A cobertura feita pela mídia conservadora da reunião de cúpula do Mercosul no Rio de Janeiro dá bem a idéia de como o jornalismo exercido nos dias de hoje está deixando a desejar. De caráter visivelmente parcial, questionando a idéia da integração latino-americana, houve praticamente unanimidade nas críticas ao presidente venezuelano Hugo Chávez. No Rio de Janeiro, O Globo e o Jornal do Brasil disputaram quem criticava mais duramente o presidente reeleito pelo povo da Venezuela com mais de 63% dos votos, o maior percentual da história do quinto produtor mundial de petróleo.
Enquanto o JB colocava em manchete de primeira página que ‘Chávez age como filhote de Fidel e desafia Lula’, O Globo apontava que ‘Declaração do Mercosul vai pedir respeito à democracia – documento é assinado em plena escalada autoritária de Hugo Chávez’ e assim sucessivamente.
As matérias de página, os editoriais e comentários de analistas visivelmente tendenciosos preferiram cerrar as baterias contra o ‘populista-petrolífero’, ou ‘ditador’, ou algo do gênero. Em vez de se destacar a carta de intenções entre a Petrobras e a PDVSA para a criação do gasoduto do Sul, uma obra verdadeiramente revolucionária no campo energético, que suprirá de petróleo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia por 150 anos, para não falar da refinaria de Abreu Lima, no estado de Pernambuco, os dois respectivos jornais cariocas optaram por afirmações do tipo ‘Mercosul cada vez mais dividido’, incitando um país contra outro com o intuito de mostrar à opinião pública que o bloco está prestes a se desintegrar.
O Globo chegou até a afirmar que ‘Brasil vai de Morales para neutralizar Chávez’, isso depois de apresentar um editorial intitulado ‘Bloco do atraso’, na mesma quinta-feira (18) em que tinha início a Cúpula do Mercosul.
Presidente venezuelano responde
As investidas da mídia conservadora contra o presidente venezuelano valeram um duro pronunciamento de Hugo Chávez contra o jornal O Globo. Ao discursar na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), quando recebia a Medalha Tiradentes, Chávez acusou o jornal da Rua Irineu Marinho de ser inimigo da integração latino-americana e do povo brasileiro. O Globo chegou até a reproduzir parte das críticas de Chávez, mas erradamente – resta saber se de forma deliberada ou não – atribuiu a causa do discurso a uma ‘reação à reportagem do jornal sobre a suspensão do canal de televisão venezuelano’.
Chávez não se referiu propriamente à não-renovação do canal Radio Caracas Televisão (RCTV), mas, sim, à cobertura manipuladora do Globo. Chávez citou, inclusive, o pensamento do Libertador Simón Bolívar, segundo o qual ‘a imprensa é a artilharia do pensamento’. Neste caso, na visão de Chávez, muito aplaudido nesta parte de sua fala, O Globo está a serviço da oligarquia que teme o início de uma nova época na América Latina.
Troféu ‘barriga’ do encontro
Mas, a grande ‘barriga’ (termo utilizado pelos jornalistas para designar erros primários editados) da cobertura da Cúpula do Mercosul ocorreu no dia seguinte à fala de Chávez, na matéria do JB da página 17. Sob o título ‘Chávez acusa TV de espionagem’, a reportagem, assinada por Camila Arêas e Ricardo Rego Monteiro, referia-se à CANTV (Companhia Autônoma Nacional de Telefones da Venezuela), que voltava a ser estatizada depois de ter sido privatizada em 1989 durante a onda neoliberal que assolava o continente latino-americano. Aí então, no meio da matéria, de repente, não mais que de repente, o JB afirmava textualmente que ‘Chávez acrescentou que a emissora exerceu papel relevante na tentativa de golpe de Estado. A CANTV se negou a transmitir manifestações de apoio ao presidente em 2002. No lugar, transmitiam o desenho Tom e Jerry’.
E ainda na base do ‘crioulo doido’, como diria Stanislaw Ponte Preta, acrescentava-se que ‘o presidente disse que é impossível frear sua decisão de não renovar o canal de televisão e assegurou que terão de derrubá-lo para evitar que leve adiante a medida’.
No afã de se voltar contra Chávez, o JB misturou, de forma primária, alhos com bugalhos, não levando em conta que a CANTV é uma coisa, ou seja, telefonia, e a RTC-TV é outra, no caso, rádio e televisão. Os leitores do JB continuarão achando que a CANTV é aquilo mesmo que estava na matéria, pois o jornal carioca não fez nenhuma retificação, pelo menos na edição seguinte à da referida matéria.
Trama de golpe na sede da emissora
Na verdade, a cobertura da Cúpula do Mercosul e as recentes medidas anunciadas por Chávez remetem a uma série de questões relacionadas com a mídia que a imprensa conservadora evita de todas as formas que entre em pauta. Uma delas é a da renovação dos canais de rádio e televisão, que, ao contrário do que querem fazer crer os proprietários dos meios de comunicação, não é automática.
O espectro radiotelevisivo na Venezuela é ocupado em 90% por emissoras privadas. No Brasil, o percentual é ainda maior. Teoricamente, as concessões deveriam seguir certas normas mínimas, as quais são praticamente ignoradas, tanto na concessão como na renovação do canal. Os canais de rádio e televisão são concessões do Estado, que tem o poder de revogá-las.
No caso da RTC-TV, o presidente Chávez tinha sido criticado por seus correligionários em 2002 por nada ter feito contra a emissora – que teve uma participação ativa na tentativa de golpe de Estado. Chávez tinha chegado à conclusão de que legalmente nada poderia fazer porque o canal de televisão continuava com a licença concedida até maio de 2007. A RTC continuou a fazer uma dura oposição contra o presidente venezuelano, segundo fontes bolivarianas, desrespeitando até a mãe do próprio Chávez.
Patrícia Poleo, uma jornalista acusada de participar diretamente da trama que resultou no assassinato do procurador Danilo Anderson, que investigava as responsabilidades da tentativa de golpe em abril de 2002, era também comentarista da RTC, a emissora, segundo o governo, em cuja sede se realizavam reuniões que tramavam a conspiração. Patrícia vive atualmente nos Estados Unidos, onde tem espaço garantido na mídia, e nega as acusações, mas preferiu não enfrentá-las na Venezuela.
Correa entra na discussão sobre a mídia
O tema midiático está mesmo na ordem do dia, querendo ou não os proprietários dos grandes conglomerados da comunicação, seja na Venezuela, no Brasil ou no Equador. Em declaração a jornalistas pouco antes de embarcar de volta a Quito, o presidente Rafael Correa, que participou também da Cúpula do Mercosul, deixou claro o que pretende fazer nos próximos dias. Como os jornais não divulgaram, a resposta continua atual e deve servir também de reflexão sobre (para usar uma expressão de Correa) a nova época que se inicia na América Latina:
‘Nós vamos fortalecer a Rádio Nacional do Equador, que já existe. Vamos criar a televisão nacional. É verdade, deve haver liberdade de imprensa e muitas vezes se confunde liberdade de imprensa com liberdade de empresa, pois são empresas privadas, que têm certos interesses, as que nos informam. Vai se permitir que tais empresas continuem funcionando, mas as pessoas devem ter uma verdadeira informação e para isso vamos criar um canal do Estado.’
É possível que quando Rafael Correa torne realidade o que adiantou no Rio de Janeiro, jornais como O Globo e o Jornal do Brasil repitam o que têm escrito sobre Chávez, o que para os mais velhos remete aos anos 1960, quando estes mesmos jornais se posicionaram enfaticamente em favor do golpe civil-militar que derrubou o então presidente constitucional João Goulart. Deu no que deu.
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Jornalista