Na quinta-feira, 16 de junho, na semana seguinte ao massacre na boate gay de Orlando, Flórida, EUA, a alta corte de Mombaça, cidade costeira do Quênia, julgou os exames anais coagidos em homens suspeitos de serem homossexuais legais e permitidos conforme a Constituição daquele país. Contrariando tratados internacionais de direitos humanos, o poder judiciário queniano fere a dignidade de uma minoria politicamente, ideologicamente e religiosamente perseguida de sua população ao impor abusivos testes de HIV e hepatite B, além de invasivas vistorias no perímetro e no diâmetro anal de gays.
De acordo com a legislação vigente, a prática de sexo homossexual consensual entre adultos é considerada crime com pena de até 14 anos de prisão no Quênia. Considerada uma degenerescência pela psiquiatria do século XIX, a homossexualidade foi reconhecida em 1974 como uma forma ou possibilidade de sexualidade entre outras, sendo retirada da categoria das “parafilias” a partir da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (DSM-III), publicado em 1987 pela American Psychiatric Association (APA).
Tal entendimento vigora na maioria dos países democráticos modernos, contudo há nações e grupos discriminadores que ainda se prendem a ultrapassados conceitos que impõe uma maneira “correta” de ser em detrimento do direito individual de expressão sexual. O que a corte do Quênia regulamenta atualmente foi abolida por sistemas judiciários de outros países que avançaram nos direitos civis da população LGBTI. No passado ficou conhecido o caso da condenação do escritor Oscar Wilde a dois anos de prisão em regime de trabalhos forçados por crime de indecência e vulgaridade por seus relacionamentos com outros homens. Contudo, o encarceramento do artista irlandês, autor do romance O Retrato de Dorian Gray, cuja obra teve trechos utilizados em tribunal para corroborar a acusação de imoralidade e indecência, se deu em Londres em 1895. Atualmente, esse tipo de condenação somente pode ser conhecida em países que aliam uma tradição religiosa excludente e uma forte intervenção estatal na vida privada de seus cidadãos.
Mesmo em Estados democráticos liberais, nos quais haveria uma suposta menor interferência estatal na intimidade da população, há leis baseadas em costumes que impõe restrições e deslegitimam comportamentos que dizem respeito apenas ao foro íntimo de cada um. O exemplo queniano, país de maioria cristã, ainda que grotesco, é apenas um entre diversos em que minorias são sujeitadas por intransigência e desrespeito à dignidade. Cada vez que um médico no Quênia age legalmente, mas eticamente de maneira reprovável, ao examinar homens em posições humilhantes ou ao introduzir os seus dedos ou objetos no reto dos investigados, uma violência física e psicológica é cometida.
A Anistia Internacional considera essa uma forma de tortura legitimada pelo Estado que deveria proteger os seus cidadãos. Não apenas aquele que é submetido a essa situação degradante é violado, mas todos os cidadãos que são sujeitados a um Estado controlador que se comporta como um pai sabedor a cuidar de cidadãos mimetizados em tolos ingênuos que precisam de leis invasivas que os afastem de maneiras degenerescentes.
Os limites da interferência do Estado na vida privada
No Brasil, esse Estado regrador da intimidade se mostra bastante contundente nos partidos políticos ligados a grupos cristãos, cujo comportamento condizente com as crenças religiosas tenta ser imposto a uma população muito maior do que a de qualquer segmento ligado às igrejas. Um exemplo é a polêmica criada no Congresso Nacional, em 2015, em torno do conceito de família a ser adotado na legislação brasileira. Embora a laicidade esteja explicitada na Constituição Federal outorgada em 1988, os legisladores ainda não sabem os limites da interferência do Estado na vida íntima das pessoas que eles representam na Câmara dos Deputados e no Senado. Não é papel do Estado regrar as relações afetivas e sexuais consensuais de pessoas adultas e capazes de discernir o que fazem e o que sentem emocionalmente.
O Estado falha miseravelmente ao representar apenas uma parcela da população, ainda que esta seja a maioria. Não cabe mais ao Estado moderno do século XXI determinar que apenas o casamento de um casal heterossexual é merecedor dessa denominação, enquanto outras formas de relações afetivas estáveis tenham de recorrer a designações alternativas para serem aceitas judicialmente com os mesmos direitos. Da mesma forma, nem mesmo a limitação ao número de parceiros em uma união estável tem lugar nas preocupações do Estado democrático, pois são as pessoas maiores de idade que têm de ter a liberdade de escolher a forma, com quem e com quantos se relacionarão.
Nenhuma igreja precisa mudar os seus dogmas para se adaptar à sociedade moderna, da mesma forma que esta não tem de ser limitada ao discurso religioso tão fragmentado em tantos segmentos que se proclamam sabedores da Verdade. Se não avançarmos em questões de real relevância como a sustentabilidade, a substituição dos combustíveis fósseis, a redução da desigualdade social, a melhora do sistema educacional, o acesso facilitado à saúde, entre outras, teremos sempre o Estado de olho no ânus do cidadão.