Em 26/10/2005, em sua coluna da página 2 da Folha de S.Paulo, o jornalista Carlos Heitor Cony afirma que ‘as feministas’ aproveitaram o referendo das armas ‘para tirar as casquinhas de sempre’, reduzir ‘qualquer problema ao machismo’. O jornalista ridiculariza um amplo e diversificado movimento social que ele desconhece e usa o espaço desse veículo para atacá-lo, usando um eventual aspecto, pelo todo, em suas múltiplas posições.
O olhar colonial sobre a historia do Brasil reduziu mulheres, negros, índios e pessoas com necessidades especiais, à condição de incapazes, desprovidos de inteligência para sequer ter autonomia sobre seus atos. No caso das mulheres valia mais a palavra de um homem preso do que a da mãe que alimentava e cuidava dos filhos; esta devia pedir autorização a ele para fatos simples, como mudar de residência, escolher escola para os filhos etc. Brutalizar, violentar, matar eram e, infelizmente, ainda são ações praticadas por companheiros ou ex-companheiros, pais, e outros homens que freqüentam os lares e se aproveitam da confiança de meninas e meninos para estuprá-los. Tudo isso ficava bem escondido no ‘segredo das famílias’, como disse Miriam Moreira Leite, até que as feministas os denunciassem.
A educação era impensável para as meninas até o inicio do século 19, reservando-se a elas as ‘prendas domesticas’. A ruptura da barreira educacional se deu há 200 anos quando Nísia Floresta, talvez a primeira feminista, abriu uma verdadeira escola para meninas. Na segunda metade do século 19 as feministas eram jornalistas, escritoras, poetas, musicistas, ativistas políticas que buscavam superar a discriminação a que eram submetidas em casa e na vida pública. Juntaram-se aos movimentos pela libertação dos escravos, pela independência e pela República.
O direito ao voto não foi uma concessão de Getúlio Vargas, mas uma longa luta internacional e nacional de feministas como Bertha Lutz.
Palavra do torturador
Nas décadas de 1960 e 1970, em plena ditadura, as feministas saíram às ruas, correndo tanto perigo como os demais, na luta pelo ‘Movimento Feminino pela Anistia’ que depois se tornou o Movimento Brasileiro pela Anistia. Lembro, com gratidão, de Terezinha Zerbini e Margarida Genevois, entre tantas mulheres de todas as classes sociais que muito arriscaram até conseguir a anistia aos presos e refugiados políticos. E, para os que se esqueceram, Terezinha foi chamada de ‘louca’ na época, por sua ousadia.
Esta trajetória está sendo redescoberta pelas acadêmicas às quais têm se somado muitos historiadores e sociólogos.O movimento feminista é plural. Incorpora várias correntes ideológicas e políticas. Esta longa e difícil recuperação do papel das minorias étnicas e das relações sociais de gênero está modificando o que conhecíamos de nossa história. Concretamente, o Código Civil, o Estatuto da Mulher Casada e a Constituição da República incorporaram as reivindicações das feministas.
Na etapa contemporânea continuamos a luta das feministas dos anos 1930 que, juntamente com alguns promotores e juristas à época, lutavam contra a ‘epidemia de assassinato de mulheres’. O momento crucial ocorreu durante o julgamento de Doca Street, assassino de Ângela Diniz, quando escrevemos em todas as paredes: ‘Quem ama não mata’.
E aqui reencontro o jornalista Cony, que em 1979 escreveu em Fatos & Fotos Gente:
‘Vi o corpo da moça estendido no mármore da delegacia de Cabo Frio. Parecia ao mesmo tempo uma criança e boneca enorme quebrada… Mas desde o momento em que vi o seu cadáver tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu assassino, que aquele instante eu não sabia quem era’.
Seria esta reação uma subjacente solidariedade com o assassino, que ele já pressentira ser um homem? E para verificar o que outros homens pensavam sobre o tema, o jornalista entrevista nada mais nada menos do que o delegado Sérgio Paranhos Fleury! Este afirma:
‘O único crime respeitável, que não condenaria com rigor, era o passional.Crime passional qualquer um comete, até eu’.
E Cony conclui:
‘A chamada privação de sentidos provocada pela paixão pode fazer do mais cordial dos homens um assassino’.
Como todos nós sabemos, o delegado torturador era o paradigma da cordialidade!
Frase atual
As afirmações a favor do assassinato de mulheres não param por aí. Cony concorda com o argumento da defesa de Doca Street, o advogado Lins e Silva, para quem a ‘vítima provoca a própria morte’, ela ‘busca um assassino que concretizará seus desejos de eliminação’. Ao que o jornalista acresce:
‘Ela sabia. Sabia, por exemplo, que um dia um de seus amantes seria mais homem do que os outros e lhe daria o castigo – ou a vingança – que ela buscava, inconscientemente, ao longo de sua estranha aventura feita de amor, delírio e vazio’.
Mesmo que se leve em conta a ‘liberdade poética’ do jornalista, ele adere à dupla moral sexual: ‘O sexo para ela era apenas sexo, sem transcendência interior que o transforma em amor’. Ou, pode-se ler, as mulheres devem ser punidas se fizerem sexo sem amor, este é um comportamento do homem.
Cony exime-se de julgar e, portanto, absolve o criminoso ao dizer:
‘Pois não creio que, em doutrina sã, um homem possa se atrever a julgar seu semelhante. No lugar de Doca, todos seríamos Docas. No lugar de Angela, todas as mulheres seriam Angelas’.
Nós feministas queremos acabar com o suposto direito masculino de matar suas companheiras, ex-companheiras e até mesmo namoradas pela simples suposição de traição. Se caiu em desuso a figura dos crimes passionais, a justificar a eliminação da companheira, hoje estes atos macabros continuam a apelar à ‘forte emoção’, perpetrando esta bárbara prática homicida.
O que nós, feministas, mulheres e homens, entendemos como ‘solução radical’ se resume na frase que marcou a atuação das mulheres, na década de 1970, e continua atual: ‘Quem ama, não mata, não agride, não maltrata’, e que exige de nós reflexão, discussão e ação política séria e conseqüente.
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Professora titular de Sociologia da USP, coordenadora científica do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (USP)