Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O dia que marcou uma década

Que fatos marcaram Nova York em 10 de setembro de 2001? O que se falava, lia e ouvia na cidade americana antes que dois aviões se chocassem contra o World Trade Center? Para responder a esta pergunta, repórter da Ilustrada leu, de ponta a ponta, o New York Times de 11 de setembro daquele ano (que noticiava os acontecimentos do dia anterior). O resumo segue abaixo.

O New York Times de 11 de setembro de 2001 noticiava que Nova York, na véspera, era uma cidade plácida.

Fazia sol, o céu estava aberto, a temperatura não excedia 26°C.

Naquela segunda-feira, anterior ao maior ataque terrorista da história dos Estados Unidos, ocorria o último dia da disputa para a escolha do futuro prefeito. O republicano Michael Bloomberg, que acabaria eleito, distribuía afagos em uma estação do metrô. Na manhã de 11 de setembro -quando a data ainda era apenas uma consequência natural do dia 10, e nada mais- o jornal destacava que o presidente George W. Bush estava sob pressão para acelerar a economia, que a audiência matutina da TV aberta registrava alta, que o New York Giants perdera sua partida de estreia na liga de futebol americano.

Por uma coincidência macabra, o jornal ainda noticiava, na capa, a prisão de Patrick Dolan Critton, professor de uma escola primária acusado de sequestrar um avião da Air Canada, 30 anos antes. Ele o desviara de Toronto para Havana, ameaçando a tripulação com uma granada, embora não tenha deixado vítimas.

Tudo tinha importância: a biografia recém-lançada da poeta Edna St. Vincent Millay; a estreia de Alucinação, thriller de terror adolescente; a final feminina de tênis do U.S. Open, disputada entre as irmãs Venus e Serena Williams (Venus ganhara por 2 sets a 0).

Até que o relógio marcasse 8h46 -horário em que o primeiro avião colidiu com a torre norte do World Trade Center-, a população de Nova York (e talvez de todos os Estados Unidos) se perguntava se Michael Jordan retornaria de fato às quadras de basquete, visto que confessara, na véspera, nutrir certa vontade, “em nome do amor ao jogo”.

Quando a vida ainda era rotina, cabia ao New York Times noticiar que a Blockbuster trocaria suas fitas VHS por DVDs, “que vão proporcionar um lucro 10% maior”.

Competia ao jornal saciar a dúvida de um leitor interessado em saber por que cavalos dormem em pé.

“Alguns pesquisadores atribuem à necessidade de estar prontos para fugir de predadores”, respondeu uma editora.

Fazia sentido que o caderno de ciência gastasse meia página para contar a história de um biólogo que importara moscas predatórias do Brasil, no intuito de controlar um surto de formigas nas plantações do Texas.

No dia 10 de setembro, o então secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, fez um discurso declarando “guerra à burocracia na estrutura do Pentágono”. O então senador Joe Biden, hoje vice-presidente, disse que o investimento em um escudo de mísseis antiaéreos defendido por Bush levaria o país a uma crise diplomática.

O mundo seguia o roteiro básico. No Irã, o governo negava que estivesse desenvolvendo armas de destruição em massa. No Iraque, seis civis morriam em função de um ataque aéreo americano. Em Israel, Shimon Peres e Yasser Arafat se reuniam para tentar selar mais um acordo de paz.

Já nos Estados Unidos, o economista Robert V. DiClemente avisava que, na bolsa de valores, “o pior ainda estava por vir”.

A partir das 8h46 do dia 11, em Nova York, nada disso importava mais. Pouco valia o show da banda Jamiroquai, a greve dos professores de escolas católicas, o anúncio da demissão de 4.000 funcionários de uma empresa de telefonia -todos ocorridos na véspera.

Se o artista canadense Jerome Fortin tinha alguma esperança de valorizar sua obra, a viu ruir naquela manhã. A entrevista pela qual tanto ansiara -no “New York Times”, mais importante jornal do mundo- havia saído no momento menos propício do mundo.

Pesadelo

O que parecia vital perdera o sentido. No dia 11, o obituário do jornal anunciava a morte de Adele Brody, senhora “vivaz, inteligente, generosa, preocupada”; de Beverly Lazerwitz, “uma mulher verdadeiramente valente”; de Frederick William Laporte, “avô devotado de nove netos”; de Margaret Brown, “amada mulher de Joseph, mãe devotada de Paul”.

Todos, mortos de forma natural, tinham o velório marcado para o mesmo dia em que 2.996 pessoas seriam assassinadas em Nova York.

O jornal do dia 12 de setembro não diria nada sobre o retorno de Michael Jordan às quadras, sobre os novos DVDs da Blockbuster, sobre a cruzada de Donald Rumsfeld contra a burocracia no Pentágono.

A prisão do homem que sequestrara o avião da Air Canada 30 anos antes -noticiada na capa do dia anterior- não receberia a atenção de uma única linha.

E por que receber? O mesmo crime acabara de se repetir, de forma mais ampla (quatro aviões), trágica (milhares de vítimas) e atordoante (com o desabamento, ao vivo, de dois mastodontes de 110 andares).

O democrata Joe Biden, que criticara o escudo antiaéreo, agora apoiava a política de George W. Bush. “Se alterarmos nossas liberdades básicas, se mudarmos a forma como nossa sociedade democrática funciona”, disse, “então teremos perdido a guerra antes mesmo que ela tenha começado”.

No New York Times de 11 de setembro de 2001, o assunto mais comentado era a suposta intoxicação alimentar de Frank Flynn, professor da Universidade de Columbia.

Flynn enviara reclamações falsas a 240 restaurantes da cidade, alegando ter padecido de “náusea, vômito, diarreia e espasmos abdominais” após uma refeição em cada um dos locais.

Descoberta a farsa (ele queria apenas avaliar o serviço de resposta ao cliente), a matéria foi batizada de “O pesadelo alimentar que não foi”. Na seção dedicada às cartas dos leitores, no dia 11, havia cinco recriminações ao professor.

No dia seguinte, não havia nenhuma.

Mas a palavra “pesadelo” aparecia dez vezes no jornal.

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[Roberto Kaz é repórter da Folha de S.Paulo]