O que esperar da grande mídia na cobertura dos conflitos no Oriente Médio? Suas limitações são grandes, do tamanho de seus compromissos políticos e empresariais. Sua condição no mundo a coloca tão distante do velho esclarecimento iluminista contra os abusos do poder (apesar de muitos reclamarem por este papel) quanto de uma postura abertamente questionadora, de um exercício cotidiano em torno da dúvida e do confronto de idéias. O debate no Observatório da Imprensa tem sido valoroso, diversos aspectos têm sido levantados e sob diversas perspectivas, alimentando certa chama que teimamos em carregar e que não compactua com esta ordem mundial que se alimenta de cadáveres e ignorância, de violência física e simbólica, destruindo vidas e sujeitando nossos desejos de superação.
Qual a gravidade da manipulação do fotógrafo libanês demitido pela Reuters? Se ele tentou melhorar a imagem de um prédio atingido por bombardeios israelenses, emprestando ainda mais cinza do que o possível de captar pelo método analógico de sensibilização de um negativo, os motivos podem ter sido pelo menos dois. Em primeiro lugar, a pressão do empregador e seu público por imagens fortes, impressionantes, sensacionais. Assim as guerras são consumidas nos meios de comunicação de massa, irradiando as luzes dos ataques militares e dos escombros civis, produzindo leituras instantâneas do sentido, que ofuscam encadeamentos de maior fôlego – o que significaria mais trabalho para quem produz e para quem consome notícia, e ambos não têm muito tempo no capitalismo contemporâneo, em que a velocidade e seu fetiche são grandes mercadorias. Mas aumentar o campo da fumaça na fotografia é simples ornamento, pelo menos enquanto estiver valendo o provérbio de que onde há fumaça há fogo.
Em segundo lugar, a pressão da consciência do fotógrafo em tomar partido no conflito, a resistência pessoal em alienar seu trabalho. Acontece que a Reuters não o contratou para ser libanês ou para sensibilizar-se com o genocídio de seu povo e a destruição de seu país, sua tarefa era apenas produzir e alimentar o sistema com boas imagens. Provavelmente por alguma inexperiência com o uso do photoshop, seu trabalho extra significou demissão, que a Reuters certamente não deve ter tido dificuldades em contornar, contratando outro fotógrafo libanês ou aprendendo a lição e enviando um profissional que não se sensibilize com uma causa. Ou ao menos que saiba usar bem o photoshop.
Para além do horror
Neste cenário de novas tecnologias de produção e transmissão de imagens, a digitalização representa o fim de um ciclo: o da ilusão quanto à objetividade de imagens mecânicas. Se ela não era sustentável antes, o que temos agora é uma verdadeira implosão da imagem. Tudo isto se torna grave na medida em que, por um lado, estamos submersos em tecnologias de controle e vigilância, e por outro, temos a retomada do mito renascentista ‘ver é compreender’. Mas ao contrário da época do Renascimento e suas novas técnicas de representação, parece que caminhamos no sentido de um certo retorno feudal, com a fragmentação e o isolamento contemporâneos, o desinteresse pelo que é público, a imensa força social das corporações e de uma série de magias (como a do valor), e a nova cruzada, o fundamentalismo político e econômico do terror global.
Alimentando este terror, os mitos da representação imagética objetiva, do jornalismo referencial de mercado e da democracia representativa não serão superados com uma nova mitologia de ‘jornalismo-cidadão’ ou do ‘incremento da democracia com a participação da sociedade civil’. Com raras e caras exceções o onguismo funciona como um apêndice da ordem do capital, o seu lado humano. Para os movimentos sociais que não se dobram ao jogo e à racionalidade parlamentar, novas tecnologias de repressão e nova discursividade oficialista na mídia a favor da criminalização destas lutas.
Então, para além do horror diante destas novas manipulações, é necessário voltar um pouco no tempo para vermos como a manipulação (não apenas midiática) foi a regra que cercou a história de Israel.
Na origem da tragédia
Este ano tivemos a incitação de uma crise diplomática Brasil-Bolívia pela mídia, e historicamente os jornais vêm alimentando grandes conflitos internacionais. Foi o que ocorreu com a Guerra da Criméia (1853-56, 600 mil mortos entre russos, ingleses e franceses), a Guerra de Secessão dos EUA (1861-65, mais de 630 mil soldados mortos), a Guerra do Paraguai (1864-70, dezenas de milhares de mortos paraguaios, numa população de 800 mil).
Após alimentar os espíritos belicosos, a recém-inaugurada agência Reuters estendeu um cabo telegráfico de 550 quilômetros pelo Mar Negro para transmitir a carnificina na Criméia. O mesmo com relação à guerra civil nos EUA, quando, para acompanhar a guerra dos democratas escravagistas do Sul contra os republicanos industrialistas do Norte, do livre-cambismo agrário contra o protecionismo industrial, foram estendidos mais de 24 mil quilômetros de linhas telegráficas! No Brasil, em meio à intensa cobertura jornalística da Guerra do Paraguai – período de forte desenvolvimento da iconografia na imprensa nacional –, Machado de Assis, assíduo colaborador do Diário do Rio de Janeiro, defendeu o quanto pôde a ‘missão civilizatória’ do nosso exército contra os ‘bárbaros’ paraguaios – que já não contavam com escravos ou analfabetos naquela altura, e tampouco com as garras dos ingleses sobre sua economia.
Pois o grande império desta época, a Inglaterra, com seus já conceituados jornais e demais órgãos de informação, estava também na origem da tragédia que viria a se abater sobre os palestinos.
Protetorado cristão
O século 19 foi marcado por um grande processo de modernização capitalista que fermentava em diferentes velocidades no mundo, mas plenamente correlato à expansão européia sobre regiões ainda rebeldes à entrada de padrões culturais e produtos comerciais do Ocidente civilizado, liberal e esclarecido. Assim, imprensa e imperialismo, informação e guerra, opinião pública e usurpação internacional eram dois lados de uma mesma história.
Por exemplo, as grandes potências européias – com a Inglaterra sempre à frente – estavam atentas aos dissensos internos que surgiam nos vastos territórios controlados pelo já fragilizado Império Turco-Otomano. Acusado de tirano e expansionista pela imprensa londrina (por sonhar com um novo império árabe, livre da teocracia otomana servil aos ingleses?), o administrador do vice-reino do Egito, o turco Muhammed Ali, iniciou uma série de reformas: industrialização, envio de missões de estudantes à Europa e… montagem da primeira máquina impressora no mundo árabe.
Para derrotar Ali, que chegou a controlar a Síria e ameaçava avançar sobre a própria Turquia, surgiram propostas de construção de uma barreira, como um protetorado cristão entre o norte da África e a Ásia, ótima possibilidade também para retomar a navegação no Mediterrâneo com a abertura de um canal para o Mar Vermelho.
Retorno ao lar
Eis então que, em 1839, o Times incrementou este plano, defendendo o ‘direito do povo judeu a entrar em sua herança, a Palestina’, solução possível para o ‘problema do Oriente’. No ano seguinte, Ali foi derrotado politicamente e o Egito tornou-se quintal fornecedor de algodão e açúcar para a Inglaterra, assim como caminho marítimo a partir de 1869 com o Canal de Suez. O plano foi logo abafado, mas a idéia não sairia mais do ar.
Nesta época não havia ainda movimento sionista algum, apesar do Times e de toda a força dos nacionalismos europeus, que se valiam do inimigo interno judeu para justificar seu atraso, sobretudo na Rússia, no Império Áustro-Húngaro, na Polônia. Certo alemão de origem judia, Karl Marx, em 1843 posicionava-se contra a ‘emancipação política’ reivindicada por judeus numa Alemanha onde nenhum cidadão era emancipado, a não ser que estes quisessem um Estado de privilégios – logo, um outro Estado de opressão.
Quando judeus russos iniciaram em 1882 um movimento de fuga dos chamados pogroms e começaram a migrar para a Palestina no fim do século 19, ainda não havia movimento sionista organizado, mas eles conseguiram formar colônias totalizando 14 mil imigrantes – numa região já habitada por meio milhão de palestinos muçulmanos, cristãos e judeus (estes em número de 10 mil). Até 1914 o número cresceria para 61 mil colonos judeus, o que é muitíssimo pouco se consideramos que já havia desde 1897 um forte movimento sionista (teoria e movimento do retorno ao lar judeu na Palestina) internacional e que 2,5 milhões de judeus deixaram o Europa Oriental desde 1882.
Comparação equivocada
Ou seja, mesmo servindo ao (manipulados pelo) imperialismo inglês e contando com (manipulando) vultosos recursos, o sionismo não era tão popular em meio à comunidade judaica internacional. Terminada a Primeira Guerra Mundial e a divisão territorial entre as potências vencedoras, a Inglaterra transformou a Palestina (mas também a Jordânia e a Mesopotâmia) em protetorado, adotando uma política de vistas grossas diante da colonização judia e do terrorismo sionista que se formava para promover a expulsão dos palestinos e roubar suas terras.
Muito mais preocupados com a construção do seu novo Estado opressor, os sionistas não fizeram tudo o que poderia ter sido feito para salvar judeus da opressão nazista, de que tinham ciência. Quando o resto do mundo tomou conhecimento da dimensão do holocausto nazista, fechar os olhos às agressões do sionismo na Palestina foi como que um passo para atenuar a má consciência européia. Porém, para que este Estado e esta nação, fruto de um nacionalismo tardio, mergulhada em racismo e fanatismo (basta lembrar do assassinato de Shimon Peres ou apenas refletir sobre a imagem das crianças escrevendo mensagens em bombas), reproduza práticas de seus antigos algozes europeus é necessário mais do que vistas grossas, é preciso uma opinião pública internacional conivente. Há mais de 50 anos o sionismo é o grande fator de instabilidade na região do Oriente Médio, e nada de bom surgirá daí sem um acerto de contas sobre todos estes crimes cometidos.
Qualquer tentativa de se estabelecer alguma comparação entre o Haganah, o Irgun e o Stern, os grupos terroristas que desaguaram no Estado de Israel, com o Hamas ou o Hezbollah, pelo fato de estes estarem se institucionalizando pelo voto, é equivocada. Ainda que o fundamentalismo seja uma marca das cinco organizações, os dois últimos são grupos de resistência, o que, se não justifica as atrocidades cometidas contra civis (e não justifica), explica como eles conseguem sobreviver contando com um apoio internacional tão inferior ao que o terrorismo sionista contou e conta para seguir expulsando os palestinos de suas terras. Cabe lembrar que Israel, Estado à margem da diplomacia internacional e no centro dos interesses estadunidenses, possui pelo menos 200 bombas atômicas.
Mundo-cidadão
Através então de que mecanismos a opinião pública internacional foi capaz de justificar algo tão sórdido? Por meio de algo que hoje faz-se também essencial: uma memória discursiva, que se manifesta num léxico, pronta para enquadrar o que quer que aconteça. Uma operação de palavras e sentidos que circulam e silenciam, sem maiores constrangimentos, tudo de novidade que se apresente e possa representar um esforço de reflexão, e que por fim exija dar voz àqueles de quem não gostamos ou não conhecemos. Pensemos na reverberação tão atual das palavras de Theodor Herzl em 1896, que, defendendo ‘o Estado judeu’, fala sobre a construção de uma ‘barreira diante da Ásia, sentinela avançada da civilização contra a barbárie’.
Acabamos nos traindo com uma antiga visão ‘orientalista’, made in Europe, que atropela as particularidades daqueles povos, que os condena a um atraso como que congênito, fingindo saber algo de sua cultura (‘exótica’), de sua religião (‘fanática’) e de sua política (‘despótica’). É o mesmo que ocorre quando, para referir-nos a uma ocupação de sem-tetos ou sem-terras, usamos o termo ‘invasão’.
Enquanto profissionais operadores de linguagem, os jornalistas manipulam mais dados e informações do que qualquer fotógrafo, ainda que dotado e competente para usar das novas tecnologias. Cabe então lutarmos pelo enterro definitivo das falácias em torno da transparência, da imparcialidade e objetividade midiática. A credibilidade de um jornal e de um veículo qualquer de informação pode ser conquistada a partir do reconhecimento franco das posições editoriais (para além da ilusória separação entre notícia e opinião), da promoção do debate e do questionamento, da sinceridade e do engajamento do pensar (para além da satisfação do mostrar, dar uma mostra do mesmo), e da valorização dos trabalhadores por trás das empresas. No fim das contas, não teremos ‘jornalismo-cidadão’ algum enquanto não tivermos ‘mundo-cidadão’. Duro demais para suportar? Imaginem para o fotógrafo libanês demitido.
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Jornalista formado pela UFF, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, professor do Centro Universitário do Norte e da Universidade Federal do Amazonas