Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O espaço de comentários na notícia em tempo real

Há um novo “protagonista” na hierarquia da informação jornalística, nestes tempos de comunicação em rede, na vertigem do jornalismo digital balizado pelas redes sociais, blogosfera e a figura do receptor que também produz informação e/ou opinião: o comentarista. O pesquisador Thiago Amorim Caminada (objETHOS/UFSC) apontou, recentemente, a necessidade de um debate sobre essa questão (ver aqui) que pudesse desembocar no código de ética profissional e/ou manuais de redação. Vou me ater ao espaço de comentários do jornalismo online, no Portal G1 (da Globo.com), a partir de três reportagens.

Esta brevíssima reflexão dialoga com uma hipótese presente na obra Mutação no Jornalismo: Como a notícia chega à internet, da pesquisadora Thaís de Mendonça Jorge (Editora UnB, 2013): “A notícia enfrenta hoje um novo processo de mutação, e mais uma vez procura se adaptar às transformações da sociedade. Ganhando uma nova mídia para se exibir; espraiando-se por terrenos com som e imagens; conquistando novos públicos na rapidez dos tweets, o relato noticioso muda”.

Em ordem cronológica, começo com a notícia publicada pelo G1 São Paulo (2/4/2015): “Filho mais novo de Alckmin morre em queda de helicóptero em Carapicuíba”. O texto não assinado dá conta da tragédia: “O filho mais novo do governador Geraldo Alckmin (PSDB), Thomaz Rodrigues Alckmin, de 31 anos, morreu nesta quinta-feira (2) na queda de um helicóptero em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Cinco pessoas morreram no acidente” (Fonte: http://migre.me/q5OTM). Além do jovem Thomaz, morreram também “o piloto Carlos Haroldo Isquerdo Gonçalves, de 53 anos, e os mecânicos Paulo Henrique Moraes, de 42 anos, Erick Martinho, de 36 anos, e Leandro Souza, de 34 anos”.

A publicação da reportagem suscitou 924 comentários, com repercussão imediata nas redes sociais, em especial Facebook e Twitter. Entre xingamentos, achincalhes torpes à memória do filho de Alckmin e teorias da conspiração de filme “B”, pouco ou nada sobra dessa interação entre o produto jornalístico e as informações e/ou opiniões do público. Destaco algumas opiniões:

>> “Esse acidente foi armação do próprio partido; talvez tenha sido para ‘queima de arquivo’”;

>> O rapaz que morreu era avesso à política, não gostava das coisas que o pai fazia, mas sabia de coisas sujas do governador;

>> Celso Daniel, Eduardo Campos… Será que tem mão do PT aí também para atacar o PSDB?;

>> E ainda há quem duvida que o PT é a maior facção do país, estamos em uma ditadura comunista quem for contra o governo salve-se quem puder;

>> Ah não, achei que era o filho do Lula que pena! (fica para próxima)”.

Bom gancho

No meio desse palavrório caótico, algumas vozes pregavam a ponderação:

>>“Sem falar de política, por favor. Vamos ter condolências à família;

>> Não misturem política, problemas sociais com uma tragédia de família;

>> Vamos respeitar a dor da família Alckmin, e dos demais ocupantes que infelizmente morreram”.

Uma proposta, no entanto, chamou minha atenção:

>> “Acho que o G1 não deveria liberar o espaço para comentários nesse tipo de situação. Sempre tem um infeliz para falar de política, religião ou fazer alguma piadinha descabida”.

A segunda reportagem, assinada pela jornalista Carolina Dantas (Portal G1, São Paulo, 20/5/2015) tem como objeto a vinda dos imigrantes haitianos do Acre para São Paulo. Na matéria bem apurada, destaca-se uma entrevista em vídeo com o padre Paolo Parise, da Paróquia Nossa Senhora da Paz (Centro). O religioso, que coordena o acolhimento aos haitianos, alertava para os problemas decorrentes da vinda de mais 130 pessoas sem aviso: “Estamos dialogando com a Secretaria de Direitos Humanos e as várias instituições para tentar sensibilizá-las a fazer o seu papel, que é abrir um espaço de emergência para esse haitianos” (Fonte: http://migre.me/q5PxL).

No espaço para comentários, a matéria que a rigor tratava de solidariedade humana e ação pastoral, gerou 206 comentários. Prevalecem xingamentos de cunho racista, xenofóbico e na linha geral do ódio de classe/intolerância tão presentes nas redes sociais. Destaco alguns:

>>“O Brasil não cuida nem do seu povo quer cuidar desses … por que não ficam no seu país e morrem de fome por lá mesmo?;

>> São os caras que vão nos matar em breve!! É bom abrir os olhos enquanto há tempo!;

>> O que deve ser feito com urgência é fretar um navio e mandar esses lixos humanos de volta pra suas origens;

>> É o exército bolivariano que está sendo montado pela esquerda infestada que incentiva esse tráfico lucrativo. Para resolver o problema é só mandá-los de volta para o Peru [grifo nosso], local de procedência”.

No meio do tiroteio verbal sem rumo, alguém se autoidentifica como imigrante e pondera:

>>“Eu sou português e minha família se radicou aqui; hoje sou empresário bem-sucedido que dá emprego para 86 brasileiros”.

Perdido no caos supostamente dialógico, um comentarista arrisca uma interação produtiva com a reportagem:

>> “Realmente acho que a mentalidade do paulista está cada dia pior. Sempre fomos um povo que recebeu todos os tipos de migrantes e imigrantes vindos de diversas partes do mundo, desde a fundação dessa cidade, em busca novas oportunidades na vida ou fugindo de algum conflito. Já recebemos em diferentes períodos portugueses, italianos, espanhóis, africanos, japoneses, judeus, sírio-libaneses, armênios, chineses, coreanos, bolivianos e por aí vai, e sempre nos orgulhamos disso. Onde foi que erramos?”

Isso já daria gancho para outra matéria, uma suíte de novo tipo…

Catarse destrutiva

Encerro, citando a reportagem publicada no Portal G1 Nacional (27/5/2015) cujo título já sugeria um tipo de matéria-prima no espaço de comentários: “Mãe de Dilma é internada com sintomas de isquemia, diz Planalto”. O texto não assinado informa que naquela quarta-feira (27/5), “a mãe da presidente Dilma Rousseff, Dilma Jane, foi internada em um hospital de Brasília após apresentar sintomas de ataque isquêmico transitório. Dilma Jane tem 91 anos e mora com a presidente no Palácio da Alvorada, residência oficial em Brasília, desde 2011, quando a filha assumiu a Presidência da República” (Fonte: http://migre.me/q5Qvm).

A matéria gerou 261 comentários, um esgoto da alma humana a céu aberto nas páginas eletrônicas daquele portal noticioso:

>>“Morre, morre, morre velha sem-vergonha;

>> Vamos rezar pra que satã a receba de volta; essa prostituta tinha que morrer antes de procriar um demônio;

>> A culpa toda é da parteira que teve a oportunidade de enrolar o cordão umbilical no pescoço da Dilma e enforcá-la;

>> Manda ela pro SUS;

>> Aqui em casa já acendemos uma vela e estamos orando pela piora da saúde da mãe da marmota;

>> Por que não se internou no SUS para os médicos cubanos cuidarem?;

>> A Dilma deveria morrer junto!”

Lá pelas tantas, aparece uma ponderação similar àquela que havia sido postada no caso da tragédia que vitimou o filho do governador Geraldo Alckmin:

>>“Olhei a matéria e pensei: o G1 deixou a área de comentários em aberto. Dito e feito. Gostaria que a nossa imprensa tivesse mais respeito: na matéria sobre a morte do filho do Alckmin também foi a mesma coisa”.

Mas, havia raríssimas manifestações de rejeição ao tom geral:

>>“Nossa quanto ódio! Deixa eu sair daqui pra vomitar;

>> Esses comentários fazem seus autores serem piores que qualquer desgoverno”.

E até um solitário apoio nos mais de 200 comentários que li:

>> “Boas melhoras a mãe dela… Eu só consigo ter uma imagem da Dilma: Guerreira!!!”

Quando reflete sobre o que seria “o novo papel da audiência”, aqui matizado no espaço dos comentários, o pesquisador Thiago Amorim Caminada aponta que tal “audiência participativa e colaborativa também deveria receber atenção referente ao seu grau de responsabilidade”. Para ele, em princípio, tratava-se apenas de os jornalistas profissionais corresponderem “às expectativas desses públicos ávidos por um diálogo mais franco e por estabelecer parcerias com os editores e jornalistas”. Uma observação preliminar nos quase 1,4 mil comentários postados nas três reportagens aqui analisadas indica que os novos leitores/as estão ávidos por um tipo de catarse com potencial não construtivo, por natureza.

Regressão perigosa

Resgato a obra de Thaís de Mendonça Jorge (FAC/UnB) para reafirmar que, independente dos novos suportes móveis e aplicativos de última geração, “a notícia que se conhece continua ser, na essência, um bem simbólico que nos ajuda a estandardizar o mundo”. Um bem simbólico, forma de conhecimento social que não dialoga com o discurso de intolerância, ódio, misoginia, homofobia, preconceito racial, xenofobia e outros dizeres brotados das pequenas almas humanas que transitam, aos milhares, pelos nós das diversas plataformas de comunicação em rede.

Sacralizado nos novos espaços midiáticos, ancorado na internet, o jornalismo publicado nos portais noticiosos das grandes corporações de mídia também não aponta uma saída ao impasse da nova mutação. Em sua página do Facebook, recentemente, o professor Nilson Lage (UFSC) vaticinou: “Em anos recentes, oligopolizada e domesticada, substituída em alguns de seus papéis por outras mídias, a imprensa regride aos dois estágios primitivos – o do escândalo e da propaganda”.

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Samuel Lima é professor da UnB, pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e objETHOS