A Folha de S. Paulo e o Estadão acolheram de bom grado, em suas edições de sábado (8/1), o pretexto dado pelo governador Geraldo Alckmin para pendurar em seu gabinete um retrato de Rodrigues Alves, gesto que outra razão não teve senão sinalizar que ele já está na corrida para disputar a candidatura à presidência da República pelo PSDB em 2014, embora tenha dito aos repórteres que essa data está ‘muito longe’. O pretexto é que o retratado teria sido o ‘último presidente paulista’ (1902-1906).
Comecemos pelos dicionários, onde se lê que paulista é o natural ou habitante de São Paulo, caso de quatro ex-presidentes da República posteriores a Rodrigues Alves, como se verá adiante.
Não é preciso ter diploma de ciências políticas para saber que os dois últimos presidentes, que ficaram 16 anos contínuos no poder, foram políticos paulistas, embora o primeiro, FHC, tenha incidentalmente nascido no Rio (o pai era militar), e o segundo, Lula, seja um migrante pernambucano que fez toda a sua carreira sindical e política em São Paulo.
A historinha endossada pelos dois jornais dá a ideia de que os paulistas estão fora do poder desde quase o início do século passado, o que é uma grande cascata, como se diz no jargão jornalístico.
Paulistas na Primeira República
Na primeira República, os três primeiros presidentes eleitos, depois dos governos provisórios dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, foram os paulistas Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves. São Paulo já era a grande força econômica do país, graças ao café, e tinha enorme influência política. Em 1918, Rodrigues Alves foi eleito novamente. Vítima da gripe espanhola, morreu sem tomar posse.
O último presidente da Primeira República, Washington Luís (1926-1930), era chamado o ‘paulista de Macaé’, cidade onde nasceu. Ele se formou na Faculdade de Direito de São Paulo e começou em Batatais, interior paulista, a carreira política que o levaria à prefeitura da capital e ao governo do estado. Seu sucessor eleito ‒ cuja posse foi impedida pela Revolução de 1930 ‒, Júlio Prestes, era paulista.
Em capítulo da História Geral da Civilização Brasileira, Eli Diniz escreve, a respeito desse período, que na fase anterior a 1930 ‘o setor hegemônico do complexo agroexportador, a burguesia cafeeira paulista, tendia a ser o núcleo em torno do qual as alianças gravitavam’.
Elite industrial se aproximou de Vargas
Como se sabe, a partir de 1930 o gaúcho Getúlio Vargas governou o Brasil durante 15 anos, primeiro como chefe do governo provisório, depois como presidente eleito indiretamente e, entre 1937 e 1945, como ditador. Em 1932, com apoio de setores importantes da elite paulista, representados por uma aliança entre o Partido Democrático de São Paulo (PD) e o Partido Republicano Paulista, militares antitenentistas chefiaram a revolta conhecida como Revolução Constitucionalista.
A derrota desse movimento pelas tropas governistas foi um doloroso e duradouro golpe sofrido por forças políticas paulistas, mas isso não impediu que, ao longo do governo Vargas, mesmo depois da decretação da ditadura do Estado Novo, houvesse uma aproximação com o governo, como descreve, na obra citada, a mesma autora:
‘Principalmente a partir de 1933, derrotada a Revolução Constitucionalista de 1932, a burguesia industrial, através de alguns de seus líderes mais expressivos, realizaria um esforço no sentido de assegurar sua participação e influência na formulação da política econômica governamental, verificando-se uma articulação desta elite com os novos grupos detentores do poder.’
Na redemocratização de 1945, a primeira eleição presidencial não foi protagonizada por políticos, mas por militares – o general Eurico Gaspar Dutra, eleito, e o brigadeiro Eduardo Gomes.
Getúlio só voltou com apoio de Ademar
Em 1950, o peso político de São Paulo voltou a se fazer sentir expressamente: Getúlio só decidiu ser candidato quando obteve o apoio do governador do estado, Ademar de Barros, que indicou o vice-presidente, Café Filho.
Juscelino Kubitschek elegeu-se em 1955 derrotando um militar, Juarez Távora, e dois políticos paulistas, Ademar de Barros e Plínio Salgado. Dos ‘cinquenta anos em cinco’ que constituíram seu programa, pode-se dizer que uma parte decisiva foi representada pelo salto industrial que seu governo favoreceu em São Paulo.
Seu sucessor, em 1960, foi o mato-grossense Jânio Quadros (hoje seria mato-grossense-do-sul, pois ele nasceu em Campo Grande). Tendo começado a frequentar a escola no Paraná, aos 16 anos transferiu-se para Lorena, no interior paulista, e depois para a capital. Jânio, como Washington Luís, fez carreira política em São Paulo, passando pela prefeitura da capital e pelo governo do estado.
Jânio renunciou, João Goulart assumiu, houve o golpe militar de 1964.
O critério de escolha dos generais-presidentes passou ao largo de qualquer atuação política em sentido estrito, nada importando o lugar onde nasceram (um cearense, três gaúchos e um carioca, sem contar a Junta Militar de 1969).
Quércia, Ulysses, Lula, Covas, Maluf, Afif
A principal derrota do regime militar em 1974 foi a eleição para o Senado, por São Paulo, de Orestes Quércia. O ‘anticandidato’ do PMDB contra a ditadura naquele ano foi outro político paulista, Ulysses Guimarães, que teria grande influência no governo civil entre 1985 e 1989. Ele foi presidente do PMDB, da Câmara dos Deputados ‒ condição que o fez ocupar interinamente a presidência da República, durante ausências do presidente José Sarney ‒ e do Congresso Constituinte. Em 1986, foi o segundo mais votado em todo o país para a Câmara dos Deputados. O primeiro foi outro político com carreira em São Paulo, Lula.
Na primeira eleição direta após a redemocratização, em 1989, nada menos do que cinco políticos de São Paulo disputaram a presidência da República no primeiro turno: Lula, Mario Covas, Paulo Maluf, Guilherme Afif Domingos e Ulysses. Lula foi para o segundo turno.
Desde 1994, a disputa pela presidência da República teve sempre em primeiro plano políticos de São Paulo: FHC e Lula em 1994 e 1998, Lula e Serra em 2002, Lula e Alckmin em 2006, Serra em 2010.
Isso para não falar na presença de paulistas em ministérios e outros cargos importantes da República, que deu origem, e não é de hoje, ao conceito de ‘paulistério’.
Repórteres e editores foram na onda
Se tivessem tido mais juízo, os repórteres dos dois grandes jornais paulistanos teriam sorrido polidamente para o governador e tocado adiante a conversa. Na pior das hipóteses, caberia aos editores barrar a manobra do retrato de Rodrigues Alves, que, convenhamos, não chega a ser um prodígio de engenhosidade política.
A menos que… bem, sempre tem gente dizendo que Folha e Estado são veículos tucanos…
Com certeza não houve nenhuma maquinação entre o Palácio dos Bandeirantes e as duas redações, nada além de uma corriqueira oferta de pauta que foi aceita alegremente. O período é pré-carnavalesco, mas, registre-se, não carente de noticiário político ou geral, como demonstraram no dia seguinte, domingo (9/1), as edições dos três principais jornais do país.
O Estadão publicou matérias com informações renovadas sobre a disputa de cargos entre os partidos governistas e uma reportagem sobre investigação em que um cunhado do governador Alckmin é acusado de ‘integrar organização que troca contratos públicos por doação eleitoral’. A Folha deu manchete sobre os planos do Exército para monitorar as fronteiras. E o Globo saiu com manchete sobre grupos de extermínio ligados a policiais, em todo o país, além de reportagens a respeito do empenho do governo Dilma em tornar públicas informações relativas a crimes praticados sob a ditadura em nome da segurança nacional.
A realidade brasileira é pródiga em pautas.
A falta de senso crítico dos jornalistas fez com que, no episódio do retrato de Rodrigues Alves, Alckmin tenha sido tratado com algo mais do que uma simples deferência.