Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O direito, a responsabilidade e a informação

A exigência do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista voltou a ser tema de debate após o Ministério Público Federal oferecer um recurso contra a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, em outubro de 2005, restituiu a exigência do diploma.

De acordo com a matéria publicada na edição de quinta-feira (16/3) da Folha de S. Paulo [disponível aqui para assinantes do jornal e/ou do portal UOL], a procuradora regional da República Luiza Fonseca Frischeisen alega, em seu recurso, que a exigência é ‘incompatível’ com a Constituição.

O texto relembra ainda que o processo teve início em 2001, após a juíza Carla Rister determinar a suspensão da obrigatoriedade do diploma, que acabou sendo cassada pelo juiz federal Manoel Álvares, ao entender este que são ‘incalculáveis’ os danos pelo ‘exercício da profissão por pessoa desqualificada’.

Agora, ainda segundo a Folha, a procuradora argumenta que ‘os principais requisitos para ser um bom jornalista’ não são ‘matérias a serem apreendidas na faculdade’.

Já a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), publicou em seu site, no mesmo dia, uma nota informando que tinha conhecimento de que ‘o Ministério Público recorreria da decisão por ‘dever de ofício’’, mas que acredita que ‘dificilmente o STF revisaria uma decisão unânime e com a qualidade daquela produzida pelo TRF da 3ª Região’.

No comunicado, o presidente da Fenaj, Sérgio Murillo de Andrade, afirma que os argumentos da procuradora são insustentáveis e que continua existindo uma confusão da ‘exigência do diploma com cerceamento à liberdade de expressão’.

Ensino ruim

Defesas, opiniões, interpretações e pontos de vista à parte, o que esse episódio demonstra mais uma vez é que a postura adotada pelo Ministério Público Federal, reproduzida pela Folha de S. Paulo e combatida pela Fenaj, não expõe de forma clara a importância dessa discussão. Além disso, as informações, restritas, que chegam ao público ‘esquecem’ de esclarecer e debater os pilares básicos dessa discussão que envolve questões como direito, responsabilidade e informação isenta.

A questão envolvendo a obrigatoriedade do diploma é apenas uma ponta do complexo objeto de discussão que envolve este tema como, por exemplo, a cidadania, democracia, responsabilidade social, danos à sociedade, manipulação de informação e liberdade de imprensa.

Não cometerei a ingenuidade de defender que somente o diploma garante a geração de bons profissionais – assim como em qualquer profissão, o curso superior é apenas o ponto de partida para a formação. Dessa forma, não podemos condenar nem desqualificar a exigência de um diploma para argumentar a favor ou contra, ou para justificar a atuação de profissionais sem qualificação ou sem critérios éticos.

Acredito que a discussão deve abranger em primeiro lugar o direito dos envolvidos nesse processo. Por exemplo, os jornalistas profissionais têm o direito, assim como os arquitetos, engenheiros, médicos, advogados, enfermeiros, psicólogos, dentistas, entre outros, a ter uma profissão regulamentada e exigir uma formação direcionada aos interessados em atuar neste campo profissional.

Ainda na questão do direito, conforme publicado no na revista eletrônica Consultor Jurídico [quinta-feira (16/03), disponível aqui], a exigência do diploma para a atuação como jornalista é baseada no Decreto-Lei 972/69, que foi amparado pelo Constituição Federal de 1988. Dessa forma, o argumento de que a exigência foi uma criação da ditadura militar vai por ‘terra abaixo’, já que a legislação foi mantida durante o processo democrático.

O material divulgado pelo Consultor Jurídico relata ainda que desembargador Manoel Álvares, relator responsável pelo retorno da exigência do diploma em 2005, ressaltou que existe jurisprudência sobre a obrigatoriedade de diploma para regulamentar a profissão e que não há divergência entre os pareceres da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a lei nacional que regulamenta a profissão.

A abertura de uma exceção para a regulamentação da profissão de jornalismo, sem a exigência da formação específica, permitiria a mesma reivindicação para outras áreas profissionais como, por exemplo, a do direito. Tomando como base esse argumento simplista, qualquer pessoa que comprove o conhecimento mínimo dos códigos Penal, Civil, Trabalhista e da legislação brasileira estaria capacitado a atuar como advogado, promotor, procurador de estado ou federal e, até, como juiz ou desembargador.

No entanto, o que observamos é a exigência cada vez maior para a concessão do registro profissional na área do direito, principalmente, por meio dos exames da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A Folha Online de 3/2/2006, na matéria intitulada ‘Exame da OAB-SP tem segundo pior resultado da história‘, revela que apenas 19,2% dos candidatos foram aprovados para a segunda fase, ou seja, dos 28.331 bacharéis inscritos, 27.382 participaram do exame (foram registradas 949 ausências) e apenas 5.236 foram aprovados. O baixo desempenho dos candidatos, segundo a Folha Online, foi justificado pelo presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, como o resultado da má qualidade do ensino. No entanto, em nenhum momento, foi discutida a possibilidade de qualquer cidadão exercer profissionalmente a função de advogado sem o diploma universitário.

A postura da Folha

Particularidades à parte, os episódios utilizados como exemplo entre as questões envolvendo a exigência do diploma para jornalistas e a baixa aprovação no exame da OAB, sem qual não é possível exercer a advocacia, direcionam o debate para o campo da responsabilidade.

Não podemos ignorar que o jornalismo, assim como o campo do direito, exerce uma função fundamental no meio social. Dessa forma, a atuação de um profissional sem o preparo adequado pode representar conseqüências sérias.

Um estudo realizado na década de 1970 por Jorge Fernández, diretor-geral do Centro Internacional de Estudos Superiores do Jornalismo à América Latina, de Quito (Equador), já demonstrava a importância de uma formação adequada em função da responsabilidade social do profissional que atua no campo do jornalismo.

O jornalista, no seu caráter de comunicador, é uma testemunha. A formação do jornalista e a preparação do comunicador deve ser definitivamente a necessária para lhe dar a capacitação ética e cientifica para ser uma testemunha inteligente e honesta da realidade. Para constituir-se em uma espécie de historiador, ser um intermediário puro entre os fatos e o conhecimento, alimentando os fundamentos da razão para deter as paixões distorcidas. O ponto em comum nas profissões é preparar o homem para ser colocado em contato com o homem, unidade com unidade. O jornalismo requer um profissional para que coloque em contato impessoal com a multidão. O médico afeta ou trata individualmente a saúde; o arquiteto levanta uma casa e também julga isoladamente a sua obra. O jornalista difunde noções e dados a uma massa indefinível que pode se converter em emoções e em potências de forças positivas ou negativas. (FERNÁNDEZ, 1970, p. 117-118, tradução nossa)

Para quem imagina que essa discussão seja ultrapassada ou se enquadre somente no argumento de ‘românticos’ defensores do diploma, a Universidade de Oxford e os principais veículos de comunicação da Inglaterra demonstram o contrário.

Em 2005, a Universidade de Oxford propôs a criação de um instituto de jornalismo em parceria com veículos tradicionais como os jornais The Guardian, Financial Times e a agência Reuters, entre outros. A medida foi anunciada como uma proposta para melhorar a qualidade da profissão no Reino Unido, onde estaria ocorrendo uma degradação devido ao crescimento do jornalismo sensacionalista, que teria culminado com a entrega do principal prêmio jornalístico do país para uma matéria sobre um caso de adultério, publicada pelo jornal News of the World, considerado um veículo de baixa qualidade editorial.

A preocupação com a responsabilidade social do jornalismo, porém, não se limita ao projeto desenvolvido na Inglaterra. Em Portugal, por exemplo, a legislação que regulamenta a profissão de jornalista, de 13 de janeiro de 1999, prevê a incompatibilidade do exercício simultâneo do jornalismo com a de assessor de imprensa.

Assim, o profissional que atua em qualquer veículo de comunicação só pode exercer a função de consultor de comunicação ou de assessor de imprensa após a suspensão (provisória ou definitiva) de seu registro profissional. Por meio dessa medida, a legislação portuguesa procurou impedir um eventual conflito de interesses.

Outro ponto que é preciso observar nesse episódio é a clareza do noticiário sobre a questão envolvendo o recurso do Ministério Púbico Federal. Em uma rápida busca pela internet é possível encontrar notícias sobre o caso em, pelo menos, oito veículos diferentes. No entanto, em cinco casos – Aquidauna News, Fonte Brasil, Portal Universia, Acre Agora] e Dourado News, o material disponível é uma reprodução do texto da Folha de S.Paulo, que é declaradamente contra a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. No entanto, em nenhum momento, nem mesmo no texto do jornal paulistano, é encontrada qualquer referência a essa postura da empresa. Outro texto encontrado na internet é o da Folha do Amapá, que reproduz o material do Consultor Jurídico.

Contra abusos e omissões

Além da omissão do posicionamento da Folha de S.Paulo e da reprodução de seu material por outros veículos, que provoca uma padronização do noticiário, mas é compreensível pelo fato de a Folha também atuar como agência de notícias, o que chama a atenção é o jornal não publicar o ‘outro lado’ da questão, como previsto nas páginas 26 e 27 do seu Manual da Redação.

O noticiário contextualiza o caso ao relatar a posição do desembargador que determinou a exigência do diploma, mas não repercute a medida do Ministério Público Federal com nenhuma parte envolvida – como, por exemplo, os representantes da categoria, direção de sindicatos ou a Fenaj. A análise dessa conduta só reforça a falta de informação presente nesse debate, que inclui também os argumentos apresentados pela procuradora da regional da República.

Em sua ação [veja a íntegra], ela utiliza argumentos de que a prática do jornalismo não oferece ‘(…) risco a vida das pessoas, caso desempenhadas por profissionais sem capacitação técnica’; que o ‘(…) exercício da profissão de jornalista, não se vislumbram riscos à coletividade e ao interesse público (…) bem como não exigem uma capacitação técnica, mas tão-somente uma formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade, mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional’; e que ‘o exercício da profissão por profissional inepto não prejudica diretamente direito de terceiro’, entre outros.

Esses argumentos demonstram ser equivocados ao recordarmos de casos como a Escola Base, ocorrido em 1994, em São Paulo, cujos proprietários foram acusados pela polícia de produzir filmes pornográficos e da prática de pedofilia. As acusações foram amplamente divulgada pelos meios de comunicação e depois ficou provado que eram eram falsas. Mesmo assim, até hoje os ex-proprietários da escola sofrem problemas de saúde e não conseguiram recuperar sua estabilidade financeira, além dos danos morais que sofreram em virtude do noticiário.

Dessa forma, e retomando o início do artigo, não creio que a discussão para o aperfeiçoamento e melhora da qualidade do jornalismo brasileiro seja a extinção da obrigatoriedade do diploma, mas a criação de mecanismos capazes de promover uma melhor preparação dos profissionais e, conseqüentemente, dos veículos de comunicação.

A função social do jornalismo e a liberdade de expressão, defendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como é argumentada pela procuradora da República, não estão comprometidas pela exigência de formação específica do profissional, mas pela cultura ‘clientelista’, ‘sensacionalista’ e ‘superficial’ adotadas por muitos veículos de comunicação. Essa questão, porém, só será combatida com a melhor preparação dos futuros jornalistas, que, por sua vez, dependem de critérios e normas que regulamentem e fiscalizem os abusos e as omissões praticados pelas escolas de comunicação e por empresas jornalísticas. Somente assim será possível ‘enxergar’ que o foco do problema deve ser a ‘causa’ e não as ‘conseqüências’.

Referências

FERNÁNDEZ, J. Tendencias de la enseñanza del periodismo en la America Latina. In: UNIVERSIDAD DE NAVARRA. Los Professores de Periodismo. Congresso Internacional de Enseñanza del Periodismo. Instituto de Periodismo de la Universidad de Navarra. Pamplona (Espanha): Ediciones Universidad de Navarra S.A, 1970. p. 115-143

PORTAL TERRA (Espanha). Oxford proyecta una escuela de periodismo para mejorar profesión, Madri (Espanha), 31.mar.2005. Disponível em <http://www.terra.es/>. Acesso em 02 abr.2005

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Jornalista e professor no curso de jornalismo do Imesb (Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro, SP)