Diante de uma prateleira de supermercado, a mulher, de aparência muito humilde, explica à outra por que não tinha torcido pela seleção brasileira: ‘Eu, aqui, me virando para comprar comida, e aquela turma de milionários correndo atrás de uma bola no campo…’
Em princípio, uma frase dessas, colhida ao acaso no instante fugaz de uma ida ao mercado, não justificaria um texto no Observatório de Imprensa. Se constasse de uma carta de leitor ou de qualquer uma das chamadas mídias sociais (Twitter, Facebook etc.), sim. Mas é possível tomá-la como pretexto para ser coerente com o pensamento de que, às vezes, é necessário complementar a informação de imprensa com o que se observa ao redor, na comunidade.
Essa ‘informação de imprensa’ apareceu numa matéria na edição dominical (4/7) de O Globo, em que a repórter Carla Rocha discorre sobre as consequências da meteórica ascensão social de jogadores de futebol:
‘Num dia, são jovens que passam fome em categorias de base, enfrentando privações na esperança de um lugar num grande clube; no outro, adultos para os quais a sorte brilhou, descortinando um mundo maravilhoso de carrões, mulheres lindíssimas e muito, muito dinheiro. Esse jato social, porém, está sujeito a turbulências, principalmente no campo emocional.’
‘Eles passam a se achar poderosos’
É certamente controversa a frase da mulher no supermercado. Jogadores de futebol partilham a condição de astros do espetáculo com cantores, atores de TV e cinema etc., muitos dos quais são meteóricos milionários. Isto não impede os consumidores, o grande público de aderir emocionalmente ao espetáculo. A frase em questão poderia, assim, ser interpretada como desabafo ou ressentimento frente à distância na distribuição de renda ou às desigualdades da sorte em matéria de condição social.
Mas é também admissível a hipótese de que a frase pertença, embora de modo não explícito, ao mesmo contexto crítico que gerou a reportagem de Carla Rocha, com o título ‘acesso rápido à fama deixa jogadores sem limites’. Neste caso, ambos as personagens estão levantando a questão milenar da hybris, o excesso que tanto preocupava na Antiguidade grega o grande Sólon, para quem a abundância conduziria à hybris, e a hybris à ruína.
Não é bizantinismo ou pedantismo cultural invocar aqui o antigo grego, uma vez que essa questão atravessa a consciência do homem desde Sólon e a poesia trágica até hoje, até mesmo no mais comezinho dos assuntos. Já tivemos um presidente da República defenestrado do poder por motivos de hybris, por falta de limites.
Na verdade, não é nada comezinho o fato que lastreia a reportagem em pauta, já que o texto gira em torno do sumiço de Eliza Samudio, ex-amante de Bruno, goleiro do Flamengo. O fato tem a gravidade característica de toda suspeita de homicídio que, no caso, é levantada sobre o goleiro, já indiciado por tentativa de aborto, ameaça, cárcere privado e lesão corporal, nos termos de uma denúncia de agressão feita por Eliza no ano passado. Associados ao fato, relatam-se os casos de outros jogadores de futebol em quem a falta de limites se estende em casos de alcoolismo, drogas e violência.
‘Eles passam a se achar poderosos’, comenta o presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte. ‘Há um lapso muito grande, num prazo de tempo curto, entre a vida das dificuldades na infância e o status que esses jogadores conquistam graças ao esporte.’
Modelagem ética
Claro, a mídia tem a sua parte na construção dessa imagem de onipotência de que se investe a celebridade futebolística. Mas a mídia aí não está sozinha, já que é coadjuvada nessa construção por parceiros não declarados, como políticos, dirigentes de clubes, marketing empresarial etc. De fato, a notícia de jornal não é simples ‘reflexo’ automático de uma realidade singular, ou seja, a construção de um singular pela interpretação de um grupo profissional, como acentuam as análises construtivistas do jornalismo.
O acontecimento jornalístico ocorre sempre depois dos fatos, isto é, quando se produz o trabalho logotécnico de determinação das circunstâncias – apuração dos detalhes, realização de entrevistas, portanto mobilização de parcelas do público, que são também ‘atores’ do acontecimento. Esses atores ‘extrafactuais’ costumam isentar-se de responsabilidade social (há sempre um jovem na outra ponta do circuito comunicativo) e entrar de cabeça na louvação do espetáculo puro e simples. Não é nenhum moralismo cultural considerar que, embora vivamos inapelavelmente na sociedade do espetáculo, há aspectos da espetacularização capazes de suscitar o que há de pior no gênero humano.
Não é preciso ir muito longe nos exemplos nem rebuscar as razões da promiscuidade entre celebridades e criminosos, tão visível nas páginas da imprensa carioca. Basta fazer um pequeno playback mental para as imagens do descontrole emocional da seleção brasileira no segundo tempo do jogo com a Alemanha: os socos de Dunga no poste, o pisão desnecessário do jogador na perna do adversário etc. Há excesso de arrogância, hybris ou lá que outro nome se queira dar à falta de limites, à onipotência da exibição pública de um descontrole lastreado por dinheiro em demasia. Nesse horizonte, até mesmo a impunidade do homicídio se converte em expectativa.
Com ou sem ressentimento, a frase da mulher no supermercado traduz um certo sentimento comunitário de que talvez devam ser menos lenientes os juízos sociais (e midiáticos) em casos de quebra de modelagem ética desses célebres ou, quem sabe, mais severos os impostos sobre as fortunas. O espetáculo não deve ser nenhuma forma de morte do equilíbrio social.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro