e ignorou o fato que estava pondo em risco a vida desta mulher; por amadorismo, ausência de malícia, ou puro vale-tudo em busca do ângulo mais espetacular da notícia, a senhora foi exposta ao perigo).

Anders Behring, durante sua infância e adolescência, viveu o multiculturalismo dentro de sua família. Mas acredita que os maiores incentivadores deste em seu país são o governo, o Partido Trabalhista, e a parte do próprio povo norueguês que apoia a convivência pacífica entre diferentes etnias. “Um bando de traidores”, segundo ele. É contra eles que ele dirige seu ódio. A prova maior foi o massacre da ilha de Utoya.

Brevik acredita que a Europa continuaria como centro do poder mundial, se não fosse por Hitler e sua loucura de conquistar o mundo e liquidar os judeus. Pura ignorância em História: será que ele nunca leu sobre a miséria em que a Europa estava nos anos 1930? Nunca ouviu falar da grande crise mundial de 1929? E que mesmo se a Alemanha, recuperada entre 1933 e 1936, evitasse a guerra, a economia mundial jamais aceitaria a política econômica protecionista e expansionista deste país? A Europa e o resto do mundo não iriam admitir que a Alemanha sustentasse o bem-estar de seu povo por meio da miséria dos outros países do continente. Era guerra ou guerra, tragicamente, naquele momento histórico.

Elogio a Touro Sentado

Ele acredita que os judeus europeus deveriam ter sido deportados para a Palestina (e não exterminados). A Alemanha poderia libertar Jerusalém. Tinha poder militar para isso. Depois seria ajudada por Inglaterra e França na expulsão dos judeus da Europa. Estes, passado o susto, agradeceriam, por receber de volta a Terra Santa (sic). Este rapaz diz que detesta Hitler, mas é tão mal preparado ou pior que o carniceiro austríaco: será que ele ignora que a região estava sob mandato da Inglaterra e a Alemanha jamais se atreveria a atacar a Inglaterra no Oriente? Isto traria a guerra na hora e lugar errados: no Leste (área de influência russa). A Alemanha teria que começar uma guerra em duas frentes. E ela evitou isso a todo custo, até 1941. Senão, por que assinaria um pacto de não-agressãocom a União Soviética, em 1939?

Outra coisa: ele informa em seu manual que pertence aos novos “Cavaleiros Templários” e que teria comparecido a uma reunião de iniciação em 2002. Pura mentira: a moderna Ordem dos Cavaleiros Templários, que existe desde o século 19 na Europa, confirmou que Breivik nunca pertenceu ao movimento e publicou em sua página da web uma mensagem de repúdio e condenação às suas atrocidades. A Nova Ordem do Templo é uma organização não-governamental ratificada pela União Europeia. Tem sua sede em Genebra e defende tudo aquilo que o assassino norueguês mais detesta: ajuda humanitária e a construção de pontes entre raças, etnias, crenças religiosas e visões políticas. “Breivik nunca teria sido aceito lá”, disse Robert CG Disney, o Grande Comandante da Ordem ao periódico norueguês VG Net, na quinta-feira (28/7).

Breivik prega a liberação dos povos indígenas (locais) da Europa, sem pretender fazer mal a outros grupos indígenas no mundo. Ele é um “nativista”, segundo alguns.Nativista como a Ku Klux Klan… Ele elogia Touro Sentado, o chefe Lakota-Sioux que teria massacrado as tropas do general George Armstrong Custer, nos EUA, no final do século 19. Mas ignora que o chefe Touro Sentado – um homem nobre – não participou da batalha contra Custer. Ele era um homem santo, em sua tribo. Tratava dos idosos. Ensinava as crianças. Ficou na retaguarda, protegendo as mulheres e as crianças, quando Custer atacou.

Psicopatas politizados

Ele afirma em seu manual que seu “movimento” (que agora sabemos ser fruto de sua imaginação) não é racista. Aceita mestiços leais e mesmo gente de outras raças, desde que se convertam ao cristianismo, mudem de nome e derramem sangue pela causa deles. “Serão tratados como irmãos”, diz ele, e “terão seus lugares garantidos na Europa.” Aqui ele é pragmático: sabe que a população da Noruega é muito pequena. Assim como o número total da população nórdica no mundo. Hitler também aceitou muitos mestiços no exército porque o número dos “arianos” não dava nem para o início de uma guerra em escala mundial.

No final de seu “livro” (pg.1.167), ele dirige-se diretamente às populações mestiças: “A libertação da Europa não vai depender da cor da pele nem da etnia, mas de lealdade aos valores conservadores. Mestiços são bem vindos entre os novos templários”, diz Breivik. Mas o tempo todo ele afirma que a homogeneidade racial é essencial para a organização de uma sociedade funcional (por isso o Brasil é um país do “segundo mundo”. Vejam só: ele nos promoveu do terceiro para o segundo mundo…). Mas onde fica este segundo mundo, afinal? Sua falsa tolerância aos mestiços não passa de uma tentativa bizarra de cooptação de grupos minoritários.

O argumento dele é cheio de contradições, ignorância em História e pura estupidez (ele mesmo reconheceu sua falta de educação formal, quando interrogado pelas autoridades norueguesas). Mas sua abordagem pode servir de exemplo para muita gente. Seu insidioso credo pode espalhar-se pela Europa e pelo Ocidente. Ele confunde ideologias e correntes incompatíveis de pensamento político. Confunde quem lê sem cuidado o seu manual desvairado. Por isso, não podemos nos dar ao luxo de subestimá-lo.

“Ele fez tudo sozinho. Não existem células terroristas no país”, dizem as autoridades norueguesas. Tanto pior, se agiu sozinho. Quanta inspiração suas palavras potencialmente poderão trazer a outros psicopatas politizados e razoavelmente articulados como ele? Quantas novas ações terríveis poderão causar?

Simplista, errado e maligno

“É muito difícil”, diz Mads Andersen, “colocar tanta loucura em seu contexto. Mas a mídia abre o caminho para fazê-lo.” Mais uma vez, o jornalista e blogueiro norueguês acertou em cheio. Esta é uma responsabilidade da imprensa: educar a população para a cidadania que, nos termos do dicionário Houaiss, significa “a capacidade de o homem comum compreender a complexidade do mundo em que vive”.

Precisamos de uma imprensa preparada e educadora. Quantas vezes não ouvimos dizer que todas as nossas mazelas sociais, culturais e econômicas são consequências da nossa origem mestiça? Quantos não afirmaram (e ainda o fazem) que seríamos um país melhor, se nossos “mestres-colonizadores” tivessem vindo de lugar outro que não Portugal?

Lembro de um ex-deputado brasileiro que disse, em entrevista a um canal de TV governamental, que o parlamentarismo no Brasil “não daria certo, por conta da nossa falta de homogeneidade”. Ora, o Parlamento existe para defender a igualdade entre todos. Para limitar o poder e o arbítrio das autoridades, através da representação popular legítima. E não pressupõe homogeneidade de nenhuma espécie. A não ser aquela advinda do consenso democraticamente formado.

A ofensa de Anders Behring ao Brasil passou quase despercebida porque é compatível com um senso-comum que infelizmente ainda vive entre nós e que joga o peso de nossos problemas sociais na mistura das raças. Cabe à mídia, em todas as suas formas e meios, destruir de uma vez por todas o ideário simplista, errado e maligno do matador norueguês. E todo o tipo de argumentação compatível com ele.

***

[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano e regional, consultor e tradutor]