Em seu primeiro discurso após a reeleição em outubro, a presidenta Dilma Rousseff, demonstrando demasiado idealismo, proclamou que não acreditava que o país estava dividido. Mas a campanha de 2014 foi a mais amarga desde que o país voltou às eleições diretas em 1989. Partidários de Aécio Neves demonstraram uma indignação legítima, apesar de seletiva, com os escândalos de corrupção que marcaram os doze anos do Partido dos Trabalhadores no poder. Uma nova leva de comentaristas políticos direitistas apropriou-se desse ultraje, produzindo uma avalanche de diatribes contra o que, na sua percepção, seriam os males de uma máquina governamental inflada e agentes cínicos da esquerda que buscam minar valores tradicionais – um discurso similar ao do Tea Party americano. Essa Nova Direita Brasileira (NDB) exibe todos os traços de um “estilo paranoico”, inicialmente identificado pelo historiador americano Richard Hofstadter em seu celebrado ensaio “The Paranoid Style in American Politics”, publicado na Harper’s Magazine em 1964. Em seu ensaio, Hofstadter critica a mentalidade conspiratória e o discurso paranoico de membros da direita americana, como o senador Joseph McCarthy, que promoveu uma verdadeira caça às bruxas contra supostos agentes comunistas infiltrados nos Estados Unidos. No nosso vizinho ao norte, esse estilo sobrevive através de figuras caricatas como Glenn Beck, enquanto no Brasil ele vem ganhando cada vez mais espaço com uma nova leva de comentaristas da NDB.
“O porta-voz paranoico vê o destino da conspiração em termos apocalípticos—ele negocia com o parto e a destruição de mundos inteiros, ordens políticas absolutas, sistema de valores em suas totalidades. Ele está sempre ativo nas barricadas da civilização.”
Os porta-vozes da NDB veem na menor iniciativa “esquerdista” uma ameaça letal contra o que eles entendem por sociedade ideal. Eles se veem em uma luta de vida ou morte para proteger a civilização ocidental (concebida limitadamente como sendo sustentada pelos pilares do liberalismo econômico e conservadorismo cultural) contra o espectro de uma esquerda maquinadora e autoritária.
Rodrigo Constantino, um blogueiro e colunista da Veja, é um dos líderes da NDB. Na manhã após a reeleição de Dilma, ele sugeriu no seu Facebook que as pessoas deveriam procurar uma cópia de A Revolta de Atlas, o romance de valor literário duvidoso da libertária Ayn Rand que pregava uma filosofia do egoísmo que costuma agradar àquele tipo de adolescente que procura alguém para legitimar o sentimento de que ele só está certo e que o resto do mundo conspira para oprimi-lo. Em seu blog, Rodrigo gosta de acusar aqueles que votaram em Dilma de serem ou ignorantes ou canalhas, ambas características que impedem um debate político minimamente civil. Truculento, Rodrigo é tido como “o trovão da razão” (epíteto cunhado pela Veja), corajosamente resistindo à hegemonia da esquerda em um Brasil que caminha rapidamente a um destino similar ao de Cuba. Um dos seus métodos favoritos é procurar os menores indícios de uma suposta transformação cultural do país em um Estado comunista autoritário – desde conferências universitárias sobre marxismo até o uso da cor vermelha no logotipo da Copa do Mundo de 2014. Além de escritor, Rodrigo é presidente do Instituto Liberal e membro fundador do Instituto Millenium, organizações que pregam uma visão extrema da política de mercado laissez faire e modeladas no Cato Institute, o think tank fundado por Charles Koch que, junto com o seu irmão David, agressivamente usa a sua fortuna para financiar candidatos da direita e influenciar a política americana.
Outros membros proeminentes da nova direita brasileira incluem Olavo de Carvalho, que se autoproclama o maior filósofo brasileiro em atuação, e Felipe Moura Brasil, que também tem um blog na Veja. Todos os três cultivaram com habilidade um grande número de seguidores na era digital. No momento, Olavo tem mais de 189 mil seguidores no Facebook, enquanto Rodrigo e Felipe têm, respectivamente, mais de 71 mil e 54 mil.
A secessão por parte dos estados do sul
À medida que cresciam em popularidade, os três líderes da NDB aperfeiçoaram estilos distintos para evitarem debater com seriedade argumentos contrários à suas ideologias. Rodrigo escreve com uma mordacidade adolescente, Felipe com uma ironia petulante, e Olavo com uma paixão inexplicável por profanidades homofóbicas, estilos não muito diferentes dos ativistas da direita americana, como a comentarista Ann Coulter, o falecido showman Andrew Breitbart, e o radialista Rush Limbaugh. Os brasileiros são bem versados em escritores conservadores americanos. Rodrigo, um ardente crítico de proteções à minorias, tem apreço pelos argumentos de Thomas Sowell; Felipe tem publicado vídeos traduzidos de comentaristas de sites como Breitbart.com que apontam para uma suposta hegemonia da esquerda na esfera cultural; e Olavo, que vê pouca diferença entre Barack Obama, Dilma e Fidel Castro, consome o “jornalismo” estridente de sites como WorldNetDaily e Townhall.com.
“O estilo paranoico não é restrito ao nosso país [os Estados Unidos] e aos nossos tempos [os anos 60]; ele é um fenômeno internacional”
Rodrigo, Felipe e Olavo “tropicalizaram” alguns dos tropos que definem o discurso conservador americano moderno. Eles acusam qualquer organização progressiva de ser um agente dissimulador trabalhando para o PT, assim como o Tea Party universalizou sua apreensão face à Acorn – Association of Community Organzations for Reform Now, para todas as formas de organização comunitária (em 2009, a Acorn foi alvo de uma controvérsia de proporções exageradas por causa de comportamento duvidoso por parte de alguns de seus funcionários do baixo escalão). Os brasileiros também traduziram o mito americano da welfare queen (usado por Ronald Regan e o Partido Republicano para desmantelar programas de previdência social) para o preguiçoso beneficiário do Bolsa Família que abusa do sistema.
Até a revista The Economist e o Banco Mundial elogiaram o Bolsa Família, programa que foi expandido e aprimorado pelo governo Lula. Mas Rodrigo e companhia interpretam-no como uma manobra política por parte do PT para comprar votos. A partir daí, eles constroem uma geografia política e social perversa que coloca “vagabundos” contra “contribuintes” (a mesma estratégia usada por republicanos nos Estados Unidos propagando o mito da welfare queen). Após a vitória de Dilma, Rodrigo publicou um mapa da eleição contrastando os estados em que a maioria votou no PT com os em que a maioria votou no PSDB, mostrando assim uma clara divisão Norte-Sul.
É inegável que o Nordeste abriga a maior concentração de famílias que se beneficiam de programas sociais como o Bolsa Família, mas isso é em grande parte explicado pelo fato de que o desenvolvimento da região foi durante quase toda a história moderna do país ignorada pelo governo federal em favor do Sul e do Sudeste, redutos das elites políticas e financeiras. É difícil, então, não sentir um pouco de ressentimento por parte de Rodrigo quando ele trouxe à tona, ainda que cautelosamente, a questão de uma possível secessão por parte dos estados do sul.
Referências de Hitler ao socialismo
“Claro, existem paranoicos intelectuais, pseudointelectuais e populares, assim como esses tipos existem em qualquer tendência política. Mas a literatura paranoica respeitável não só começa de certos compromissos morais que de fato podem ser justificados, mas também cuidadosamente e praticamente obsessivamente acumula ‘evidência.’ A diferença entre essa ‘evidência’ e aquela normalmente empregada por outros é que ela parece ser menos uma maneira de ingressar em controvérsias políticas normais e mais uma estratégia para evitar intrusões profanas do mundo político secular. O paranoico parece ter pouca expectativa de realmente convencer um mundo hostil, mas ele pode acumular evidência para proteger as suas convicções queridas contra ele.”
Na verdade, rigor intelectual nunca foi o forte de Rodrigo que, sem ter lido Capital no Século XXI, já atacou várias vezes a tese de Thomas Piketty. Também podemos tomar como exemplo o livro mais popular de Rodrigo, o Esquerda Caviar. Nele, Rodrigo ataca a presumível hipocrisia de figuras públicas como Chico Buarque e o falecido Oscar Niemeyer, que supostamente não praticam o que pregam, continuam jogando pelas regras do capitalismo, e adotam uma atitude esquerdista só porque ela traz benefícios financeiros e um certo status. Esquerda Caviar é parecido com uma outra obra polêmica americana, Liberal Fascism, de Jonah Goldberg. Ambos os autores proclamam que os livros apresentam teses rigorosas e bem pesquisadas mas que ainda assim conseguem oferecer uma leitura divertida. É bem possível que os argumentos de Jonah e Rodrigo tenham despertado gargalhadas entre especialistas, uma vez que ambos os livros têm pouco mérito intelectual. Historiadores renomados do fascismo, como Robert Paxton, rejeitaram a tese de Jonah como sendo nada mais que um hitjob politico. Como esperado, Rodrigo e o resto da NDB compra o argumento ahistórico de Jonah de que os nazistas seriam um partido de esquerda, argumento que ignora todo o contexto político da República de Weimar (John Holbo desmantela o método e a tese de Jonah em uma série de artigos no blog Crooked Timber).
Em Esquerda Caviar, Rodrigo segue o mesmo procedimento usado por Jonah, apresentando uma esquerda homogênea (ele consegue colocar no mesmo saco nomes como Obama, Noam Chomsky, Niemeyer e John Travolta!) composta de hipócritas que atacam o capitalismo enquanto beneficiam-se sem o mínimo escrúpulo de seus produtos, como se fosse impossível oferecer uma crítica legitima de um sistema sem antes desenredar-se de sua esfera—uma visão radical que explica os crescentes gritos de “Vai pra Cuba!” contra qualquer pessoa que aparenta não concordar com as demandas da NDR (e, por algum motivo, até contra aqueles com uma bandeira do movimento Independentista Catalão).
No entanto, como a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado argumenta, a acusação de hipocrisia só é sustentada através de uma caricatura desonesta do pensamento esquerdista. Afinal, para o próprio Marx o problema não era a capacidade da burguesia de produzir riqueza, e sim as estruturas que promoveram sua distribuição desigual através da exploração do proletariado. Além do mais, como se sua tese espúria não bastasse, Esquerda Caviar contém uma série de erros factuais, incluindo uma citação de uma placa do estado de Wisconsin que foi grotescamente manipulada para incluir um aviso aos criminosos de que “Mais de 170 mil residentes de Wisconsin têm permissão legal para carregar uma arma de mão” e que eles poderiam dirigir-se à Illinois, onde os cidadãos estão desarmados. Rodrigo usou a citação claramente falsa para argumentar a favor da liberalização das armas. Assim como Jonah, ele desenvolve seus argumentos usando citações polémicas, que parecem revelar uma verdade óbvia que durante anos foi obscurecida por maquinações acadêmicas. Mas citações podem ser tiradas do contexto de onde emergiram (ou, no caso, falsificadas) e não fazem nenhum sentido por si sós. Achar referências de Hitler ao socialismo é muito fácil, difícil é tentar entender como elas encaixavam na sua estratégia política em um momento onde a maior ameaça à ascensão nazista era justamente os partidos de esquerda.
Um encantamento com os militares
Na melhor das hipóteses, e isso é provavelmente o que ambos os autores esperavam, Jonah e Rodrigo conseguiram criar epítetos que podem ser usados para evitar uma discussão civil e mais profunda com críticos esquerdistas. Afinal, há algum propósito em discutir com fascistas e hipócritas?
“Como membro de uma avant-garde capaz de perceber a conspiração antes que ela se torne totalmente óbvia para um público ainda desligado, o paranoico é um líder militante. Ele não vê um conflito social como algo a ser resolvido através de mediações e acordos, na maneira do político em ação. Como o que está em jogo é sempre um conflito entre o bem absoluto e o mal absoluto, acordos não são o que é necessário, mas sim a determinação de lutar até o fim. Como o inimigo é visto como sendo absolutamente mau e impossível de apaziguar, ele tem que ser completamente eliminado—se não do mundo, pelo menos do teatro de operações a que o paranoico dirige sua atenção.”
Assim como Rodrigo, Olavo tornou-se mais popular com o lançamento de um livro: O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota, uma coleção de colunas antigas e mais acessíveis escritas por Olavo para uma gama de publicações. Felipe, que surgiu com a ideia de publicar a coleção, organizou as colunas em grandes temas, como “Juventude,” “Socialismo,” “Globalismo” e “Intelligentsia.”
À medida que o leitor faz seu caminho através de uma explicação abrangente do mundo contemporâneo (Felipe compara Olavo ao personagem de Jorge Luis Borges em O Aleph, que “vê tudo simultaneamente na realidade”) ele pode aprender como Lula conseguiu enganar governos e mídia de todo o mundo à pensar que ele era um socialista favorável ao mercado; como o esquerdismo é um distúrbio psicológico; como as fundações Rockefeller, Carnegie e Ford têm financiado pesquisas antiamericanas e anticapitalistas; e como Obama, que não é um presidente legitimo por ter fraudado a sua certidão de nascimento (!), faz parte de uma grande conspiração internacional esquerdista para minar a supremacia americana—teses no mínimo nas margens extremas de um diálogo político baseado em argumentos racionais, e não em teorias conspiratórias.
Felipe é um dos “alunos” de Olavo e tende a regurgitar em seu blog ou através de twittadas incisivas os ensinamentos de seu “professor”. Olavo não tem formação acadêmica e não é citado por outros filósofos, mas nada disso o impediu de criar a sua própria escola online, mais parecida com uma seita do que com um ambiente para diálogo crítico (seus seguidores são conhecidos como “olavettes”). Os alunos de Olavo diriam que a educação que ele oferece online é infinitamente melhor do que a oferecida pelas universidades brasileiras, supostamente infiltrada por marxistas. Seus alunos se veem como os guardiões de valores conservadores e da Verdade. Muitos também sofrem de um certo encantamento com os militares e têm pedido uma intervenção para tirar Dilma do poder – uma posição absurda que eles justificam reinterpretando o golpe de 1964 como uma manobra preventiva contra uma suposta ditadura comunista planejada por João Goulart.
Da socialdemocracia ao comunismo
Olavo mora na Virginia, nos Estados Unidos, mas a distância não diminuiu a sua popularidade. Na verdade, ela acrescentou à sua mística messiânica. O Mínimo tornou-se um best-seller através do marketing viral do Felipe, que retrata Olavo como um porta-voz da verdade exilado – um Victor Hugo da direita para o século 21. Olavo também tem o apoio de uma série de celebridades, incluindo Danilo Gentili, o comediante da direita, e Lobão, o roqueiro em decadência que tem sido ativo em protestos pedindo o impeachment de Dilma (manifestações que também têm atraído um pequeno contingente pedindo uma intervenção militar).
Olavo e Felipe são crentes veementes de que a única maneira de “purificar” a sociedade, cultura e política no Brasil seria abolindo o PT, removendo “comunistas” que controlam instituições como a USP (Olavo tem atacando Roberto Janine Ribeiro, e no passado chamou o atual ministro da Educação de “um besta quadrado, um incompetente, um coitado, um miserável […] que dá até dó”) e lutando para preservar a ideia abstrata de uma “alta cultura” que foi desmantelada por esquerdistas durante a segunda metade do século 20. Uma série de fatores indica que o discurso violento, paranoico e reacionário de Olavo tem ganhado mais e mais espaço. O senador Ronaldo Caiado (DEM), citou Olavo e suas denúncias sobre a suposta ameaça do Foro de São Paulo no Congresso Nacional, enquanto cartazes com a frase “Olavo tem razão” proliferaram nos protestos de 15 de março e 12 de abril e recentemente um olavette de 17 anos atacou de maneira histérica palestrantes durante um evento na PUC-GO, acusando membros da Conferência Nacional dos Bispos de serem uma “bancada de excomungados”.
“Este inimigo é claramente delineado: ele é um modelo perfeito de malícia, um tipo de super-homem amoral—sinistro, ubíquo, poderoso, cruel, sensual, amante do luxo. Ao contrário do resto de nós, o inimigo não está preso nas malhas do vasto mecanismo da história, ele próprio não é vitima do seu passado, de seus desejos, de suas limitações. Ele determina, de fato fabrica, o mecanismo da história, ou tenta desviar o curso normal da história para um mau caminho.”
Embora tenham as suas diferenças, Rodrigo, Olavo e Felipe compartilham uma mente conspiratória, acreditando que a esquerda brasileira criou um ambiente cultural hegemônico através de táticas Gramscianas.Uma das ilusões centrais desse pensamento paranoico é que uma organização supranacional, o Foro de São Paulo, trabalha para implantar o comunismo na América Latina de uma maneira subversiva. Olavo vem alertando há anos sobre a ameaça do Foro, que supostamente mina a nossa soberania nacional e busca desmantelar o processo democrático (um dos tópicos preferidos entre os olavettes é como as urnas eletrônicas foram usadas para fraudar eleições). Os paralelos entre o discurso anti-Foro de São Paulo atual o discurso antimaçônico do século XIX são inegáveis. O Foro existe, embora não seja uma rede criminosa internacional altamente eficiente do tipo que vemos em filmes do 007, mas sim, uma rede diversificada de organizações de esquerda que buscam alternativas ao neoliberalismo, com posições abrangendo desde a socialdemocracia até o comunismo. Enfim, uma espécie de antítese ao Fórum Econômico Mundial em Davos.
Um zelo missionário
Rodrigo, Olavo e Felipe veem a esfera cultural como o campo de batalha onde a guerra política será vencida, e todos os três parecem pensar que a esquerda está ganhando graças aos batalhões de “feminazis,” “gayzistas” e “racistas” (no caso aqueles que, por exemplo, apoiam uma política de cotas) que adquiriram mais espaço na esfera pública nos últimos anos. Para os três homens brancos, a ascensão de movimentos que se opõem ao sexismo, à homofobia e ao racismo—fenômenos que ainda marcam a cotidiano brasileiro—não é sinal de uma democracia mais aberta e participativa, mas sim os primeiros passos rumo a uma ditadura do politicamente correto. Em um mundo online que clama por memes e opiniões agressivas articuladas em doses facilmente digestíveis, essa visão maniqueísta vem seduzindo uma população decepcionada com os escândalos de corrupção das ultimas décadas e sem paciência para explicações estruturais e projetos de mudança a longo prazo.
Através da Veja, que tem uma circulação semanal de cerca de um milhão, Rodrigo e Felipe agora tem um público muito mais abrangente do que há dois anos atrás. As suas diatribes são compartilhadas e curtidas no Facebook, os trechos mais citáveis encaminhados para grupos WhatsApp. À medida em que as mensagens se distanciam de suas fontes, elas se desencarnam de seu contexto radical e transformam-se em ideias preconcebidas (as idées reçus que Flaubert ridicularizou com tanta destreza em Bouvard et Pécuchet). E em amalgamando corrupção política com uma suposta corrupção social e cultural endêmica, o discurso da NDB ameaça o progresso e os direitos adquiridos nessas esferas nos últimos doze anos.
“Todos nós somos vítimas da história, mas o paranoico e uma vítima dobrada, uma vez que ele é aflito não somente pelo mundo real, junto com o resto de nós, mas também pelas suas fantasias.”
A visão reacionária articulada por esses três guerreiros culturais conquistou espaço porque a esquerda brasileira fracassou em responsabilizar o PT pelos seus atos. De um partido de oposição onde a ética era um fator central na política, o PT tornou-se um partido governante que não é avesso ao uso da corrupção para fomentar alianças e conseguir resultados nos corredores bizantinos do congresso e que cultivou uma relação promíscua com bancos e empreiteiras. Houve lampejos de uma esquerda alternativa ao PT durante a campanha presidencial quando Luciana Genro, candidata pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), incisivamente criticou o PT por não resistir ao jugo do capital financeiro após assumir o poder. Enquanto isso, Jean Wyllys, o deputado federal pelo PSOL, tem atraído um público de jovens progressistas, transformando o status de celebridade que ele adquiriu através do Big Brother Brasil em um palanque para falar contra a discriminação e violência racial e sexual.
Mas Luciana e Jean são membros de um partido político pequeno que tem uma exposição limitada durante períodos de campanha política. Além do mais, eles não se beneficiam da aura de legitimidade que a falta de uma filiação partidária oferece a Rodrigo, et al. A ausência de publicações esquerdistas críticas do PT permitiu que a Veja reivindicasse o manto de observadora crítica do governo (a CartaCapital, por exemplo, tem evitado críticas pesadas ao governo). A Veja alega imparcialidade, mas ela sempre favoreceu os governos mais à direita, e após a eleição histórica de Lula em 2002 a revista encontrou um novo senso de propósito, relatando todos os escândalos e pseudo-escândalos do governo do PT com um zelo missionário.
Uma “revista de fofoca”
A corrupção tem sido um fator recorrente no governo de Dilma, que agora está tendo que lidar com o Petrolão. Também estava presente durante os oitos anos de Lula no poder, quando o Mensalão contaminou o seu legado. Mas o outro grande partido da política brasileira, o PSDB, também tem o seu quinhão de escândalos. É só lembrar a maneira estranha em que a emenda constitucional permitindo a reeleição passou em 1997. Vale a pena lembrar também que inquéritos e acusações relacionadas a casos de corrupção têm sido realizados com mais zelo sob a presidência de Dilma do que sob o governo do Fernando Henrique Cardoso. Como o New York Times observou recentemente, poderíamos estar nos aproximando do “começo do fim da cultura de impunidade arraigada na nação.” Ainda assim, o longo período do PT no poder tem oferecido a críticos como Rodrigo muita munição para manchar causas progressistas em larga escala, e essa é a grande tragédia. Os líderes da NDB têm sido eficazes em pintar uma imagem deturpada de uma esquerda homogênea, como se o PT e grupos civis como o Movimento Passe Livre tivessem o mesmo projeto político, como se o pensamento esquerdista, tão diverso e criativo, se reduzisse a uma interpretação caricata dos Cadernos do Cárcere de Antônio Gramsci, ignorando assim as contribuições filosóficas de figuras tão diferentes quanto Élisée Reclus, Rosa Luxemburgo, Jean Jaurés, Walter Benjamin, Erich Fromm, Georg Lukács, Guy Debord, Henri Lefebvre, Louis Althusser, Jacques Rancière, David Harvey e Slavoj Žižek, para citar apenas alguns dos nomes europeus de maior renome.
Para aqueles que acreditam no discurso paranoico da NDB a conclusão que fica, mesmo sendo falsa, é óbvia: o problema é a tradição esquerdista e as ideias progressistas in totum. Para eles, o conspiração vai muito além de Dilma e seus companheiros no PT. Ela incluí tanto Obama quanto Fidel e Piketty, tanto um clero engajado em causas sociais quanto relações homoafetivas na novela, tanto a política de cotas quanto o feminismo que combate a posição privilegiada dos homens na sociedade brasileira, tanto a “turma dos direitos humanos” quanto o ideal político de um estado de bem-estar social (concepção que, paradoxalmente, deve grande parte de sua origem ao pensamento conservador e liberal do século 19).
Duas perguntas ficam para ser resolvidas com esse basculamento recente do discurso político brasileiro. Em primeiro lugar, pode um jornalismo investigativo mais agressivamente responsável emergir no Brasil e oferecer aos cidadãos uma análise mais cuidadosa dos atos e crimes das classes políticas e financeiras? Algo nos moldes do ProPublica nos EUA, e não o jornalismo de tabloide exercido pela Veja quando, por exemplo, reportou o depoimento do Alberto Youssef de maneira escandalosa, apresentando na capa as palavras “Eles sabiam de tudo” como se fossem a verdade indiscutível (em 2012 a revista britânica The Week, que cobre a mídia global, atribuiu à Veja o status de “revista de fofoca”; o contexto no caso era a sua cobertura do Big Brother, mas a caracterização também poderia servir para descrever seu jornalismo político). Em segundo lugar, pode a esquerda encontrar uma voz que seja tão firmemente crítica das transgressões do PT e tão envolvente quanto as vozes da nova direita? O projeto de construir uma democracia mais inclusiva e justa no maior país da América Latina e sétima maior economia do mundo pode depender das respostas. Caso contrário, vozes reacionárias continuarão a adquirir legitimidade, colocando em risco os avanços sociais conquistados nos últimos doze anos.
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Patrick de Oliveira é doutorando em História