Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado-anunciante

Há duas semanas, neste mesmo espaço (ver ‘O ecossistema da propaganda oficial‘), escrevi sobre o aumento das verbas públicas no mercado publicitário e chamei a atenção para os riscos que isso traz para a democracia. Mais agressivo a cada dia, o Estado, refeito em anunciante, assedia os veículos de imprensa com dinheiros poderosos. Para jornais e emissoras menores, mais vulneráveis, aparece como poder de cooptação, num convite sutil para que eles atenuem suas linhas editoriais e, assim, não comprometam seu faturamento. Para outros, é puro poder de intimidação. A hipertrofia do Estado-anunciante tende a criar no país um ambiente de dependência de órgãos de imprensa em relação ao poder público – e onde a dependência se instala a liberdade se apequena.


Volto ao tema, uma vez mais, para trazer números que comprovam essa realidade. Dizer que o Estado, no Brasil, atua como um grande anunciante não é força de expressão. Vamos aos números. Como os dados do mercado publicitário de 2008 ainda não estão publicados, podemo-nos apoiar nas cifras de 2007, consolidadas no relatório anual Mídia Dados, um extenso volume de 662 páginas editado pelo Grupo de Mídia São Paulo.


Fonte segura


Comecemos pelo panorama geral. Segundo a publicação, o investimento publicitário no Brasil mais que dobrou de 2001 a 2007: passou de R$ 10,7 bilhões a R$ 21,1 bilhões. Desse total, em 2007, a televisão aberta reteve a maior fatia: 59,2%. A TV continua sendo a arena por excelência do espaço público nacional. É por ela que o Brasil se conhece e se reconhece – o que vale, de modo destacado, para as campanhas do poder público: é também na TV que ele concentra seu apetite pela simpatia da massa.


Na TV aberta, o setor dos chamados ‘serviços públicos e sociais’, em 2006, ocupou o quinto lugar entre os setores que mais anunciaram. Enquanto o setor varejista, na liderança do ranking, respondeu por R$ 6,9 bilhões em anúncios, os ‘serviços públicos e sociais’, em que se encontram as propagandas de governos, totalizaram R$ 1,44 bilhão.


(Lembremos que não entram na categoria dos ‘serviços públicos e sociais’ os bancos estatais – enquadrados no setor do mercado financeiro e seguros, que é o segundo colocado no ranking – e empresas públicas como a Petrobras, pertencente ao setor petroleiro, o 16º colocado.)


Olhemos agora o ranking específico do setor público, não apenas na TV aberta, mas em todos os meios. O governo do estado de São Paulo foi o oitavo maior anunciante da área pública, com R$ 59,3 milhões. Logo abaixo, em nono, vem a Prefeitura paulistana, com outros R$ 56,3 milhões. À frente dos dois, no sexto posto, figura o governo federal, com R$ 83,6 milhões.


Um detalhe: esses R$ 83,6 milhões são apenas uma pequena parcela do que a administração federal veiculou em propaganda. Na mesma lista figuram à parte os ministérios da Saúde (R$ 129,6 milhões) e da Educação (R$ 122,7 milhões), a Marinha (R$ 49,9 milhões), o ministério da Defesa (R$ 35,5 milhões), o Exército (R$ 17,4 milhões) e o ministério dos Esportes (R$ 10,7 milhões), sem contar outros, menores, que nem sequer constam do ranking. Somados, apenas os que fazem parte do ranking chegam a R$ 449,4 milhões.


(Aqui, cabe um esclarecimento entre parênteses. Os números do Mídia Dados não devem ser lidos como um retrato exato da contabilidade do dinheiro aplicado pelo governo. Na metodologia da publicação, explicada na página 95, a base de cálculos são os preços de tabela de cada veículo. Logo, não se levam em conta as cortesias e os descontos. Como alguns dos anúncios do poder público são veiculados de graça, em razão de acordos pelos quais as emissoras cedem inserções em cortesia, os valores projetados pelo Mídia Dados tendem a ser superiores à verba efetivamente desembolsada pelo Estado. Mesmo assim, suas cifras são fonte segura para efeitos de comparação, pois refletem fielmente o preço de mercado dos espaços utilizados pelas campanhas publicitárias, sejam elas públicas ou privadas. Feito o esclarecimento, prossigamos.)


Quem controla?


Na verdade, o poder de fogo do governo federal no mercado publicitário é bem maior do que esses R$ 449,4 milhões. Isso porque aí não estão incluídas as estatais, cujas direções de comunicação operam em estreita sintonia com o Poder Executivo. Ora, as estatais distribuem uma montanha de dinheiro. Para que se tenha uma ideia, sempre segundo o Mídia Dados, a Caixa Econômica Federal, a Petrobras e o Banco do Brasil (os três maiores anunciantes do setor público), somados, veicularam, em 2007, campanhas que custariam R$ 1,35 bilhão. Agora, juntemos a isso os R$ 449,4 milhões da administração direta e teremos a fortuna de R$ 1,8 bilhão (sem contar Furnas, com R$ 16,7 milhões, o BNDES, com R$ 37 milhões, e outras instituições vinculadas à administração federal).


Um bilhão e oitocentos milhões de reais, numa conta arredondada para baixo. Só isso equivale a nada menos que 8,5% do bolo total do mercado publicitário brasileiro! Em 2007, a máquina de propaganda direta ou indiretamente controlada pelo governo federal só perdeu para as Casas Bahia, o maior anunciante privado do Brasil, cujas campanhas alcançaram R$ 2,76 bilhões, e ultrapassou com folga o segundo colocado privado, a Unilever Brasil, que marcou R$ 1,42 bilhão. É muita verba pública.


E note-se que não estamos pondo nessa conta os governos estaduais e municipais, com suas empresas públicas, que repetem a mesma fórmula e pressionam do mesmo modo os veículos de imprensa. É dinheiro que não acaba mais.


Está surgindo, entre nós, o Leviatã publicitário: o Estado-anunciante. O Direito Econômico e o Direito Administrativo já falaram bastante sobre o Estado-regulador, o Estado-interventor, o Estado-provedor etc. E quanto ao Estado-anunciante, que usa dinheiro público para promover a imagem de quem governa? Quem vai estudá-lo? Quem vai limitá-lo?

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Jornalista, professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade