O primeiro desafio do novo ministro da Fazenda, Guido Mantega, tem sido acomodar-se à sombra de seu antecessor. Sua chegada à nova casa foi meio desastrada, com declarações fora de tom sobre os juros e a política fiscal. Percebeu logo, e nisso foi ajudado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a conveniência de ser mais cauteloso e mais convincente na promessa de continuidade.
Antonio Palocci foi demitido de forma inglória, depois de acusado pelo presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, de envolvimento na violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Mas a demissão não incluiu sua política e seu estilo – importantes, pelo menos como fachada, para a tranqüilidade e as ambições eleitorais do presidente. Lula não podia manter o freqüentador da Casa de Ribeirão Preto, a famigerada mansão do lago, mas também não podia simplesmente livrar-se do ministro da Fazenda.
Tudo se passou como se houvesse dois Palocci. Um estava com a credibilidade pessoal arrasada, mas o outro continuava a ser um fator de credibilidade financeira para o governo e para o país. Essa ambigüidade foi refletida pela imprensa. Em seu último fim de semana como ministro, os jornais davam sua demissão como assunto liquidado, ou quase. Mas empresários e analistas de mercado ainda não mostravam grande preocupação, pois o outro Palocci, o chefe da Fazenda, só seria substituído fisicamente, segundo pareciam acreditar.
Reação esperada
Na manhã seguinte à demissão, Globo, Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo apresentaram em manchetes e subtítulos a queda de Palocci e a nomeação de Mantega. Também nos subtítulos ou em retrancas adicionais, sempre na primeira página, noticiaram as promessas de manutenção da política econômica.
O novo ministro não correspondia às expectativas mais conservadoras, mas tentava, sem muito jeito, ajustar-se ao figurino. A Gazeta Mercantil destacou a aposta de alguns empresários na mudança – ‘Expectativa de juro menor com Mantega’ – e tentou resumir num quadro as diferenças entre o novo e o ex-ministro.
A única manchete surpreendente foi a do Valor: ‘Mantega prevê crescimento de 4,5%’, informou o jornal, como se nada extraordinário houvesse ocorrido na área econômica. A concessão à crise foi matéria abaixo da manchete: ‘Com queda de Palocci, oposição atacará Lula’.
O mercado financeiro reagiu como se esperava, com sinais de preocupação, mas sem histeria. Os movimentos do câmbio e do mercado de ações foram determinados, em parte, pela alta dos juros americanos e pela nota do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, na terça-feira (28/3)à tarde. Segundo a nota, o aperto monetário deve continuar e isso afetou os mercados de todo o mundo.
Sem mágicas
Guido Mantega passou o resto da semana procurando reafirmar seu compromisso com a estabilidade e a prudência. Suas primeiras declarações não haviam sido convincentes. Ele havia rejeitado a idéia de uma política fiscal mais severa – proposta apresentada no fim do ano passado pelo ministro Palocci e por seu colega do Planejamento, Paulo Bernardo. Mas a idéia nunca foi liquidada e o ministro recém-nomeado julgou necessário reafirmar sua oposição à proposta. A política fiscal, segundo ele, já é bastante austera. Alguns analistas consideraram a declaração infeliz, diante da indisfarçável expansão do gasto público. Além disso, Mantega reafirmou as críticas à política do Banco Central, mas com uma ressalva: o exagero vinha sendo corrigido com o corte gradual dos juros.
O presidente Lula interveio para impedir um desastre maior: ‘Lula fortalece Meirelles para evitar atritos com Mantega’, noticiou o Globo na quarta-feira (29). ‘Meirelles fica porque só responde a Lula’, informou o Estadão no mesmo dia, também na primeira página. Podia não ser um grande ganho para o presidente do BC, Henrique Meirelles, mas era, com certeza, uma diminuição para o ministro da Fazenda. Na gestão de Palocci, a autonomia do banco – de fato, não de direito – era garantida pelo ministro e não contra sua vontade.
A Gazeta Mercantil ressaltou mais uma vez a promessa de Mantega de trabalhar para reduzir os juros. O Estadão foi o único jornal a destacar na primeira página, mais uma vez, a ambigüidade da situação: ‘Mal-estar e clima de velório na posse’ foi o título de uma chamadinha logo abaixo da matéria principal.
O relatório da CPI dos Correios foi o grande assunto das primeiras páginas, na quinta-feira (30), exceto para a Gazeta Mercantil. Seus leitores foram surpreendidos, nesse dia, com a manchete ‘O País ante o desafio de enfrentar a China’. O mercado financeiro começava a acomodar-se, enquanto o presidente da República afirmava não haver mágica em economia, Mantega tentava recompor a cúpula da Fazenda e surgiam as apostas sobre como seria a reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), no dia seguinte.
Pressões eleitorais
Mantega voltou a ganhar destaque, nos jornais de sexta (31), com a nomeação de auxiliares bem escolhidos para mostrar continuidade. O economista Bernard Appy deixou a secretaria de Política Econômica e voltou ao posto de vice-ministro, na secretaria-executiva. Ele havia deixado esse cargo no ano anterior, com a nomeação de Murilo Portugal. Para a secretaria do Tesouro Mantega nomeou Carlos Kawall, seu companheiro de diretoria no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O novo secretário havia sido, durante anos, economista-chefe do Citibank no Brasil. No mesmo dia o Estadão abriu a página 3 do caderno de Economia com o título: ‘Ministro reage a críticas e garante: não será gastador’.
Mantega continuou, naquele dia, o auto-enquadramento. Não poderia, segundo explicou, agir no ministério da Fazenda com as preocupações de presidente do BNDES.
Naquele dia, a acomodação de Mantega ao novo posto passou por um ajuste fino. O Conselho Monetário Nacional (CMN) votaria a nova Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), usada nos financiamentos do BNDES. Na presidência do banco, o agora ministro defendia uma redução da taxa de 9% para 7%. Como novo membro do CMN – os outros dois são o presidente do BC e o ministro do Planejamento –, contentou-se com 8,15%.
O número foi acertado antes da reunião formal, numa conversa entre Mantega, Paulo Bernardo e Meirelles. O novo ministro da Fazenda queria 8%. O presidente do BC, 8,25%. O resultado foi um número estranho, 8,15%. As variações dos juros oficiais têm sido, há algum tempo, de 0,25 ponto porcentual ou múltiplos de 0,25.
A decisão refletiu um compromisso entre o padrão de cautela seguido na gestão Palocci e a ginástica de Mantega para se afirmar e ao mesmo tempo evitar grandes choques. Na reunião formal, já com presença de assessores, o novo número foi sacramentado rapidamente e apresentado como solução unânime. Mantega aproveitou o tempo para elogiar Palocci e sua equipe. A solução para a TJLP foi bem descrita nas matérias do Estado de S.Paulo – com mais detalhes técnicos – e do Globo – com ênfase maior no aspecto político.
Sérgio Gobetti, no Estadão, e depois Claudia Safatle, no Valor, chamaram a atenção, na semana passada, para as novas preocupações com as contas públicas. As pressões por despesas têm crescido e o cumprimento da meta fiscal pode ser mais difícil do que se previa. A meta nem é ambiciosa: um superávit primário equivalente a 4,25% do produto interno bruto (PIB) é insuficiente para pagar os juros e não envolve, de fato, gastos menores que os do ano passado. Mas até esse objetivo poderá exigir um esforço extra, nos próximos meses, segundo técnicos do Ministério da Fazenda.
Conduzir essa política exigirá do ministro Guido Mantega bem mais que a reafirmação, com palavras, do compromisso com a austeridade fiscal. Se enfrentar esse problema com vigor, conseguirá ocupar o espaço ainda coberto pela sombra de Palocci. Para isso, terá de resistir às pressões do gabinete eleitoral de Lula. Esse confronto será uma grande pauta para os próximos meses.
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Jornalista