Interessante observar como a irracionalidade, posta à vista no espaço público pela mídia, é capaz de causar espanto, assombrar e até mesmo seduzir um grande número de indivíduos. Muitos protagonistas da cena social e do campo político se valem de incursões por temas bizarros para assegurar seu espaço, ainda que breve e circunstancialmente, como recurso para marcar sua existência no mundo mediado. Os deputados Jair Bolsonaro e Marco Feliciano são dois desses atores, que eventualmente se valem do microfone que lhes deram os eleitores para lembrar que o ovo da serpente sobrevive no limbo da civilização.
Tais personagens se valem das aparentemente ilimitadas liberdades que lhes concedem a democracia e a civilidade para atacar a democracia e a civilidade, que desprezam. No fundo, agem contra seus próprios interesses de preservação, como todos os indivíduos antissociais, pois ao extrapolar os limites de tolerância do senso comum correm o risco de colocar contra si mesmos todo o corpus social – inclusive aquela fração que os apoia. E não são poucos.
Mas esse tipo de raciocínio pode parecer elaborado demais para quem escolheu viver em estado permanente de alienação.Pode-se abordar de muitas formas esse fenômeno, que parece crescer quanto mais se expandem as mídias digitais, mas é preciso definir um ponto de partida para essa observação.
Para não nos distanciarmos muito do tipo de raciocínio que tais atores propõem, pode-se dizer que eles representam, no contexto social, a voz das amídalas cerebelosas – aquele grupo de neurônios que, no sistema límbico do cérebro, regulam o comportamento sexual e a agressividade.
Especialistas em neurociências poderiam ir além, mas para observar a cena no campo da comunicação basta esse pequeno marco epistemológico.
O ex-militar Bolsonaro, assim como seu parceiro de trevas, o pastor Marco Feliciano, age agressivamente, por assim dizer, movido por impulsos sexuais. Da análise de seus discursos pode-se inferir, com extrema facilidade, que o que eles manifestam é o sequestro neural típico da mente ameaçada.
E o que tanto temem Feliciano, Bolsonaro e seus correligionários, e que os leva a se manifestar com tanta agressividade contra aquilo que a modernidade transformou em senso comum, como o livre arbítrio?
Epístolas e pistolas
O cientista Daniel Coleman, que se celebrizou com o livro Inteligência emocional mas tem um cabedal de pesquisas que vai muito além dessa obra polêmica, lembra que “a memória emocional pode ser um repositório de impressões emocionais e lembranças que jamais conhecemos em plena consciência”. Portanto, nossos personagens, que se atiram de mãos dadas contra os direitos da mulher e de minorias étnicas e sexuais, possivelmente consideram uma ameaça à sua segurança pessoal tais reivindicações.
Antes que alguém afirme que eles podem ter tido na infância experiências que hoje repudiam, é preciso pontuar que, deste ângulo de observação, o das teorias da comunicação, isso seria apenas uma conjectura. O que, sim, se pode dizer a partir da análise do discurso comum a Bolsonaro e Feliciano é que ambos sentem muito medo.
O apelo a forças sobrenaturais ou a uma suposta superioridade de raça ou de gênero, que marca todas as manifestações desses dois personagens, revela neles o caminho neural de sentimentos primitivos e grosseiros, que pegam um atalho do limbo até as áreas cerebrais responsáveis pela linguagem.
Bolsonaro se declara “um soldado de Feliciano” e Feliciano afirma que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados era “dominada por Satanás” antes de sua posse. Seus subtextos declaram um pavor das escolhas íntimas, e suas armas podem ser epístolas ou pistolas.
E o que tem a imprensa com isso?
Aparentemente, a mídia tradicional reflete o que parece mais sensato nas correntes que percorrem as mídias sociais digitais. Afinal, o jornalismo não pode abdicar de se posicionar como representante da racionalidade, sob pena de perder o posto de intérprete do mundo real. No entanto, em termos do discurso, pode-se observar também que a imprensa não desgosta totalmente de Bolsonaro e Feliciano. Pelo menos não se vê, lê ou ouve contra o soldado e o pastor metade do que se disse de outros personagens da política execrados recentemente pela imprensa.
Talvez eles estejam verbalizando aquilo que muitos editores e editorialistas gostariam de dizer.