Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O factóide como método

Sinal de coisa nova: no final do aviso, o alto-falante do aeroporto agradece pela atenção. Talvez não seja novidade importante, mas de qualquer forma é sintoma do valor crescente dessa mercadoria pela qual hoje se trabalha ou se briga na esfera pública: a atenção. Era ela o pano de fundo do programa do Observatório da Imprensa (TV Brasil) sobre um factóide do qual participamos semanas atrás (ver ‘A construção da mentira‘. Há, entretanto, algo mais a se dizer sobre o assunto, que parece ter uma incidência mais ampla na sociedade contemporânea.

Para quem não assistiu ou não se lembra, vale recordar detalhes do fato. Como roteiro de seu filme sobre a apuração insuficiente dos acontecimentos por parte da mídia jornalística, um profissional de imprensa inventa uma organização não-governamental inglesa destinada a abraçar pessoas. Um representante dessa imaginária ‘ONG do abraço’ posta-se no centro de São Paulo, abraçando passantes. A mídia acorre em peso à novidade, sem que um repórter sequer se dignasse a apurar a veracidade do fato, isto é, a real existência da ONG.

No programa comandado pelo mestre Alberto Dines, nós levantamos, de forma muito breve, duas hipóteses. A primeira, inspirada no livro da professora da UFRJ Raquel Paiva (Histeria na Mídia, Editora Mauad), aponta, como característica principal da mídia contemporânea, a histeria, que é uma doença da representação. Evidentemente, não são diretamente aplicáveis as categorias nosográficas do funcionamento mental do indivíduo a instituições ou organizações. Mas, além da psiquiatria, é possível trabalhar a analogia entre a disfunção individual e o excesso discursivo típico do falatório midiático, que voa nervosamente como mosca sobre grandes e pequenas fontes de excitação.

Repórter fisicamente agredida

A segunda hipótese tem terminologia inglesa. Trata-se do flash-mob (mob como diminutivo de mobilization), designação do fenômeno midiático de produção de fatos, reais ou imaginários, capazes de mobilizar instantaneamente, ainda que por um instante (flash) a atenção do público. Acontece com frequência na internet, em especial nas chamadas redes sociais (twitters, blogs etc.), mas pode se dar em qualquer faixa do longo espectro comunicativo hoje coberto pela mídia. A ‘ONG do abraço’ era dessa natureza.

Mas era um flash-mob metódico. Em outras palavras, um recurso para dissertar mais longamente sobre a falta de cuidado investigativo para com os acontecimentos noticiáveis, mas também a excitação (histérica?) por eventos de escasso interesse social, embora exóticos ou insólitos. Em meio à massa de fatos graves e de conhecimento importante para a boa formação da cidadania, é penoso aceitar a enorme atenção da mídia para algo tão banal quanto abraçar pessoas.

O factóide foi, portanto, revelador.

O mesmo se dá com uma ‘pegadinha’ recente do programa televisivo CQC. Em pé na porta de entrada do Congresso Nacional, com uma tabuleta na mão, uma moça pedia a deputados e a senadores que assinassem a folha de apoio a uma suposta ‘PEC’ (proposta de emenda constitucional) relativa à importação de produtos básicos para jovens brasileiros. Um desses produtos era a cachaça. Todos os parlamentares abordados (menos um, a bem da verdade) apuseram as suas firmas ao documento, que não ou mal leram. Ato contínuo, uma repórter do programa interpelava o parlamentar, perguntando-lhe o que exatamente havia apoiado. O constrangimento era geral. De fato, ninguém conhecia o teor do documento e aquele que sabia ao menos o nome da PEC não tinha se inteirado do item ‘cachaça’. Um deles, antes mesmo de ouvir a pergunta da repórter, agrediu-a fisicamente, quebrando o microfone e vociferando insultos grosseiros.

Uma vez mais, o factóide como método resultou muito informativo.

O querelante contumaz

No primeiro caso, ficamos informados sobre o déficit de credibilidade do noticiário jornalístico, cada vez mais acionado por uma pressa avessa à apuração da veracidade dos fatos e pela insignificância exótica, cujo espectro editorial vai desde os pormenores da vida pessoal de celebridades (ao modo do reality show), até os acontecimentos miúdos ou insólitos do cotidiano, como a ‘ONG do abraço’. No segundo caso, não se põe em questão o velho ‘quarto poder’, e sim, um dos poderes reais da república, que é o Legislativo. O déficit de credibilidade dos parlamentares pode ser aferido pela inequívoca demonstração de atenção deficiente. Assina-se sem saber o que se está assinando.

Em ambos os casos, a mídia comparece seja como objeto, seja como sujeito da investigação. Mas o que propomos chamar de ‘síndrome social da desatenção’ vai muito além da dimensão técnica da mídia, pois parece indicar uma contaminação de determinadas instituições pelos efeitos perversos do dispositivo informacional.

Por exemplo, um episódio recente que acompanhamos de perto. Um querelante contumaz (a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário, os gabinetes de vereadores e deputados vivem assediados por esse tipo de personagem, que oscila entre o hospital-dia psiquiátrico e agremiações sindicais paranóides) denuncia junto a uma ONG uma autoridade que supostamente ‘violou um direito civil’.

A mercadoria mais cara da sociedade midiática

Como preliminar, é preciso ter em mente um fenômeno novo na paisagem urbana brasileira: há ONGs cujo sentido social caducou, dispostas a qualquer coisa para não desaparecerem do mapa. Pois bem, a denúncia do querelante é infundada, delirante, mas a ONG a acolhe num primeiro momento, sem sequer consultar ou avisar a parte denunciada.

Até aí, se pode pensar em erro, engano e alvitrar uma retificação. Mas de repente se descobre que ninguém leu atentamente, ou não soube ler os termos da denúncia ou não prestou a devida atenção ao discurso delirante do personagem. Em outras palavras, patrocinou-se um factoide sem se saber direito o que estava fazendo. O déficit de atenção equivale aqui à mesma leviandade institucional da mídia ou dos parlamentares interpelados pelo CQC.

E de repente, não mais que de repente, um sério e competente magistrado revela-nos alarmado que, em seu meio profissional, ‘ninguém parece estar lendo mais nada’ – a desatenção é a regra. É como se, submersas na enxurrada dos signos – que provêm tanto da mídia quanto da liberdade democrática do questionamento e da demanda – as instituições estivessem, elas próprias, à beira de se tornarem factóides institucionais, se é que o termo tem validade.

Disso tudo, não há o que concluir de modo definitivo. Há, por um lado, o sintoma de uma crescente liquefação da responsabilidade social. Por outro, o contágio virótico da imagem-sensação, que leva ao trânsito fácil do factóide em toda a sua gama de significações – da notícia sem apuração até a denúncia delirante.

No centro está a luta pela atenção, a mercadoria mais cara da sociedade midiática, onde tudo o que nos parecia sólido de fato tende a se desmanchar no ar.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro