Raramente nos damos conta de como a mídia, que é hoje uma verdadeira forma de vida (com ambiência e códigos próprios), ‘veste’ culturalmente determinadas ações na vida real, que em princípio não teriam nada a ver com o mundo do espetáculo. Mas os casos são abundantes, para quem se dispuser a observar.
Veja-se, por exemplo, a matéria jornalística que descrevia a chegada das tropas do Exército a Anapu, no Pará (O Globo, 18/2/2005), para dar suporte às ações das polícias Civil e Federal e dos demais órgãos que participarão da força-tarefa contra a grilagem, como Incra, Ibama e Funai. Como é amplamente sabido, toda a operação foi desencadeada depois do assassinato de uma missionária que a imprensa insiste em qualificar como norte-americana (índice aparente da maior importância atribuída ao crime), embora se tenha conhecimento de sua naturalização brasileira.
Descreve o jornal:
‘Os homens do Exército desembarcaram ontem em Anapu sob os olhos de uma platéia curiosa. Eram 7h e o ruído dos helicópteros se aproximando já despertava a atenção dos moradores (…) O desembarque do primeiro pelotão mais parecia uma cena de guerra, no meio de um campo de futebol da cidade. Os soldados que desciam dos helicópteros, um Blackhawk e um Cougar, se atiravam ao chão, postados lado a lado, com seus fuzis 762 em posição de tiro’.
Declarações de efeito
Igual ao carateca Chuck Norris, que nos filmes entra e sai de helicóptero das florestas vietnamitas, semeando o terror vingativo em campos e aldeias. Igual à ficção cinematográfica classe C – portanto, apenas com o acréscimo de detalhes risíveis. De fato, não havia nenhuma situação de combate, já que a zona de conflito não se situa exatamente no ‘maltratado campo de futebol usado como área de pouso’, mas os nossos guerreiros, com suas roupas de camuflagem (o jornal falava em ‘roupa camuflada’, o que nos parece um contra-senso), atiravam-se ao chão.
Para quê? Evidentemente, para efeitos de fotografia, filmagem e espetáculo local, ou seja, para a sua reprodução midiática. Lembra um pouco essas periódicas ocupações policiais dos morros cariocas: tropas de mais de mil homens invadem as favelas, prendem um ou dois pés-rapados, apreendem pequenas quantidades de drogas, armas e munições, e no final tudo fica na mesma de antes. Mas, aos olhos da mídia-Big Brother, produz-se uma sensação de segurança. As tropas em Anapu buscam esse efeito midiático.
É no fundo um efeito da mesma ordem que as declarações oficiais sobre o acontecido. O público-leitor ficou sabendo que o presidente Lula ‘condenou de modo veemente o assassinato cruel e covarde da irmã Dorothy Stang, assim como as demais mortes ocorridas no estado do Pará’; que a ministra Marina da Silva anunciou que ‘não podemos nos render à lógica dos que tentam intimidar as ações do Estado e das comunidades’; que se reuniram no Palácio do Planalto o presidente da República e mais nove ministros; que o presidente foi enfático: ‘Isso é inadmissível. Não podíamos ter deixado que isso acontecesse’.
O problema é que deixaram. E deliberadamente, já que poucas semanas antes o governo federal deu carta branca às madeireiras para continuar predando a região amazônica. Foi algo como a licença dada nos livros e filmes ao personagem James Bond, agente 007, inclusive matar, para desempenhar a sua tarefa. Depois do assassinato da missionária, anunciou-se às pressas um ‘pacote ambiental’, que cria uma reserva florestal e produz simulacros de obstáculos à ação das madeireiras. Estas, sempre vorazes em sua grilagem continuada, fazem o jogo, protestam.
A função do jornalismo
Com a fragmentação do noticiário nas edições televisivas e jornalísticas, fica difícil estabelecer a conexão entre um acontecimento e outro, mas são justamente as conexões que transformam o acontecimento em fato social, isto é, em algo que ocorre e pode ser apreendido pela consciência à luz das relações de causalidade. O conhecimento que nos propicia o jornalismo é o conhecimento do fato. É fundamental ter em vista esse efeito de conhecimento, para não nos limitarmos aos potenciais de atualidade e de relevância na transformação da ocorrência em acontecimento jornalístico e, depois, em sua apreensão como fato social.
Para tanto, é imperativo que o acontecimento tenha a pregnância necessária para incitar-nos a reconstruir ético-politicamente o nosso quadro habitual de vida, abalado pela ocorrência. Aí reside a função precípua do jornalismo, que é a de instaurar relações de causalidade entre os acontecimentos (revelando as motivações dos agentes), de modo a elucidar as condições de passagem do imprevisível ao previsível. Ao se prever, domestica-se de algum modo o imprevisível e se repõe ordem no mundo.
Para nada
Isso, claro, diz respeito a uma teoria da notícia. No caso do Pará, entretanto, nada era realmente imprevisível, porque os assassinatos encomendados são há muito tempo uma constante, sem que se mexa de verdade uma palha sequer a fim de não perturbar seriamente a miríade de alianças com os ‘caciques’ locais. Por pressão destes, o governo federal deu a ‘licença 007’ às madeireiras. Agora, com um pacote acolhido por comentaristas em frases do tipo ‘antes isso do que nada’, dá um recado para uso externo, repetindo em outros termos o famoso lema malufiano do ‘estupra, mas não mata’, ou seja, estupre-se a floresta, mas não se mate ninguém. Ou pelo menos alguém com nome equivalente a Dorothy Stang. Sim, porque as notas oficiais referem-se às ‘demais mortes’, mas ninguém tem nome suficientemente americano para ser destacado.
Daí a inevitável analogia entre a agitação governamental e a cena de chegada dos helicópteros a Anapu. A violência na região amazônica não é problema que se resolva apenas com tropas, polícia ou ‘pacote ambiental’, de que natureza seja. O fato que se infere dos acontecimentos fragmentados na mídia é que há um enorme problema social com o qual não se pode lidar em termos do que Antonio Gramsci (1891-1937) chamou de ‘pequena política’, essa do dia-a-dia gerencial dos conchavos, das alianças espúrias ou da administração de pacotes, que publicamente se traduzem nas ‘sensações’ midiáticas. O problema é basicamente político e requer a ação de uma grande política transformadora.
Fora dela, todo o barulho dos helicópteros, das armas e do anúncio de pacotes faz apenas lembrar um poema de Ascenso Ferreira sobre o gaúcho – talvez sobre Getúlio Vargas, sabe-se lá. Vale a pena reprisar essa pequena jóia de métrica e sonoridade:
‘Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das cochilas!
Saí de meus pagos em louca arrancada!
– Para quê?
– Para nada!’
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro