O jornalão criado por Júlio Mesquita continua oferecendo agradáveis surpresas. Sobretudo na disposição de romper tabus e abrir o debate sobre o principal fantasma que ameaça a imprensa – a concentração dos veículos de comunicação em grandes conglomerados.
Raro encontrar em jornais de grande porte tamanha garra e ousadia para enfrentar os apetites dos poderosos grupos de comunicação nacionais e internacionais.
Grandes jornais são produzidos por grandes empresas cujo instinto de defesa, em geral, funciona na direção do corporativismo e da manutenção do status quo.
Não é este o caso do Estado de S.Paulo: seu instinto de defesa empurra-o contra o imobilismo e as conveniências. O degelo (ou a temporada de murros na mesa) começou em 13 janeiro de 2003, quando dedicou o principal editorial a respeito da cartelização das comunicações nos EUA [veja remissão abaixo].
Foi suficiente para instalar na pauta do Conselho de Comunicação Social a discussão sobre a concentração e a propriedade cruzada dos meios de comunicação no Brasil. Mais recentemente, em discurso, o diretor do jornal Ruy Mesquita investiu contra a murdoquização do jornalismo contemporâneo (referência ao tubarão da mídia Rupert Murdoch, símbolo da cartelização) [remissões abaixo].
Agora, entra em cena outro diretor do grupo, Fernão Lara Mesquita, com um incisivo flagrante do vertiginoso processo de cartelização da imprensa americana numa conferência que pronunciou no Senado Federal.
Perguntará o leitor: e nós com isso? Por que razão devemos nos preocupar com a cartelização e o fim da diversidade informativa nos EUA?
O assunto nos concerne – e muito. Por várias razões. A principal delas tem a ver com a FCC (Federal Communications Comission). Esta agência reguladora foi criada nos anos 1930 do século passado, durante o New Deal (novo pacto) do presidente Franklin D. Roosevelt, e tal como as demais criações deste renovador da democracia americana tem uma vocação nitidamente progressista.
Interesse público
Ao longo da sua existência, a FCC tem conseguido exercer seu papel de freio aos ímpetos predatórios do capitalismo selvagem no campo da comunicação e do entretenimento. Raramente trata do conteúdo que circula nos meios de comunicação mas, há pouco, multou emissoras de rádio e TV pela transmissão de material considerado obsceno. Sua função consiste em proteger a concorrência e manter a diversidade dentro do sistema midiático para garantir a eqüidistância e o equilíbrio.
Equilíbrio é peça central do sistema democrático.
A FCC vem sendo assediada pelos apetites dos grandes conglomerados e seus parceiros no setor financeiro porque a sigla tornou-se sinônimo de regulação e controle – conceitos que aqueles consideram intoleráveis. No governo Bush, o rolo compressor do conservadorismo americano causou enorme estrago na FCC: foram mitigadas e subvertidas exigências importantes no tocante à concentração empresarial.
Apesar das deformações, a agência continua sendo uma referência e ainda se mantém como paradigma de defesa da sociedade contra o vertiginoso processo de fusões que desfigura tanto a imprensa como o jornalismo – e o jornalismo porque coloca-o a reboque de indústrias sem qualquer compromisso com o interesse público.
Preocupar-se com a FCC, ao contrário do que alegam os lobbies empresariais brasileiros, não significa uma submissão à pauta dos debates domésticos americanos. É uma preocupação legítima, cívica, porque se nos EUA ainda existe a consciência de que o legado de Roosevelt precisa ser recuperado, no Brasil só podemos nos agarrar à vaga esperança de um dia dispormos de um órgão regulador inspirado na FCC.
Acervo de lutas
Enquanto o Congresso Nacional estiver sob influência dos parlamentares que são também concessionários de serviços de rádio e TV, será impossível esperar qualquer iniciativa oriunda do Legislativo capaz de reprimir a concentração e sanear o sistema midiático.
Mesmo que o governo do presidente Lula perca sua incompreensível e incoerente ojeriza ao conceito das agências reguladoras, um projeto desta natureza jamais passará nas comissões ou no plenário do Congresso. Será engavetado por algumas décadas porque deputados e senadores fisiológicos não têm pudor em assumir publicamente suas contradições éticas – até gostam. E aqueles que poderiam endossar uma agência com esta finalidade jamais se animarão a enfrentar abertamente o ressentimento dos lobbies corporativos da mídia eletrônica.
Esta é a importância da cruzada recém-iniciada pelo Estadão. Trata-se de um jornal cujo ideário é rigorosamente liberal, antiestatista e, não obstante, empenhado em criar mecanismos para controlar as perversões do sistema da livre iniciativa no campo do jornalismo e da comunicação social.
Apesar das dificuldades políticas, dos poderosos interesses em jogo e da insensibilidade do resto da imprensa no tocante ao seu futuro como instituição respeitável e diversificada, o Estadão fez uma aposta e incorpora mais esta causa ao seu acervo de lutas.
O Observatório da Imprensa, mais uma vez, está em boa companhia.