Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

LITERATURA
Alcir Pécora

Dez passos rumo ao desprestígio

‘Repassando 2007 mentalmente, me vieram à cabeça as seguintes tendências no campo da literatura, umas novas, outras que só confirmam as observadas nos anos mais recentes:

1. A proliferação de Flips, Flaps, Flops, Baladas e Copas Literárias, e até Raves Culturais, nas quais a literatura aparentemente se afirma como evento globalizado de massa ou motivo de festa popular, associada a fenômenos alegadamente deleitosos como batuque, botequim, noitada, e, por que não?, celebridades, pois nem elas querem ficar por fora da grande ‘novidade’ da leitura, assim como os novos ‘leitores’ não querem deixar de tirar uma lasquinha ao vivo de seu astro, que digo?, de seu ‘autor favorito’. Dessa tendência, a pergunta relevante é saber em que medida a imaginação da literatura, trabalhada pelo marketing dito ‘cultural’, pode contribuir para incrementar o hábito festeiro, pois a questão contrária, isto é, de que modo a festa pode contribuir para a literatura, é apenas uma piada de salão.

2. A afirmação dos concursos literários, agora expandidos até para dentro da universidade, os quais, sob a intenção declarada de promover a literatura e descobrir novos talentos, acabam por premiar o mediano – o que há de mais intolerável em literatura, segundo Horácio -, pois os mais diferentes sistemas de votação, quando não são farsas descaradas em favor de amigos, favorecem os títulos que mais aparecem nas listas, em detrimento daqueles títulos que, por ser de difícil assimilação ou de pouco consenso, e, portanto, com alguma chance de apresentar interesse, jamais obtêm as médias da premiação. Ou seja, um concurso, a não ser por azar, só premia o premiável, que é um outro nome para o medíocre.

3. A implantação definitiva da ciberliteratura, atualmente já escrita com ‘i’ e pronunciada do mesmo jeito, na qual os autores jovens, afetos a computadores e informática, supostamente deram de ombros às recusas de publicação das editoras tradicionais ou às críticas caretas dos velhos críticos e se lançaram de cabeça na internet, sendo lidos pelos seus amigos, pela sua comunidade, e até pela parcela dos velhos críticos desejosos de continuar eternamente jovens. Dentre estes, há duas tendências: a dos que acham que a ciberliteratura é uma nova forma de erudição, pois os ‘jovens internautas’ emulam os grandes autores da literatura brasileira e mundial, e a dos que pensam que a ‘explosão’ das novas linguagens produz um tal frenesi semiótico que nada se pode dizer desses autores, senão estar atônito a admirar a coragem com que montam o cavalo xucro das novas tecnologias.

4. A transferência dos reality shows da TV para os best-sellers das editoras mais aventureiras, que usam seus olheiros para descobrir ‘testemunhos’ de participantes de toda forma de vida secreta, marginal, imoral, cujos relatos despudoradamente crus e confessionais excitam a imaginação dos leitores fugazes da classe média, que tudo o que conhecem de excessivo, por experiência própria, é trabalho e trânsito. Nesta tendência, têm lugar destacado as confissões de prostitutas, de traficantes descolados em sociologia, e, acima de todos, as confissões sexuais de adolescentes perdidas num mundo cheio de confusão e ecstasy. Se o primeiro item desta lista promete que literatura também é festa, este evidencia que ela, potencialmente, é também esbórnia, bandalheira, mundo-cão – infelizmente, desta vez, sem a trilha sonora de Riz Ortolani.

5. A volta da velha noção de ‘geração’, a qual, depois de ter logrado um bem-sucedido hype na Vila Madalena com a invenção da saudosa ‘geração 90’, presta-se ainda a um tour de force para requentar o mesmo, seja trocando cada vez mais velozmente os seus algarismos (‘00’, ‘0.5’), seja postulando a geração ‘entre séculos’, ou até a geração ‘não-geração’. Tudo para assegurar que haja alguma movimentação literária fora da exigência de inovação inerente ao campo literário, ou para forjar um atalho que submeta a literatura à idade dos seus praticantes, uma vez que parece impossível fazê-lo por meio do nível da sua criação.

6. A multiplicação de livros com testemunhos tocantes em zonas de conflito do mundo globalizado, onde cachorrinhos, livrarias, pipas e outros objetos amigáveis reencontram um hálito de humanidade em situações brutais de guerras. Nesses relatos, os elementos tribais em conflito ganham toques pitorescos e culturais e os paradoxos e contradições dos interesses do capital internacional oferecem rica oportunidade para que os ocidentais céticos ou cínicos redescubram a riqueza e a esperança ‘pós-humanas’ escondidas no mundo primitivo.

7. O uso da literatura como repertório de narrativas edificantes, figuras comoventes e sentenças judiciosas para auxílio da filosofia em situações que demandem a adesão imediata do ouvinte não especializado, como no caso exemplar de programas de TV, onde filósofos sem preconceitos em relação à grande mídia se esforçam para ajudar o cidadão comum a encontrar a luz compreensiva da… cultura.

8. O uso da literatura como repertório de narrativas, figuras e sentenças de impacto para uso de nietzschianos e deleuzianos desbundados, que acham que o que realmente importa, mais do que os estudos de Filosofia e Literatura, é a Vida, ela mesma, cuja logogenia multívoca, pulsando nos devires, é inapreensível por meras disciplinas acadêmicas. Contra o estudo árido e estéril, a Vida latente na literatura da rua, fonte privilegiada de hibridismos culturais, pode prover a filosofia da sensualidade e fluidez do papo-cabeça.

9. No âmbito da crítica universitária, a tendência mais notável, que entra em cena pisando firme sobre a antes obrigatória modéstia afetada, é a autopromoção, que faz de cada pesquisador um microempresário, com um vibrante e crescente repertório de truques: a ‘autocitação’; os quotation-buddies; a disposição de ‘formar quadros’, em vez de simplesmente dar aulas; a implantação de ‘linhas de pesquisa’, em vez do mero estudo da matéria, e, de modo genérico, a inflação do currículo, ou, para os íntimos, a turbinagem do Lattes -, por exemplo, com a organização de livros com artigos de amigos, que ninguém leu, nem quer ler, nem vale a pena ler, sem nenhuma relação entre si a não ser a irrelevância hiperprodutiva. Variante do item é a publicação de livros de homenagens a professores, os quais, mais ou menos constrangidos pelas exéquias precoces, são obrigados a se transferir para o limbo olímpico. Mais constrangidos ficariam se adivinhassem que a motivação derradeira das ‘homenagens’ é o esforço de obter publicações do grupo 1 da Capes, e, por conseguinte, arrancar boas notas para seu programa de pós, o que não deixa de dar certa nota cívica ao oportunismo.

10. Ainda no âmbito da crítica universitária, o dernier cri é dado pela autonomização de um campo de pensamento sobre a literatura que pode se dispensar da literatura, isto é, um campo que se afirma como teoria pura, independente da literatura, assim como da filosofia. Com balizas atribuídas a autores como Benjamin, Adorno, Derrida, Lacan, Lévinas, Habermas, Jameson, Agamben, etc. , o novo campo garante que não há privilégio maior para a literatura do que fornecer modelos de reflexão para a ‘teoria’.

Em conjunto, todos os dez itens, em maior ou menor grau, com mais ou menos euforia, apontam para um mesmo ar do tempo em que se consolida um enorme desprestígio da literatura como campo de pensamento e cultivo, de modo que, para reanimá-la de seu túmulo, é preciso sacudi-la com festas, cortejá-la com prêmios, atualizá-la com computadores, torná-la sexualmente atraente e visualmente apelativa, descobri-la índice de partido jovem, levantá-la como bandeira da paz e amor em meio à guerra, vibrá-la sentenciosa e edificante, eletrizá-la de vitalismo, inflá-la com índices das agências de fomento, e, por fim, embora o desprestígio não dê sinal de ter um fim, ostentá-la como exemplo de repertório empírico à disposição de uma metalinguagem que lhe é vastamente superior. Tudo somado, fica bem claro que literatura, hoje, vive aquilo que os americanos chamam de ‘downhill’, e nós, em tradução grosseira, de descida da rampa. Caso o diagnóstico pareça demasiado duro a espíritos sensíveis e esperançosos, o desprestígio sempre poderá ser traduzido por superprestígio, à maneira dialética da bossa nacional.

Alcir Pécora é professor livre-docente de Teoria e Crítica Literária e diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp’

 

Elias Thomé Saliba

Usos e abusos dos textos bíblicos

‘Em 1813, Thomas Jefferson, utilizando-se de várias línguas, antigas e modernas, concluiu sua detalhada leitura da Bíblia. Valendo-se do método da ‘cola e tesoura’, selecionou e anotou todos os aforismos morais e parábolas de Jesus, excluindo toda menção a inferno, condenação eterna, igreja institucionalizada e milagres – e concluiu: ‘O que resta é o mais sublime e benevolente código de ética já oferecido ao homem.’

Esta famosa operação, conhecida como a ‘Bíblia de Jefferson’, só foi possível no mundo moderno, que possibilitou, com o advento da palavra impressa, uma leitura pessoal e literal das escrituras e a criação de uma espécie de ‘cânone dentro do cânone’ – um guia moral dentro do extenso labirinto da vida. Mas a Bíblia de Jefferson representou apenas um entre os muitos exemplos de ruptura com uma tradição milenar, pois a Escritura nunca foi realmente um texto, mas uma atividade, um ritual, um processo espiritual que introduzia milhares de pessoas à transcendência. Este é o principal argumento de Karen Armstrong, na difícil tarefa de contar não a história de um livro, mas desta autêntica e superlativa biblioteca que é a Bíblia.

Em capítulos detalhados e rigorosamente cronológicos, em A Bíblia – Uma Biografia, Karen Armstrong reconta toda a intrincada história da produção das centenas de narrativas escritas em aramaico, hebraico e grego, entre 800 a.C. e 100 d.C. Desde os tempos mais primitivos, a Bíblia esteve longe de possuir uma mensagem única. Vários editores fixaram os cânones dos testamentos, tanto judaicos quanto cristãos, incluíram visões concorrentes, aplainaram arestas e puseram-nas, lado a lado, sem nenhum comentário. Se alguém se dispusesse a fazer notas de rodapé, que rastreassem a origem primitiva das suas várias partes, as notas iriam fatalmente se sobrepor ao texto. Seria uma tarefa infinita, impossível para pobres mortais. Armstrong obviamente não chega a isto, mas constrói oito capítulos de tal forma minuciosos que exigem do leitor um conhecimento razoável dos próprios textos bíblicos.

A impressão da Bíblia de Gutenberg em 1455 não foi apenas uma revolução na história da cultura, mas uma mudança radical na história do livro mais lido no mundo. Ela marcou o início de incontáveis usos (e abusos) dos textos bíblicos, inaugurando o moderno e estéril hábito de arremessar textos para cá e para lá para comprovar argumentos, justificar ações ou subsidiar políticas. Das teimosias de Lutero aos arrebatamentos políticos dos fundamentalistas, Armstrong analisa vários episódios de chocantes distorções dos evangelhos. Parece que quanto mais as pessoas eram estimuladas a fazer da Bíblia o foco da sua espiritualidade, mais difícil se tornava encontrar uma mensagem essencial. Um único excerto poderia ser interpretado para servir a interesses diametralmente opostos. Ao mesmo tempo que afro-americanos recorriam à Bíblia para desenvolver sua teologia da libertação, a Ku Klux Klan a utilizava para justificar o linchamento dos negros. Inspirando-se em Santo Agostinho, Martin Buber e Franz Rosenzweig, Armstrong só vislumbra saídas numa exegese bíblica baseada na caridade e na benevolência: ‘Judeus, cristãos e muçulmanos – escreve – têm o dever de estabelecer uma contranarrativa que enfatize as características benignas de suas tradições culturais.’ Neste caso específico, qualquer interpretação da Bíblia que espalhasse ódio ou denegrisse outros sábios seria ilegítima. Ingenuidade? Talvez, mas, uma ingenuidade claramente fundamentada numa desapaixonada e cuidadosa leitura da história.

Armstrong adota uma abordagem francamente histórica, mais voltada para a difícil tarefa de reconstituir as formas de leitura e de recepção dos textos sagrados do que deslindá-los na sua extensa trajetória até o cânone. Escreve não propriamente a história de um livro, mas dos seus milhares de leitores e leituras possíveis. Abordagem feliz, já que todas as culturas antigas que produziram as Escrituras, do longo caminho que vai da Torá judaica à Vulgata de São Jerônimo, eram predominantemente orais – nas quais as pessoas se acostumaram a andar com as suas pequenas antologias de frases bíblicas na cabeça. Armstrong demonstra ainda como as escrituras judaicas e o Novo Testamento começaram ambos como proclamações orais – e mesmo depois que foram consolidados em escritos, restava muitas vezes uma forte tendência à palavra falada.

Armstrong nos dá também um fascinante capítulo sobre o Midrash – um conjunto de investigações eruditas sobre os possíveis significados dos textos sagrados. As centenas de ‘livros’, produzidos em tradições orais díspares e desentranhados de uma miríade de seitas – não raro, muito distantes no tempo – só se tornaram ‘escrituras’ quando lidos num contexto de rituais que os excluíam da vida cotidiana e dos modos seculares de pensamento. Noutros termos: todos os livros que compõem a Bíblia tornaram-se textos sagrados não a partir de quem os produziu, e sim, a partir das diversas formas nos quais foram lidos e recebidos. Num mundo como o nosso, da era digital, no qual nos acostumamos a encontrar a verdade ao clique de um mouse – ou a obter respostas imediatas, cheias de frases de efeito, para questões complexas – é quase impossível compreender a intensidade apaixonada com a qual a Bíblia era lida e replicar a experiência emocional da sua espiritualidade.

De qualquer forma, a noção de um texto duplo – alternando entre a palavra escrita e a glosa pessoal do leitor – fez da Bíblia talvez o melhor paradigma de uma daquelas definições de ‘clássicos’ formuladas por Ítalo Calvino: ‘Um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.’ Um livro que continha (e contém) uma multiplicidade de sentidos, exemplos tão heróicos quanto erráticos, narrativas belas e confusas – e centenas de mistérios irresolúveis cuja busca talvez fosse, para muitos autores, o objetivo de nossa viagem infinita e inacabada vida afora: ‘Lemos para fazer perguntas’, escreveu Franz Kafka certa vez para um amigo. Já para aqueles inconformados com o insolúvel mistério do mundo – que só se sentem confortáveis porque ainda esperam encontrar aquele pote de ouro no fim do arco-íris -, o livro de Armstrong não basta. Neste caso, resta recorrer ao método da ‘cola e tesoura’ e, à maneira de Jefferson, fazer a sua própria Bíblia particular.

Elias Thomé Saliba é historiador, professor de História das Idéias na USP e autor, entre outros, de As Utopias Românticas’

 

Antonio Gonçalves Filho

Camus, espelho de Sartre

‘Quanto mais se lê Sartre, tanto mais se lê Camus nas entrelinhas. E vice-versa. Pode parecer uma heresia para os leitores de ambos, mas não para um dos maiores especialistas na obra do primeiro, o professor norte-americano Ronald Aronson, de quem a Editora Nova Fronteira lança o oportuno Camus e Sartre – O Fim de Uma Amizade no Pós-Guerra, justamente no mês em que se comemora o cinqüentenário do Nobel de Literatura de Camus – recebido com orgulho por ele em 1957 e desprezado por Sartre, que recusaria o mesmo prêmio em 1964 por considerá-lo ‘um instrumento da guerra fria’, não sem antes declarar a respeito da consagração sueca do ex-amigo: ‘Il ne l?a pas volé’ (Ele não o roubou).

Essa não foi só uma frase ambígua, que tanto pode traduzir um reconhecimento positivo como uma observação irônica (Aronson fica com a primeira opção). Os dois brigaram feio em 1952. Nunca mais se falaram. Até hoje se achava que a briga tinha apenas motivações políticas, fortes o bastante para colocar os dois em campos ideológicos opostos. A razão política seria a guerra fria. A exemplo da ‘guerra ao terrorismo’ declarada por Bush – ‘quem não está do nosso lado está contra nós’ -, foi uma guerra do ‘bem’ contra o ‘mal’. Para Camus, Sartre pertencia ao ‘eixo do mal’, por defender regimes totalitários como os da União Soviética e a violência política. Para Sartre, Camus não passaria de um anticomunista defensor do regime colonialista francês na Argélia. Parece simples, mas os motivos da briga, concluiu Aronson, após seis anos de pesquisa, podem ter sido muito mais pueris que um conflito ideológico ou uma discussão de caráter filosófico.

Camus era bonitão, fazia sucesso com as mulheres e tinha uma namorada belíssima, a atriz Maria Casarès. Sartre parecia um sapo míope e, além de tudo, reprimia seus sentimentos. Tinha de sustentar um bando de amantes que dividia com a mulher Simone de Beauvoir e ainda amargar – segundo declarou ela à biógrafa Deidre Bair – um amor não correspondido pelo amigo Camus. Sartre podia ser um gênio filosófico, mas Camus era um gênio literário. Qualquer leitor, afirma Aronson, pode sentir o gosto sensual de areia e sol mesmo nos escritos mais pessimistas de Camus, mas dificilmente vai experimentar algo além da aridez do deserto nos textos em que Sartre fala da alienação do homem moderno. Aronson toma nitidamente o partido de Sartre, apesar de tudo.

Como a esquerda radical que fechou com Sartre na época da guerra fria, Aronson considera que ele estava certo ao condenar os métodos de tortura usados pelas tropas francesas de ocupação durante a guerra da Argélia, então uma colônia francesa, e justificar o terrorismo árabe contra o colonizador. Camus, nascido em Oran, na Argélia, critica a violência de ambos – do colonizador e do colonizado. Os moderados de esquerda fecharam com Camus. Viam os radicais como viciados em violência. Esses não tinham outra palavra para definir os moderados: vendidos. Com Sartre fazendo tudo para apoiar a luta pela independência argelina e Camus defendendo que a Argélia devia continuar sob o controle francês, razões para desavenças não faltavam. Faltava, sim, segundo Aronson, a última faísca para botar fogo no anticomunismo de Camus, justamente Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito, que definiu a União Soviética como ‘autocracia autoritária com capitalismo de Estado’.

Koestler, que Camus conheceu no ano de sua viagem aos Estados Unidos, em 1946, exerceu enorme influência sobre ele. Sartre também, mas Camus jamais se considerou um existencialista de carteirinha. O livro de Aronson é uma ‘biografia’ desse relacionamento. E, a exemplo de Simone de Beauvoir, que ficou bastante perturbada com a amizade dos dois, Aronson está convencido de que a briga de Sartre e Camus foi também por amor. Com freqüência, nas grandes histórias de amor, os opostos se atraem e não foi diferente entre Sartre e Camus. Sartre era filho de burgueses. Camus, um pied-noir argelino introduzido na alta roda intelectual francesa graças a Sartre.

Aronson, apesar das diferenças de classe, não acredita que Camus tenha sido um oportunista, um alpinista social que se aproveitou do prestígio do amigo filósofo, ‘enamorado’ o bastante para escrever um artigo na Vogue americana (New Writing in France, 1945), no qual classificou Camus como a nova estrela da literatura francesa. Eles se conheceram em 1943, como membros da Resistência Francesa – Camus como editor do jornal clandestino Combat e Sartre como ativista político. Koestler viria a ser a pedra no caminho dos dois.

Tanto isso é verdade que, em 1946, Camus, que já conhecia Sartre havia três anos, estava empenhado em escrever uma peça (inédita) chamada L?Impromptu des Philosophes, na qual satiriza a figura do amigo Sartre, transformando-o no personagem Monsieur Néant (Senhor Nada). O tal senhor Nada passa a peça inteira carregando um livro grosso que ninguém jamais leu (alusão irônica a O Ser e o Nada, de Sartre). No entanto, a força de suas idéias é tamanha que ele seduz a família inteira do farmacêutico Vigne com sua doutrina filosófica, até ser recapturado pelo diretor do hospício do qual escapou. Camus jamais publicou o texto. Aronson sugeriu à filha de Camus, Catherine, que o encenasse, garantido tratar-se de uma comédia e tanto. Ele afirma ser uma das três pessoas do mundo que leram o manuscrito. A terceira, provavelmente, foi Sartre, que até 1952 leu todas as provas dos livros de Camus, até brigar com ele por causa de uma resenha negativa de O Homem Revoltado (L?Homme Révolté), assinada por Francis Jeanson na revista Les Temps Modernes, criada em 1945 e dirigida por Sartre como uma plataforma para defesa da filosofia existencialista e dos ideais socialistas.

Sartre não gostou do livro de Camus, um ensaio histórico sobre a revolta metafísica do homem, de Epicuro à Revolução Russa. Pediu voluntários para escrever uma resenha e Jeanson, julgado oito anos depois por seu apoio à luta dos nacionalistas argelinos, apresentou um longo texto que não ficou sem resposta do autor do livro. Camus escreveu uma carta ao jornal – hostil como a crítica – endereçada propositalmente ‘ao editor’, sem nomear o amigo de Sartre, o que caracteriza sua intenção de acusar o filósofo como o orquestrador de uma campanha de difamação. Sartre escreveu uma resposta ainda mais extensa e agressiva, de 30 páginas, cuidadosamente analisada por Aronson, colocando o ‘homem revoltado’ de Camus abaixo de zero.

Para Sartre, o que existia era o homem revolucionário, nada metafísico, que participava da história e lutava, mesmo sob o risco de cometer erros ou excessos. Camus, que pertenceu ao Partido Comunista de 1935 a 1937, sendo depois expulso, não teria o direito de escrever um livro para influenciar pessoas que lutam se não estava disposto a participar da luta, decretou Sartre. Antes ficar com as mãos sujas de sangue e a consciência limpa do que em cima do muro, como o ‘contra-revolucionário’ Camus, defendia o filósofo, para seu escândalo. O amigo que lhe abriu as portas de Paris agora o deixava trancado do lado de fora. Todos os intelectuais ligados a Sartre o ridicularizavam. Magoado e sentindo-se traído, Camus chamava-os de ?nouveaux-riches? e ?parvenus? do espírito revolucionário, assumindo contraditoriamente o maniqueísmo que denunciava em Sartre.

É exatamente essa síndrome especular que Aronson analisa com bastante competência em Camus e Sartre. Reconciliando os dois amigos no fim de seu livro, ele demonstra que as duas obras estão irremediavelmente ligadas, frutos das longas conversas e do idílio que tiveram antes do divórcio intelectual.’

 

SEQÜESTRO
Mariana Della Barba

Cineasta acompanha comitiva

‘O cineasta americano Oliver Stone está na Venezuela para acompanhar a libertação dos reféns das Farc. Stone, ganhador de três prêmios Oscar, está na região para filmar um documentário e não confirmou se filmaria o momento da libertação dos três seqüestrados pela guerrilha.

‘Estou fazendo um documentário sobre a América Latina e também sobre a América do Norte’, afirmou o cineasta em uma base aérea de Santo Domingo. Stone afirmou que vai participar da operação de resgate dos reféns, a qual qualificou como ‘um processo belo e magnífico’. ‘Tenho esperança que funcione. Sinto-me sinto orgulhoso de fazer parte disso’, afirmou.

Stone estava acompanhado do presidente venezuelano, Hugo Chávez, que fez uma brincadeira ao afirmar que o cineasta era o enviado do presidente dos EUA, George W. Bush. ‘Há americanos bons. Essa é a razão pela qual estou aqui. Para deixar isso claro’, afirmou Stone.’

 

RETROSPECTIVA
Ethevaldo Siqueira

O melhor e o pior das comunicações em 2007

‘Comecemos pelo lado positivo: 2007 foi um ano de expressiva inclusão digital para o Brasil. Quatro segmentos das comunicações e da tecnologia digital contribuíram de forma especial para esse resultado: telefonia móvel, banda larga, internet e computador popular.

O celular superou todas as expectativas, com uma expansão de quase 20% este ano. Com o desempenho, a rede brasileira deve quebrar a barreira dos 120 milhões de celulares em serviço – número que coloca o País em quinto lugar no mundo, atrás apenas de China, Estados Unidos, Índia e Rússia. Além disso, a telefonia móvel dá o salto tecnológico para a terceira geração (3G), após o leilão de freqüências que injetou quase R$ 6 bilhões no saco sem fundo do Tesouro Nacional.

A banda larga teve expansão notável em 2007 e fechará o ano com quase 8 milhões de acessos. Aliás, o Brasil praticamente dobrou o número de usuários de alta velocidade nos últimos 24 meses. O grande motor dessa expansão foram os novos projetos das concessionárias de telefonia – Embratel, Oi, Telefônica e Brasil Telecom – com suas ofertas de novas soluções do tipo triple play, ou seja, em pacotes de telefonia, banda larga e TV por assinatura. Com isso, a internet já alcança 40 milhões de usuários em todo o País.

Em todos os avanços registrados, não há nenhuma contribuição ou mérito do governo, pois o sucesso do celular, da banda larga e da internet tem sido resultado exclusivo do trabalho e dos investimentos das operadoras privadas. A única área beneficiada por ações positivas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi a do computador popular, em que a isenção de impostos estimulou fortemente a aquisição da primeira máquina.

A venda de computadores portáteis ( laptops) este ano deverá crescer 27% em relação a 2006 e, pela primeira vez, vai superar o total de computadores de mesa (desktops) comercializados. O preço dos portáteis caiu a menos da metade em apenas um ano.

FRUSTRAÇÃO

A TV digital nipo-brasileira estreou no dia 2 de dezembro apenas na Grande São Paulo. Não há muito que comemorar com a inauguração de um sistema ainda incompleto, sem decodificadores a preços acessíveis no mercado, sem o middleware Ginga, sem interatividade e sem mobilidade. Só as emissoras de TV fizeram sua parte, investindo em equipamentos e tecnologia. Mesmo assim, faltam programas e conteúdos em alta definição.

Inaugurar obra inacabada é puro açodamento populista. A TV aberta, por ser uma paixão nacional, mereceria mais seriedade. Lula parece não perceber que, nas condições atuais, sem projeto industrial e sem preços acessíveis, a TV digital continuará sendo, ainda por muitos anos, privilégio da classe AA – a elite que o presidente tanto critica, embora também dela faça parte.

Como contrapartida à escolha da tecnologia digital, vale relembrar, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, disse, no ano passado, haver negociado e conseguido do Japão uma grande indústria de semicondutores, a ser instalada no Brasil. De lá para cá, silêncio total. Onde está a indústria? O gato comeu.

A expectativa do ministro, de que o padrão nipo-brasileiro seria adotado por muitos países na América Latina, também não se concretizou. Até aqui, nenhum país aderiu. Nenhunzinho.

RETROCESSO

A pior das notícias deste ano é, sem dúvida, a decisão do presidente Lula de ressuscitar as estatais Telebrás e Eletronet. Na contramão da história, elas só aumentam o risco de ineficiência, empreguismo e corrupção no governo.

Compare, leitor, o desempenho da velha estatal com os resultados do setor privatizado. Ao longo de 25 anos, a Telebrás investiu cerca de R$ 40 bilhões, instalando o total de 24,5 milhões de acessos telefônicos, entre fixos e móveis. As operadoras privadas, em apenas nove anos, investiram quase quatro vezes mais, R$ 150 bilhões, e implantaram cinco vezes mais acessos (147 milhões).

A tentativa de escolha do rádio digital tem sido um fiasco. O ministro Hélio Costa insiste em apoiar uma tecnologia ainda cheia de problemas, o padrão Iboc, da norte-americana Ibiquity. E ainda propõe a associação de uma indústria brasileira com essa empresa, com recursos públicos.

SEM LEI

Do ponto de vista institucional, o maior problema das comunicações brasileiras continua sendo a legislação obsoleta. O Brasil precisa, com urgência, de uma lei geral moderna, capaz de harmonizar os diversos segmentos das comunicações. A sobrevivência da velha estrutura legal da radiodifusão, ainda baseada num capítulo do velho Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, interessa apenas ao governo e aos beneficiários do chamado coronelismo eletrônico.

Em algumas circunstâncias, contudo, o interesse político não respeita nem a lei obsoleta, como no caso do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, que obteve a terceira concessão de uma emissora de TV aberta no Estado de São Paulo. Conforme determina o decreto-lei 236, de 1967, em vigor, nenhum grupo ou pessoa física pode ter mais do que duas concessões no mesmo Estado.Uma prova de que a fé não apenas remove montanhas, mas até barreiras legais.’

 

CARLITOS
Luiz Carlos Merten

O legado de Chaplin, 30 anos depois

‘Foi no Natal de 1977 – há exatamente 30 anos, morreu Charles Chaplin. Estava velhinho e 11 anos antes interrompera o hiato de mais de uma década para dirigir A Condessa de Hong Kong, com Marlon Brando e Sophia Loren. Nos anos 60, tudo estava mudando, o cinema como os comportamentos. A pílula, a minissaia, os Beatles, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha. Poucos críticos prestaram atenção ao opus final de Chaplin. A maioria da crítica tratou-o como um gagá, sem prestar a mínima atenção ao que ele queria dizer com aquela história, aparentemente obsoleta, de uma condessa russa que irrompe na vida do embaixador norte-americano, durante um cruzeiro.

Chaplin, diziam os críticos, já era, mas Glauber Rocha – um dos arautos daquela modernidade – veria mais tarde, naquela morte num dia tão especial, um desafio simbólico para a civilização contemporânea. ‘Sua morte corresponde à morte do humanismo no século 20’, ele diria ao repórter que foi repercutir com ele o desaparecimento do artista. Talvez fosse um pouco de exagero, mas Glauber estava em Salvador, filmando A Idade da Terra, e o seu filme também trata, se não da morte, pelo menos da crise do humanismo tradicional. Pode ser uma explicação para o seu tom apocalíptico.

Três décadas sem Chaplin fornecem mais do que tempo para a avaliação definitiva de um ator e diretor que sintetiza, melhor do que ninguém, esta arte que nasceu no fim do século 19 e floresceu nas feiras populares, no começo do século seguinte. Filho de uma artista de talento, Chaplin veio do music-hall. Aos 17 anos, o menino que dançava por pão nas ruas de Londres já integrava a trupe de Fred Karno, com quem fez duas turnês aos EUA, em 1910 e 12. Em 1914, estabelecido na ?América?, filmou, para o pioneiro Mack Sennett, Carlitos Repórter. É o primeiro Chaplin e logo ele participa de uma sucessão de curtas – cerca de 40 -, quase todos interpretados por Mabel Normand e dirigidos por Henry Lehrmann.

Chaplin não pára de experimentar, tentando criar um personagem que se adapte ao seu estilo. Finalmente, em 1915, com The Tramp (O Vagabundo) surge o modelo acabado de Carlitos, o herói que, pelos 20 anos seguintes, dará forma ao gênio do artista. Bigode, chapéu-coco, bengala e sapatos enormes (quase sempre furados). Carlitos foi o primeiro mito autenticamente cinematográfico. Virou imortal. Sobre ele, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade que representa, na sua miséria e precariedade, o homem que tenta manter o equilíbrio face às vicissitudes da vida. Durante dez anos, Chaplin faz o elogio do homem comum e não teme o melodrama (O Garoto) nem a denúncia social e política (Ombro, Armas). Sua arte é crítica. Ele toma o partido dos oprimidos. O ano de 1925 marca seu apogeu como artista, com Em Busca do Ouro. Começa a fase das obras-primas – O Circo, Luzes da Cidade, Tempos Modernos, no qual ele se despede de Carlitos.

Começa aí outra fase, mas Chaplin torna-se bissexto. O Grande Ditador é de 1940 e os demais filmes vão sendo feitos com cinco, às vezes mais anos, de diferença – Monsieur Verdoux, Luzes da Ribalta, Um Rei em Nova York e o último, A Condessa. O artista que denunciou a automação dos tempos modernos e os crimes de massa do nazismo sofre incompreensão nos EUA. Seus casamentos (e divórcios) viram motivo de escândalo. No começo dos anos 50, ele se exila na Europa para fugir ao macarthismo. A própria crítica hesita em reconhecer o óbvio – Chaplin foi um dos artistas que fizeram avançar a linguagem. Casamento ou Luxo (A Woman of Paris), de 1923, é um primor de ousadia técnica, além de ética. Chaplin soube usar a linguagem acelerada do filme mudo como motor para a movimentação de seu personagem. Por isso mesmo, ele resistiu quanto pôde ao avanço do som. Quando se rendeu à palavra foi para fazer, no discurso final de O Grande Ditador, falando para a personagem de Paulette Goddard, a quem chamou de Hannah – como sua mãe -, uma extraordinária defesa do humanismo. O criador de Carlitos não é uma peça de museu. Como artista, ele se comunicou com o público de todas as idades (e faixas sociais). Seu humor é, e será sempre, antídoto contra o cinismo que faz da crença no humano um saudosismo superado nestes tempos modernos que ele previu, com tanta lucidez.

Nas lojas

DVDs: Os filmes do diretor e ator Charles Chaplin estão divididos em três caixas lançadas em 2003 pela Warner Home Video. O primeiro volume tem Luzes da Ribalta (1952), O Grande Ditador (1940), Tempos Modernos (1936) e Em Busca do Ouro (1925). No segundo volume estão O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931) e Monsieur Verdoux (1947), além de Charlie: A Vida e a Arte de Charles Chaplin, documentário de Richard Schickel (2003). E, no terceiro volume, Garoto (1921), Um Rei em Nova York (1957), Casamento ou Luxo (1923) e Festival Carlitos, com curtas assinados por Chaplin.

LIVRO: Em 2005, a José Olympio lançou edição da autobiografia de Chaplin, Minha Vida (574 págs., R$ 58).’

 

FOTOGRAFIA
O Estado de S. Paulo

O registro de 150 anos de história em 100 dias

‘100 Days in Photographs

Nick Yapp

National Geographic

320 págs., R$ 88,20

Mais do que um livro de fotografias, 100 Days in Photographs é uma irresistível viagem visual pela história contemporânea – uma odisséia que é pessoal e universal, ao mesmo tempo que imediata e atemporal. Foram escolhidos 100 dias que representam marcos históricos nos últimos 150 anos. Para apoiar os registros fotográficos, alguns dos quais raros e inéditos, o historiador Nick Yapp escreveu textos e notas sobre desastres naturais, grandes descobertas e eventos políticos, entre os quais a construção da Torre Eiffel, o assassinato do presidente norte-americano Lincoln, o crash de 1919, a descoberta do DNA, o desastre nuclear de Chernobyl, o 11 de setembro de 2001 e o aquecimento global.’

 

Os 60 anos da agência fotográfica Magnum

‘Magnum Magnum

Brigitte Lardinois

Thames & Hudson

554 págs., R$ 467,40

Esta publicação comemora os 60 anos da visão e da imaginação dos fotógrafos da agência Magnum, criada na primeira metade do século passado. Ela apresenta mais de 400 fotografias dos grandes mestres da fotografia no século 20, entre eles Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, Eve Arnold, Marc Riboud e Werner Bischof. E registra os mestres contemporâneos, como Martin Parr, Susan Meiselas, Alec Soth e Donovan Wylie. Cada fotógrafo é representado por seis obras emblemáticas e apresentado por um texto crítico, além de biografias. Magnum Magnum é um livro essencial para qualquer pessoa interessada em fotografia ou pelo mundo ilustrado pela arte fotográfica.’

 

Fotografias registram a biografia do colombiano

‘The Memory of Pablo Escobar

James Mollison

Chris Boot

360 págs., R$ 147

A extraordinária história de Pablo Escobar, um dos mais ricos e violentos gângsteres do Hemisfério Sul. A sua juventude, as suas jogadas para influir no poder político, a sua dominação do comércio de cocaína, a sua campanha contra o Estado colombiano, durante a qual morreram milhares de pessoas, a sua prisão cheia de regalias, a sua fuga e captura são registradas pelo trabalho do fotógrafo queniano James Mollinson, colaborador do The Guardian e Le Monde. O jornalista inglês Rainbow Nelson apóia o trabalho de pesquisa e de texto. O livro contém entrevistas iluminadoras com membros da família, outros gângsteres, policiais, juízes e sobreviventes das matanças de Pablo Escobar.’

 

REVISTA
Antonio Gonçalves Filho

Colors publica edição dedicada à cegueira

‘Um depoimento de Sabriye Tenberken, criadora da primeira escola para cegos do Tibete, abre a edição número 72 da revista Colors (120 págs., R$ 29,90), publicação trimestral da Fabrica, o laboratório de criatividade mantido pela Benetton. Nela, a co-fundadora da organização Braile Sem Fronteiras define o ato de ver como uma maneira de ‘manter distância das coisas’. Os sentidos que lhe restam obrigam Sabriye a se aproximar tanto de obstáculos que, de perto, esses se tornam bem pequenos , quase desprezíveis. É também o que diz a maioria dos cegos entrevistados em Without Colors, o número da revista totalmente dedicado a deficientes visuais.

A revista, com uma versão em áudio acoplada à capa, traz outra novidade: ela, que já tem três edições bilíngües, passa a ser feita também em chinês graças a um acordo com editores da China International Press. Além disso, as ‘páginas amarelas’ de Colors reúnem preciosas informações sobre avanços científicos, métodos pioneiros e as últimas descobertas da medicina para o tratamento de deficiências visuais.

A originalidade da publicação trimestral da Benetton começa na capa, branca, escrita em Braile e continua com a seleção de entrevistados. Entre eles estão uma família africana de pescadores, um jogador brasileiro de futebol, um rapper texano, uma campeã de natação e até um executivo que escapou do 11 de setembro descendo 78 andares de escada do World Trade Center. Todos eles cegos, fotografados por outros deficientes visuais da escola de fotografia de Tony Defell.

Um dos depoimentos mais emocionantes é o do brasileiro Mizael Conrado de Oliveira, estrela do futebol para cegos. Ele relata seu primeiro dia na barulhenta escola em que ouviu de uma freira que toda aquela agitação se devia ao fato de estar em curso um jogo para lá de ruidoso. Descobriu, então, que a bola traz guizos dentro dela para alertar os jogadores e que os atacantes são guiados por um membro da equipe que se posiciona atrás do gol. Mizael aprendeu ainda que falar é crucial durante o jogo. Sempre que parte para o ataque, tem de dizer ‘vou’ para alertar os jogadores da defesa. Não fazer isso é uma falta séria e encerra uma lição moral que deveria ser aprendida por políticos, até mesmo porque o jogador não consegue ver o gol que marca. Só fica sabendo que mudou o placar pela reação da platéia.

Outro depoimento comovente é o do sul-africano Jackson Baloyi, de 53 anos, que nasceu cego de um olho e perdeu o outro em 1980, quando sofreu um acidente de ônibus. Foi o único sobrevivente. Sem poder ver nem ouvir, pensou obsessivamente em suicídio nos seis meses de convalescença. Hoje, ouvindo pouco, admite que temeu ser abandonado pela mulher, os filhos e os amigos da aldeia ou, pior, ser tratado como um parasita numa comunidade pobre que Baloiy, surpreendentemente, ajudou a levantar. Há cinco anos ele e sua mulher construíram um pequeno forno de barro e de lá saiu uma padaria que hoje dá emprego a outros deficientes visuais.

Exemplos de vitórias contra a cegueira são inúmeros na edição especial de Colors, entre elas a de um psiquiatra que adora ir ao cinema ao lado de amigos cinéfilos para ouvir deles suas versões dos filmes – um pouco à maneira de Jorge Luis Borges, que tinha o mesmo costume. Outra incrível história é a do casal alemão formado pelo carpinteiro Michael e pela fisioterapeuta Evelyn, ambos com 58 anos. Eles se conheceram aos 10, casaram e tiveram filhos. Michael, bem-humorado, diz que a parte mais difícil do casamento é acompanhar o bebê quando este começa a engatinhar para desespero dos pais, que tentam adivinhar a direção que tomou a criança. Mas há uma vantagem quando eles já estão um pouco mais crescidos: os pequenos sempre perdem no jogo da cabra cega, conta. ‘Nossos outros sentidos são bem mais apurados’, diz Michael. Não há razão para duvidar.’

 

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