O governo de Hosni Mubarak – ou o que dele restou – cometeu um erro decisivo ao tentar sufocar a imprensa internacional acampada no Cairo. Se a tivesse deixado trabalhar poderia faturar algumas simpatias e até reverter o inexorável desfecho. Mas ao adotar a repressão generalizada para calar a imprensa internacional Mubarak ficou rigorosamente só e reforçou os prognósticos sobre a sua ruína.
Só quem jamais se viu obrigado a conviver com uma imprensa livre seria capaz de confrontá-la desta forma. O maior jornal egípcio, o centenário Al-Ahram, é estatal, o governo o controla no essencial e o libera no acessório. As eventuais críticas são toleradas porque não ameaçam a continuidade do regime. E esta continuidade está sendo questionada pelas massas nas ruas não porque haja uma consciência democrática no país, mas porque o sistema egípcio está visivelmente corrompido, podre.
Pedra cantada
A doença do ditador e a iminência da sua substituição pelo filho, Gamal, não foram os deflagradores diretos da rebelião, mas alimentaram uma indignação importada da Tunísia que as redes sociais transformaram em convocações imediatas.
Agora com a mídia internacional alinhada em bloco contra o despotismo e oferecendo um espelho que a mídia local jamais pensou em suprir, o processo de defenestração parece irreversível.
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Quartos de repórteres são invadidos
Fernando Duarte # reproduzido de O Globo, 3/2/2011
Depois das manifestações de sexta-feira passada, durante as quais fui atingido com gás lacrimogêneo, achei que já tinha tido uma boa amostra do aparelho repressor do regime de Hosni Mubarak. Mas ontem [3/2] quatro homens armados entraram no meu quarto no 21º andar do hotel Ramsés Hilton, no centro do Cairo. Estava ali com uma colega inglesa, que usava a sacada da suíte para filmar os protestos na Praça Tahrir. Um homem – com uniforme do hotel – bateu à porta e ele foi o único que vi, do olho mágico. Quando abri a porta, no entanto percebi que estava acompanhado de mais três, e todos entraram sem pedir licença. Olharam em volta e perguntaram, em inglês: ‘Quem está filmando lá embaixo?’
Eu, que havia escondido minha câmera antes de abrir a porta, e minha colega imediatamente dissemos: ‘Ninguém’. E o porta-voz deles, identificado como Ahmed no crachá, nos pediu, de forma cordial, para não registrarmos nenhuma imagem da praça (é relevante ressaltar que as armas permaneciam nos coldres durante nosso diálogo).
‘Vocês sabem como é… Os manifestantes sabem que a imprensa internacional está aqui e podem querer machucar vocês’, alertou Ahmed.
Situação semelhante, depois soube, aconteceu com os enviados de Folha de S.Paulo, portal IG e O Estado de S.Paulo, que estão hospedados no mesmo hotel.
Depois de ver os seguranças duas vezes repelirem manifestantes na porta do hotel e de saber que atiradores de elite fazem parte das forças de segurança, o bom-senso falou mais alto e resolvi não testar a paciência de ninguém.
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Imprensa vira alvo de partidários de Mubarak
Jamil Chade # reproduzido do Estado de S.Paulo, 3/2/2011
A imprensa internacional foi alvo de ataques violentos por parte dos manifestantes favoráveis ao governo de Hosni Mubarak. A reportagem do Estado sofreu intimidação nas ruas e teve seu quarto de hotel invadido por seis policiais.
Aude Marcovitch, da Rádio Suíça, foi uma das que se viu obrigada a correr de manifestantes pró-regime. ‘Fiquei muito assustada’, disse. Um repórter belga acabou preso, supostamente por não ter um visto para trabalhar como jornalista. Ele ainda foi acusado de ser um espião, depois de ter dito que apoiava Mohamed ElBaradei.
Quatro jornalistas israelenses foram presos na manhã de ontem [3/2] e um câmera da rede de TV al-Arabyia está desaparecido.
Um grupo de manifestantes armados com paus e pedras tentou por duas vezes invadir o Hotel Hilton, onde estavam hospedados os jornalistas da Al-Jazira, do Catar. Há dois dias, a rede foi proibida de operar no Egito por ‘mostrar mentiras’ sobre os protestos.
A equipe da CNN, ao tentar sair do mesmo hotel, foi atacada e um dos repórteres foi gravemente ferido.
‘Mubarak é nosso líder. Ninguém tem o direito de acusá-lo de nada’, gritou ao Estado um dos manifestantes, que se recusou a se identificar. ‘Vocês todos da imprensa querem semear o caos no Egito. Não deixaremos’, afirmou, aos berros.
Horas depois, o quarto onde a reportagem do Estado estava hospedada, no Hotel Hilton, foi invadido por seis agentes de polícia, quarto deles armados. Entraram sem pedir autorização e deixaram claro que fotos feitas do balcão do quarto mostrando a Praça Tahrir, onde a violência ocorria, estavam simplesmente proibidas.
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Imprensa vira alvo de ataques no Cairo
Samy Adghirni # reproduzido da Folha de S.Paulo, 3/2/2011
Um fotógrafo do Wall Street Journal foi espancado e outro teve a roupa rasgada. Um repórter da rádio France Inter está internado após ser linchado. O âncora da TV CNN Anderson Cooper foi golpeado na cabeça. Um jornalista belga passou horas preso acusado de ser espião.
Esses são alguns dos casos de agressões contra jornalistas estrangeiros, que se tornaram alvo direto dos simpatizantes do ditador Hosni Mubarak, ontem [3/2] no Cairo.
A Folha teve seu quarto de hotel invadido no fim da tarde por três homens de terno e gravata. Eles bateram na porta e, embora cordiais e sorridentes, não esperaram o aval do repórter para entrar no apartamento em busca, segundo eles, de máquinas fotográficas e filmadoras.
Os homens, aparentemente um funcionário do hotel acompanhado de dois agentes do governo, foram direto até a varanda, que tem uma vista privilegiada sobre o centro do Cairo, principal palco da revolta antigoverno.
Sem armas aparentes, os invasores percorreram o apartamento durante cerca de um minuto e justificaram a busca dizendo, em inglês, que estava proibido fotografar e filmar a partir do hotel. Foram embora sem levar nada e bateram em seguida na porta do quarto vizinho.
Enviados especiais dos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo também tiveram apartamentos invadidos.
O hotel Hilton, onde a Folha se hospeda, barrou o acesso dos egípcios que vinham trabalhando com os jornalistas estrangeiros. Foi decretada, ainda, a proibição de fazer entrevistas pessoais dentro do prédio e até mesmo na calçada em frente.
O cumprimento das regras é monitorado por policiais à paisana. Com isso, os jornalistas enfrentam um dilema: ficar seguros dentro do hotel, mas sem acesso à informação, ou se expor ao risco do ambiente de guerra civil.
Embora não haja evidência de que o governo tenha ordenado ataques, a hostilidade vem essencialmente de apoiadores de Mubarak.
Na CNN, além de Anderson Cooper, Hala Gorani também disse ter sido ameaçada. Segundo a rede de TV, ninguém se feriu seriamente.
Detido e acusado de espionagem, o belga Serge Dumont, do Le Soir, afirmou ter sido golpeado na cabeça por civis não identificados. Segundo a Rádio Israel, quatro jornalistas israelenses foram presos, acusados de violação ao toque de recolher.
O catalão Joan Roura, do canal TV3, foi agredido durante transmissão ao vivo. Segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras, há relatos de ataques a jornalistas de BBC, ABC, Al Jazeera e Al Arabiya, entre outros órgãos.
O secretário-geral da Repórteres sem Fronteiras, Jean-François Juilliard, classificou os ataques de ‘chocantes’. Robert Gibbs, porta-voz da Casa Branca, disse que os EUA estão ‘muito preocupados’ com ataques à mídia e a protestos pacíficos.
Magdy Rady, porta-voz do governo Mubarak, chamou de ‘ficção’ o envolvimento do regime em ataques a repórteres. Segundo ele, a cobertura dos conflitos interessa aos governistas.
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Por 3 vezes, repórter brasileiro pensou que fosse morrer
Eliane Cantanhêde # reproduzido da Folha de S.Paulo, 4/2/2011
Por três vezes, em algumas horas, o jornalista Corban Costa, 49, achou que seria assassinado a sangue frio pela polícia de Hosni Mubarak.
‘Eu pensava: ‘eles vão atirar, eu vou morrer’’, conta ele, que passou parte do tempo com um capuz na cabeça, sem saber onde estava.
Os problemas começaram já no desembarque no aeroporto do Cairo, quando todo o equipamento de Corban e do cinegrafista Gilvan Rocha, baiano de 31 anos, foi confiscado pela polícia.
Eram 20h15 na capital egípcia, 16h15 de Brasília.
Liberados, eles pegaram um táxi com motorista que falava inglês e avisou: ‘Não digam que são jornalistas’.
Passaram por cinco barreiras, sem grandes problemas.
A sorte mudou na quinta barreira. ‘Somos turistas’, disseram. Mas o passaporte de Gilvan é muito carimbado.
Uns dez militares e policiais foram se juntando e os obrigaram a sair. Meteram então ‘um capuz ou uma venda’ em cada um e os empurraram para uma calçada, de frente para um muro. ‘Pensei: ‘é agora, vou morrer’’, relata Corban.
Cercado por policiais e soldados, ele foi levado por uma rua e, depois de subir numa calçada, caminhou na areia. ‘Então, é agora. Ninguém vai ouvir nem ver nada.’
Mas continuaram até uma delegacia. Tiraram-lhe o capuz, e Corban viu Gilvan.
Corban foi colocado numa solitária: ‘Não tinha janela, era forrada de uma coisa acolchoada. Igual a uma câmara de interrogatório’.
Meia hora depois, um policial entrou, pediu a caderneta de Corban e anotou, em inglês, três perguntas: ‘Quando veio para o Egito? Em que trabalha? Por que veio?’
Depois, veio com um papel em árabe, disse que era o depoimento e perguntou: ‘Se acredita em mim, assine’. Corban e Gilvan assinaram.
Eles passaram a noite numa cela e só foram soltos às 14h30 (10h30 de Brasília), depois de comer biscoitos, sem água. Foram postos numa van branca, com mais quatro ou cinco pessoas.
Um soldado perguntou: ‘Tem alguém da Argélia?’ Tinha. E era jornalista. O carro passou a dar voltas e Corban pensou pela terceira vez: ‘Vão metralhar todos nós’.
Em vez disso, largaram os dois no centro. Ontem, eles tentavam deixar o Egito.
‘Vocês estão mortos de fome?’, perguntou a Folha, às 19h de Brasília. ‘Pra falar a verdade, não. Só pensamos numa coisa: sair logo daqui’.
Em nota, o Itamaraty disse que ‘deplora os atos de hostilidade à imprensa’.