Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O difícil caminho da ‘sociedade da informação’

A propósito do Fórum Econômico Mundial em Davos, é curiosa, para se dizer o mínimo, a informação de que um jornal financeiro suíço tenha ouvido e repercutido declarações ‘quentes’ do escritor Paulo Coelho. Certo, o ‘mago’ literário e financeiro é habitué do Fórum. Desta vez, porém, ele aventa uma hipótese deveras interessante: o esoterismo seria melhor para prever o futuro da economia do que os especialistas. ‘Diante do desencontro dos especialistas e dos erros de previsão, os rituais esotéricos têm capacidade de atuar até com mais eficácia do que medidas técnicas’, conforme relata o jornalista Merval Pereira, citando Coelho (O Globo, 24/1/2008).

Os ‘especialistas’ constituem, em Davos, uma elite internacional de 2.500 altos empresários, políticos e economistas. Haveria entre eles um consenso manifesto quanto à incapacidade do Federal Reserve – o banco central norte-americano, outro reduto de grandes ‘especialistas’ ou economistas – em detectar a atual crise das hipotecas de alto risco nos Estados Unidos, com suas alarmantes perspectivas de estagflação. É verdade que o noticiário subseqüente atribui a um desses economistas a previsão, desde o ano passado, da crise. Seu discurso, porém, é tão especulativo quanto o de um esotérico, com metáforas nosológicas: os EUA estariam financeiramente gripados, com risco de pneumonia.

O jornal esquiva-se de assinalar o evidente mal-estar cognitivo subjacente a tudo isso, que bem poderia suscitar uma questão de fundo sobre a inteireza da ‘ciência’ econômica. O que dizer, assim, das faculdades de excelência, dos luminares de econometria, dos Prêmios Nobel de Economia? Valeria para a Economia a afirmação, por muitos repetida acerca da Comunicação, de que talvez devessem ser fechadas as escolas de formação dos jornalistas?

Paradigma compreensivo

Esta introdução parece-nos oportuna para retomar a temática dos cursos de Jornalismo, recentemente abordada neste Observatório por Carlos Castilho a propósito de um comentário que sugeria o fechamento da maioria das escolas diante da precariedade da demanda do mercado e da suposta ineficiência da formação (ver ‘O que fazer com as escolas de jornalismo?‘). Castilho, que conheço de há muito tempo no ambiente profissional, é um dos muito bons jornalistas brasileiros, alguém capaz de aliar competência técnica a uma visão político-humanista. Em seu artigo no OI, mesmo reconhecendo a realidade do desemprego para os formandos, ele contorna as intenções, digamos, terminais do querelante, com o argumento de que está emergindo uma realidade nova no campo jornalístico:

‘É necessário perceber que o jornalismo começa a ganhar novas funções num ambiente informativo onde as pessoas comuns, os cidadãos, estão ocupando espaços cada vez maiores na produção e publicação de notícias. Este é um fato novo que está mudando a história da comunicação atual, da mesma forma que a invenção dos tipos móveis por Johanes Gutemberg revolucionou a transmissão de informações e conhecimentos a partir do século 15. E esta nova conjuntura está sendo olimpicamente ignorada pelas faculdades de Jornalismo, com honrosas exceções não apenas aqui como noutros países’.

Castilho tem razão, em parte. Isto porque, há muito tempo, é uma espécie de lugar-comum nos cursos em pauta o reconhecimento – histórico, sociológico, antropológico e filosófico – da conjuntura que leva a sociedade contemporânea a ser chamada de ‘sociedade da informação’, na medida em que se ampliou, com meios de produção e dispositivos inéditos, a circulação do conhecimento. Esta ampliação se estende do jornalismo até a infra-estrutura tecnológica que sustenta a globalização em curso.

Em todo este complexo, o jornalismo – que, no início do século passado, parecia justificar toda uma ‘ciência’ – é apenas uma das práticas ‘logotécnicas’, ao lado das audiovisuais, da documentação, do tratamento de dados, da interpretação de textos e imagens. E por maior que seja a diversidade dos discursos e das práticas, subjaz a tudo isso um paradigma compreensivo, a que se vem dando o nome de comunicação.

O que está em jogo

Ora, é precisamente esse paradigma que fundamenta uma nova episteme (formas particulares de produção e circulação do conhecimento, uma nova mentalidade) para a sociedade contemporânea, movida a informação. Quando se diz ‘sociedade da informação’, em vez de algo como ‘sociedade das informações’, está sendo implicitamente reconhecido que informação não é o mesmo que um dado fragmentado, e sim um processo de amplitude social e cultural. Desde o século 19 até meados do século 20, o modelo a ser descrito era uma sociedade constituída, cujos fatos relevantes eram comunicados ao público por jornalistas. Agora, o complexo intitulado ‘mídia’ molda também a sociedade.

O jornalismo é uma das práticas técnicas (importantíssima, aliás, para o moderno capítulo das liberdades civis) no interior desse complexo, mas é preciso pensá-lo como parte de um todo e deixar de lado o fundamentalismo corporativo inerente a alguns profissionais, jovens e velhos. A comunicação é o marco compreensivo para os horizontes de significação, ao mesmo tempo sócio-técnicos e epistêmicos, que se dispõem como um verdadeiro ecossistema informativo.

As escolas de comunicação surgiram e se irradiaram como uma febre na esteira desse paradigma. As profecias tecnológicas do canadense Marshall McLuhan, o crescimento exponencial das novas modalidades de consumo e o aparecimento acelerado das novas tecnologias de informação contribuíram em muito para o marketing acadêmico do fenômeno comunicacional. Em princípio, muito mais atraente do que a mera aprendizagem de técnicas (jornalismo, publicidade, radialismo, televisão etc.) seria a ‘imersão’ no ambiente cognitivo capaz de esclarecer o que está em jogo nesse novo universo.

Tecnologias do espírito

Numa realidade educacional concebida como praça de mercado, seria inevitável que instituições de ensino de toda ordem aderissem ao açodamento da oferta de cursos fáceis de montar. Inevitável também seria a decepção subseqüente dos jovens com o estreitamento do mercado tradicional, assim como a indisposição ou o ressentimento dos jornalistas estabelecidos para com os jovens egressos de uma realidade acadêmica distante da prática das redações. Na verdade, se esquece que nenhuma faculdade oferece realmente gente imediatamente pronta para uma profissão. Ninguém sai médico de uma escola de medicina, por exemplo, já que a prática médica é dada pela ‘residência’ posterior, que pode levar vários anos. Na escola, aprende-se a aprender; a prática se adquire ali, onde a produção acontece.

Evidentemente, são diferentes os níveis de ensino e diversa a capacidade dos estudantes de bem se disporem cognitivamente para o exercício de uma profissão. Os formandos de uma escola de alto nível podem ser disputados por empresas. Mas isto, quando acontece, se dá em áreas tecnológicas de grande porte. Na área social, ou ‘humana’, a coisa muda de figura: o prestígio dos cursos tem muito a ver com a sua proximidade para com os aparelhos de Estado ou com a tecnoburocracia de planejamento. Só que não há neles nenhuma ‘cientificidade’ maior do que o que se transmite em cursos de comunicação. Estes são apenas os ‘caçulas’ do estamento universitário. E, apesar dos óbices, seus egressos povoam hoje as diversas modalidades de mídia.

Mas Carlos Castilho tem plena razão quando afirma que os cursos ainda não atentaram para as possibilidades de oferta de orientação e capacitação de receptores-leitores na nova ordem comunicacional. Em outras palavras, a esfera acadêmica não deve atrelar-se à mera produção de profissionais para o mercado, e sim, voltar-se também para a formação crítica. É uma sugestão brilhante, em especial quando se considera que as novas tecnologias da informação – a internet, basicamente – ensejarão cada vez mais protocolos de leitura ativos e interativos por parte de consumidores. Não é impossível que venha a sair de tudo isso um discurso social de estreita afinidade entre a reflexão das ciências humanas e a informação pública.

É mesmo concebível que, na conjuntura de uma verdadeira ‘informação formativa’, os perplexos com o áleas (o acaso, o imponderável) da economia – esses ‘especialistas’ apanhados em meio ao descontrole do mercado financeiro, tão pouco scholars quanto os crupiês de um cassino – vm a recorrer a jornalistas (saudades do Aloísio Biondi…) para tornar mais claras as coisas. Pessoalmente, nada contra o saber que os filósofos orientais chamam tecnologias do espírito, mas esse esoterismo de faturamento, francamente…

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro