Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O encontro improvável

A cultura do Big Mac – aquele sanduíche carro-chefe da franquia Mcdonalds – começa a produzir seus frutos mais nefastos e perniciosos para esta e as próximas gerações. É a cultura do transitório e do efêmero onde nada dura nem perdura, nada progride, mantém-se e só. O marketing coloca o supérfluo sob lente de aumento e a felicidade é poder estar dentro da moda, moda-vagalume com cada vez menos tempo de vida, sendo sempre substituída por outro artificialismo como a enraizar no espaço entre as nuvens suas raízes. É claro que temos um estilo de vida moderna cada vez mais insustentável, nem moral nem material, apenas estilo de vida descartável onde colocamos em sua voraz fornalha o que temos de mais precioso em nossa vida – o tempo.


Cansado de fazer viagens em fim de semana para dar palestra, participar de algum evento universitário, viagem dessas que começam na noite de sexta-feira e acabam logo após o meio-dia do domingo, terminei sucumbindo à idéia de comprar aquela maquininha criada pela Amazon.com e que atende pelo nome Kindle. É que sempre viajo com 2/3 da bagagem constituída por livros que me oferecem a possibilidade de acompanhá-los em minha viagem. A maquininha cumpre parte do que alardeia: armazena mais que 1.500 livros digitalizados e sua bateria dura exatas duas semanas. Mas não cumpre exatamente aquilo que mais apregoa: lê-se como um livro.


Com sua cara de jornal molhado, as páginas, com as letras serifadas pretas sobre fundo cinza, nem de longe lembra o livro. Num primeiro momento atende como depósito de quinze centenas de livros logo aqui ao alcance das mãos. Num segundo momento é a própria estranheza ao toque humano tão longamente acostumado ao papel celulose e flexível. Olho o Kindle como embalagem de plástico e o livro como presença afetiva. Por mais que avance na leitura do texto meus olhos não mensuram de imediato o texto percorrido. O Kindle parece imutável como os moais da ilha de Páscoa. E se antes fazia breves pausas para sentir mais fundamente a emoção suscitada pelo poema ou a situação evocada na crônica de autor talentoso, deixando o livro sobre o peito, aberto até onde a leitura conseguira ir, o que fazer com o Kindle com sua forma de tabuleta que não se abre? Ah, e o cheiro de livro? Não, não é desprezível o cheiro de livro bem impresso e bem encadernado, o olfato festeja a obra assim como os olhos festejam as palavras.


Ótica do predador


Se antes imaginava o futuro do livro como aquele objeto que tornaria possível lê-lo em pleno banho, vejo que nenhum leitor digital é afeito ao contato com água. Neste aspecto são gremlins onde gota d´água pode ser fatal. O quesito quantidade é bem atendido e não resta dúvida alguma. Mas o quesito qualidade como soia acontecer é nocauteado. Grande parte dos livros digitalizados, ao menos neste ano de 2010, existe apenas em língua inglesa. Em português tive que me contentar com o indispensável Machado de Assis, alguns livros de Eça de Queiróz, Fernando Pessoa e outros de Humberto de Campos. Estão digitalizados porque já são de domínio público e ninguém há que exija pagamento de direitos autorais.


Apenas por isto. Mas, para que me serve o Kindle se não posso depositar sob seus cuidados o Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon, A História da Civilização de Will Durant, Armas, Germes e Aço de Jared Diamond; Cadeira de balanço de Carlos Drummond de Andrade, A descoberta do mundo com crônicas de Clarice Lispector, O Apanhador no Campo de Centeio de Jerome David Salinger e Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez?


A segurança de ter ao alcance dos olhos e depois das mãos esses momentos mágicos em que o gênio criador irrompeu em vidas como as de Goethe e Machado, Pessoa e Heine, Schiller e Salinger, e delas fez surgir companheiros de viagem que desafiam o tempo, a memória e os modismos também. Segurança que vez por outra sucumbe ao efêmero, ao que é feito para não durar e se apresenta tão volátil quanto o capital que a financia e o trabalho que a gera. Sim, há muito deixamos de ser habitantes de catedrais da Idade Média para sermos meros transeuntes de shoppings centers feéricos, onde não sabemos discernir a passagem do tempo, quando é dia e quando é noite, e ainda assim alimentamos a ilusão de que estamos seguros, protegidos contra a realidade da vida. E quando ficamos insensíveis à passagem do tempo é que ficamos imunes à memória – e sem memória pouco ou quase nada somos enquanto realidades humanas. Tudo envelhece muito depressa porque há que se alimentar a fornalha do consumo inconseqüente.


Vivemos em uma paralisia de poder, anestesiados, precocemente envelhecidos pela idéia que o amanhã é apenas outro nome para hoje. Prisioneiros do dinheiro, viramos sujeitos de um processo de globalização que nos faz reféns do medo. A miséria foi globalizada e sabemos muito bem o que é um pobre nas palafitas de Salvador, na Baía de Todos os Santos, e outro seu semelhante nas cercanias de Nova Déli, onde pedir esmola é crime punido com detenção em regime fechado. O mundo tornou-se tão terrivelmente desigual em suas oportunidades e tão igualitário em suas formas de opressão. O dinheiro que antes circulava fisicamente hoje circula virtualmente. É, por sua natureza, apátrida e como tal não guarda relações de lealdade com os condenados da Terra. Sem vínculo algum com o trabalhador, o capital globalizado vê um desempregado potencial em cada rosto de trabalhador. E não poderia ser diferente já que tratamos aqui da ótica do predador. Primeiro avalia-se a força física, depois psicológica, depois financeira, depois midiática.


Lugar mágico


Jared Diamond argumenta que muitos dos colapsos de civilizações antigas foram os resultados de suicídios ecológicos. O autor de Colapso estabelece assim o paralelo com as sociedades atuais, onde os problemas ambientais são também uma grave ameaça. No entanto, Diamond reconhece que o colapso de uma sociedade ou civilização é quase sempre o resultado da combinação de diversos fatores. Para além da destruição do meio ambiente, ele atribui um papel às alterações climáticas, às relações comerciais com outros países, à existência ou não de povos vizinhos hostis, e, acima de tudo, à capacidade das sociedades adaptarem o seu modo de vida aos recursos naturais disponíveis.


Diamond dá-nos também exemplos de sociedades que, tendo enfrentado problemas semelhantes aos descritos acima, conseguiram, pelas escolhas que fizeram, ultrapassá-los e subsistir até hoje. A Islândia e a ilha de Tikopia mostram como é possível subsistir, mesmo em condições muito adversas, quando as sociedades fazem, em cada momento, as escolhas certas. O meio ambiente da Islândia é um dos mais frágeis do planeta, o que não impediu a sua população de ter um dos rendimentos per capita mais elevados do mundo. A ilha de Tikopia mantém uma população constante de 25 mil habitantes há mais de 2500 anos. Os seus habitantes rapidamente se aperceberam que o frágil meio ambiente da sua ilha não suportava uma população superior. Assim, para além de terem eliminado hábitos antigos, como a criação de porcos, animais que destruíam a frágil vegetação da ilha, utilizaram o aborto e mesmo o infanticídio como formas de controle da população. Uma ideia fundamental do livro de Diamond é a da necessidade de ajustarmos o nosso modo de vida, produção e hábitos de consumo aos recursos naturais que temos à nossa disposição, dependendo disso a sobrevivência das sociedades atuais.


Enquanto isso o desespero humano atinge proporções inauditas. Para alcançar o desespero humano mais completo e mais sofrido leva-se tempo. Combate-se o uso de drogas, essa válvula de escape de crescente legião de desiludidos, sem se dar conta que para a maior parte dos usuários a droga real e intransferível é a própria vida que levam, sem sentido e sem rumo como pequenos barcos de papel lançados em alto mar. E se as taxas de suicídios só fazem crescer nas antes festejadas maiores economias do planeta – como a Suíça, o Japão e os Estados Unidos – já deveriam ser vistas como tenebrosos alertas de que algo de muito podre vem sustentando o presente estágio de pré-barbárie em que vivemos, onde recursos naturais continuam sendo saqueados, inutilizados e desperdiçados em benefício de uma cruel elite de senhores feudais que aprenderam como criar a sede e o sono, mas não arriscaram soluções para criar água e descanso.


A busca desenfreada pelo cintilar fugaz dos holofotes torna defeituosas gerações de jovens que parecem abdicar em massa de sua condição humana para a condição de produtos expostos em gôndolas de mercados espalhadas ao longo da vida. A certidão de nascimento deixa de ser emitida pelos prosaicos cartórios para virem à existência no momento mesmo em que viram personagens de realities shows, de pegadinhas sórdidas, de capas de revistas e jornais. Estamos transitando do estágio de nascer para o de estrear.


Se nossos antepassados sofreram horrores inimagináveis que somente uma Idade Média poderia suscitar, nós hoje, seus descendentes, vivemos na ante-sala da Idade Mídia onde tudo se transforma em alucinantes jogos de luzes. A Idade Mídia tem seus cânones. Tudo o que não repercute não é digno da atividade humana de pensar. Tudo o que não entra na escalada de notícias de telejornais não possui existência própria nem autônoma. Tudo o que sinaliza para uma ética dos direitos humanos constitui atentado aos poderes midiáticos constituídos. O planeta inteiro começa a passar em cada vez maiores telas de tevê, lugar mágico onde as ‘coisas’ podem ser vistas mas não podem ser ‘tocadas’.


Data longínqua


Toda aspiração que vise elevar a qualidade da vida humana é atentado direto ao principio da liberdade individual, pois todo ser humano tem o direito à sua própria infelicidade sem interferência de qualquer poder e não importando em que faixa etária se encontre. Toda pessoa baixa é criança – e, portanto incapaz de autodeterminação – não importa se é filha de anões ou se descende longinquamente de pais historicamente baixos. Os tais valores humanos estão com sinais tão trocados que o novelista global Manoel Carlos (de Viver a Vida) vem sendo comparado com William Shakespeare (de Hamlet) e se acha muito natural que criança de tenros 8 anos possa interpretar vilã-mirim em novela das 8 da emissora campeã de audiência no Brasil, sendo execrável que alguém se atreva a dizer que o ‘caso’ requer imputar responsabilidades a quem de direito: os pais ou responsáveis da criança, a emissora de televisão que lhe facilita o roubo da infância, as varas de família e juizados de menores que deveriam zelar por seu desenvolvimento físico, moral, social [ver, neste Observatório, ‘O que os olhos não veem‘].


Terminamos confinados à insônia originária de diversos fatores, dentre os quais destaco a ansiedade irreprimível por comprar e a angústia de não ter como pagar. A insônia nunca foi boa para ninguém, salvo os donos de laboratórios farmacêuticos. Não à toa que os Estados Unidos consomem 53% de todos os sedativos, ansiolíticos e outros medicamentos vendidos de forma legal em todo o mundo – e quase 50% das drogas proibidas vendidas ilegalmente no mundo. O patético da história que a nação do Norte conserva em suas fronteiras geográficas não mais que 5% de toda a população mundial.


Do jeito que as coisas vão não haverá o dia em que a esperança venha se encontrar com a realidade.

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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter