Diante das declarações polêmicas do arcebispo de Porto Alegre, Dadeus Grings (O Globo, 05/05/2010), ao menos a Igreja admite que tem problemas sérios. Os quais a imprensa brasileira dá menos atenção do que merecem. Isso ainda considerando que já foi reconhecido como, no mínimo estranha, a atenção que a grande mídia tem dado à temática, como o caso do monsenhor de Arapiraca. Mas casos assim são como uma ponta de iceberg: quem quiser conhecer melhor os fatos que olhe para o fundo do mar.
Um episódio pouco mencionado pela imprensa brasileira, com exceção do OI, e por último em ‘Veja de 12/05/2010‘, é a história do padre mexicano, fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel, ao qual o jornal El País dedicou uma laudatória reportagem ainda no início do corrente ano. O referido padre é sobrinho do bispo de Veracruz, Rafael Guizar, em processo de canonização por Bento 16, o qual teria sido envenenado pelo próprio Marcial Maciel depois que uma discussão que tiveram. Perto do assassinato, o fato deste padre ter tido várias mulheres e quatro filhos reconhecidos, supostamente existem mais, podem ser seis, não significa muita coisa. Entretanto, existe bem mais.
‘Sociedade é pedófila’
As primeiras acusações de pedofilia contra Marcial Maciel datam da década de 1950, no pontificado de Pio 12, também protetor do padre mexicano. Outro papa que o protegeu foi João Paulo 2º, que ignorou várias acusações contra este e o tinha como um de seus preferidos. Em visita ao México, em 1993, Wojtila teria dito que o fundador dos Legionários de Cristo se tratava de um eficaz guia da juventude. A omissão do pontífice polonês às acusações que constavam sobre Marcial Maciel enlameiam sua imagem, que o Vaticano pretende canonizar. Os próprios legionários já admitiram que o padre mexicano plagiou o livro de cabeceira da ordem, mas plágio também não é muita coisa, comparado com seus outros crimes.
Depois de sua morte, em 2008, pensava-se, no Vaticano, que este assunto estaria encerrado. Entretanto, começaram a surgir seus herdeiros. Um destes declarou que aos três anos de idade era obrigado a masturbar o pai. Não foi o único filho de Marcial Maciel a sofrer abuso do próprio pai e que, aliás, agora reclama indenizações. Este não foi apenas um pedófilo, mas também um tarado, um pederasta, uma figura sem escrúpulos que galgou altos escalões da Igreja e recebeu a proteção de dois papas, sendo Joseph Ratzinger quem de fato cortou suas asas.
A história de Marcial Maciel serve para refletir a declaração do arcebispo de Porto Alegre: ‘Dom Dadeus disse que `a sociedade é pedófila´. Para ele, o abuso sexual de crianças e adolescentes é mais frequente entre médicos, professores e empresários do que entre sacerdotes.’ Ora, que a pedofilia está em vários setores da sociedade não se discute. Aliás, não tenho visto ninguém negar isto. O fato é que como instituição que apregoa valores religiosos e morais para seus fiéis sobre a pedofilia eclesiástica, deve ter mais pulso do que teve até hoje. Ao dizer que outros setores abusam de crianças e adolescentes mais frequentemente, só faltou ao arcebispo emendar: ‘Deixem-nos em paz, somos quem menos pratica pedofilia.’
Ainda convém questionar o que explica a proteção de João Paulo 2º a uma figura pervertida como Marcial Maciel? Seria amizade pessoal? Seria a concepção de que seus crimes não eram graves? Seria negligência perante o sofrimento de todos aqueles que foram vítimas do padre mexicano? O mesmo dom Dadeus deu uma possível resposta para estas questões: admitiu que a Igreja tem dificuldade de cortar a própria carne, ao lidar com denúncias contra religiosos. Segundo ele, punições internas são adotadas, mas denunciar os casos à polícia é mais complicado: ‘A Igreja ir lá acusar seus próprios filhos seria um pouco estranho.’ Concordo que a Igreja tem dificuldades em cortar a própria carne, mas que esta mesma pune é delírio. Quando pune, pune mal. No caso de Marcial Maciel, a dita punição veio excessivamente tardia, quanto Bento 16 determinou que voltasse ao México se destinando a penitências e orações.
É natural os bispos declararem que se sentem vítimas de perseguição da imprensa, pois não estão acostumados ver a podridão de sua instituição sendo divulgada pela mídia. Entretanto, para que tomem coragem de cortar a própria carne, precisam reconhecer de fato suas mazelas e tomar providências sérias em vez de ir a público e lembrar que outros setores da sociedade, que estão além de sua esfera de responsabilidade, também cometem os mesmos erros.
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Professor de História, Ponta Grossa, PR