Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espectro que nos ronda

Um espectro ronda a sociedade e o Poder, não certamente o do comunismo – como anunciara Marx em seu célebre Manifesto, essa obra-prima de analítica social conjugada em jornalismo –, mas o espectro do “ex-comunismo”. É como se os representantes ou as lideranças das velhas facções da esquerda tivessem chegado ao Poder para descobrir que não é exatamente o que pensavam ou então que, para exercê-lo, tivessem de esvaziar a identidade do que foram: agora são ex-militantes, ex-trotskistas, ex-socialistas etc. A identidade vazia é nada menos do que espectral.

Basta o observador colocar a lupa sobre uma crise ou um escândalo trombeteado pela mídia para se dar conta da incidência do prefixo na caracterização dos personagens. Se em vez da lupa e do caso restrito assestar um binóculo sobre a paisagem social mais ampla vai se deparar igualmente com a irradiação semiótica do prefixo, a exemplo das seitas religiosas que proliferam nessa base: ex-alcóolatras, ex-drogados, ex-bandidos e o que mais houver.

Não estamos seguros quanto à sua força explicativa, mas é de qualquer forma significativa a presença desse prefixo nos personagens e nas situações que singularizam a história nacional contemporânea e culminam em acontecimentos de jornal. Assistimos à metástase do “ex”: o “ex-tudo”, que, aliás, já aparecia em Pós-tudo(1984), o conhecido poema concreto de Augusto de Campos, como o esvaziamento de tudo. Na vida em curso, é como se a história tivesse de ser lavada, do jeito que se “lava” dinheiro escuso, para dar margem ao arrependimento ou ao apagamento do antigo fogo da transformação social pela água morna dos “arreglos” político-sociais.

Imoralidade e cinismo

Essa evacuação das identidades fortes parece corresponder a uma espécie de anemia social, que o nipo-americano Francis Fukuyama confundiu com “fim da História”. Nos avatares contemporâneos das sociedades liberais e tecnodemocráticas, registra-se a perda progressiva de energia de tudo aquilo que movimentava o socius tradicional: as grandes causas públicas, as ideologias revolucionárias, as lutas sindicais, as utopias do progresso ilimitado, a representatividade política. Não exatamente “fim” da História, portanto, mas algo como o fenômeno do “ex-histórico” atuando na involução de formas clássicas como “o político” e “o social”.

Por que involução?

Num livrinho de três décadas atrás (À l´ombre des majorités silencieuses ou la fin du social, “À sombra das maiorias silenciosas ou o fim do social”), Jean Baudrillard (1929-2007) explicava que, quando a política surge na Renascença, a partir da esfera religiosa, era inicialmente apenas um jogo de signos, uma pura estratégia que não se atrapalhava com nenhuma “verdade” social e histórica.

O espaço político, diz ele, “é inicialmente da mesma ordem que o do teatro maquínico da Renascença, ou do espaço perspectivista da pintura, que se inventa naquele momento (…) O cinismo e a imoralidade da política maquiavélica estão aí: não no uso sem escrúpulo dos meios com o qual a confundiram na acepção vulgar, mas na desenvoltura frente aos fins”. Só depois do século 18, desde a Revolução francesa é que a política se investe de “verdades” ou referências sociais: o povo, a vontade do povo etc.

Agora, a involução: na medida da crise contemporânea da representação política e do esvaziamento das referências sociais clássicas (povo, classe, proletariado), a referência maior seria hoje a da maioria silenciosa, “essa entidade nebulosa, essa substância flutuante cuja existência não é mais social, e sim estatística, e cujo único modo de aparecimento é o da pesquisa de opinião”, escreve Baudrillard. A análise mira, em princípio, a realidade européia, mas se adapta perfeitamente ao que atualmente ocorre nos países ditos “emergentes”, como o Brasil. O cinismo e a imoralidade da política tomam o lugar das aparências de “verdades”, como em suas origens renascentistas, apenas sem o refinamento maneirista de Maquiavel.

Lula em campo

Findo o reino da vontade e da representação, entra em cena o domínio das médias estatísticas que pilotam o processo eleitoral como o condutor de uma locomotiva, capaz de transformar o eleitor numa Maria-vai-com-as-outras. Tem-se, assim, a ex-vontade, a ex-representação e a ex-política: metamorfoses, alguém diria, mas não as ambulantes cantadas por Raul Seixas – metamorfoses paralíticas, já que apenas aprofundam o status quo.

Em termos nacionais-concretos, fora do arrazoado em que transpira um certo pessimismo típico do pensamento pós-modernista europeu, o que a “síndrome do ex”tem a ver com a conjuntura atual em sua relação com a imprensa?

Em primeiro lugar, a chamada de atenção para o fenômeno patético da depauperação dos poderes republicanos diante das frações pouco visíveis das classes dirigentes (construtores e empreiteiros de um lado; financistas de outro), junto às quais os ex-incendiários (os ativos militantes de outrora) se tornam “fiadores” do governo formal. O combalido movimento sindical vê, à distância, suas ex-lideranças em cargos importantes. Nas sombras, prosperam as identidades ambíguas, como, aliás, reconhece a nota do Palácio do Planalto a propósito do escândalo em pauta: “ex-ministro vale muito”.

Em segundo, a curiosa visibilidade do ex na cena pública como cogestionário de questões importantes. O Globo (24/5) deu grande destaque à carta dos oito ex-ministros do Meio Ambiente à presidente Dilma Rousseff, em que dez ex-comandantes da área ambiental condenam a proposta do Código Florestal, votado no dia seguinte pela Câmara dos Deputados. Segundo a imprensa, na hora da votação, o deputado comunista (ex?) Aldo Rebelo, relator do código, rogou a Deus pela aprovação do projeto.

Para coroar a sucessão de acontecimentos, o ex-presidente da República entrou em campo disposto a botar ordem na articulação política do Planalto. Ocupou as manchetes de jornais, como se diz no Rio, “na moral”.

E la nave va