Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O insuportável silêncio dos juízes

A tragédia do vôo 3054 da TAM convida à sobriedade nas declarações públicas. Desde o início, a imprensa se comportou com surpreendente respeito pelas vítimas diretas e indiretas do acidente. Ademais, ao contrário das autoridades, esteve no local dos fatos na primeira hora. A mídia chegou tão perto do horror que o repórter fotográfico Rogério Casemiro, da Folha de S.Paulo, foi detido pela polícia e encaminhado ao distrito mais próximo, onde um delegado irritou-se com o trabalho da advogada e quase a prendeu também.

A cobertura sensível, detalhista e equilibrada do maior acidente aeronáutico do Brasil foi a prova de que, mesmo com todos os possíveis defeitos, a imprensa está mais afinada com a sociedade do que o mundo do poder. Foi triste ver o Congresso em recesso encolher-se, apesar da morte do deputado federal Júlio Redecker, crítico do ‘apagão’ aéreo.

Deprimente o governo, que resumiu sua posição sobre o acidente: no vexame de Marco Aurélio Garcia e seu aspone; no atraso de três dias de Lula; na condecoração aos aerotecas da Anac; no riso debochado de técnicos da Infraero em inspeções na pista de Congonhas; nas tentativas fracassadas de manipular a imprensa com informações parciais e contraditórias para tirar os 187 cadáveres da rampa do Planalto; na grosseria desinformada de Dilma Rousseff ao anunciar planos de construção de um novo aeroporto; na atrapalhada movimentação do ministro da Justiça para tentar ‘jogar a PF’ no caso, como se não fosse dever da polícia – independentemente da vontade de Tarso Genro ou de Lula – investigar as circunstâncias de quase duas centenas de mortes dentro de uma aeronave.

Autoridades constrangidas

Agora, o maior desaparecido nessa história foi, para variar, o Poder Judiciário. A toga não se manifestou, fiel à tradição de silêncio, não se sabe se cúmplice ou não. Deve-se lembrar que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no início do ano, suspendeu a decisão do juiz federal Ronald de Carvalho Filho, então na 22ª Vara Federal de São Paulo, que limitava a operação de aeronaves em Congonhas a pedido do Ministério Público. Para o tribunal, não havia provas suficientes de que Congonhas oferecia riscos à segurança da aviação. A medida do juiz Ronald, suspensa pela corte, seguia a mesma lógica da redução de vôos que os burocratas-do-ar anunciaram logo depois do acidente. Se é possível agora, por que não era seis meses atrás?

A propósito, o Ministério Público promoveu, no dia seguinte ao do acidente, outra ação com pedido de interdição temporária de Congonhas, recebida com manchete por O Estado de S. Paulo (19/07). Nesse novo processo, o juiz federal concedeu prazo à Anac para manifestação, como determina a lei, atrasando um pouco a decisão.

Se acolher o pleito do Ministério Público, o Judiciário terá cumprido seu dever ao pavimentar o caminho para que o governo saia da letargia gerencial. Isso porque uma decisão judicial elimina o custo político de fechar Congonhas, medida necessária, mas rejeitada pela maioria dos passageiros e pelas companhias aéreas. Em toda solução pelas mãos da Justiça há a possibilidade de as autoridades, docemente constrangidas, se livrarem do ônus dizendo que apenas cumprem o determinado pelo juiz.

Espaço de consenso impensável

Imagine-se, de outro lado, como o governo agiria sem a operação de Congonhas. Ele teria de executar projetos alternativos de curto, médio e longo prazo, desde a realocação dos vôos para outros aeródromos até a construção do novo terminal em São Paulo. Enquanto Congonhas estiver disponível, porém, pode-se adiar indefinidamente esses planos. De qualquer maneira, parece improvável que a solução para a crise dos aeroportos paulistanos passe por um Poder Judiciário esclerosado que não entende seu papel na sociedade contemporânea. Talvez seja mais realista esperar a próxima tragédia.

E a indenização das famílias das vítimas, outro assunto ligado aos tribunais? Bem, O Estado de S. Paulo, na edição de domingo (22/07), lembrou casos assustadores de lentidão do Poder Judiciário, resgatou a história do acidente com o Fokker 100 da TAM em 1996, no qual morreram 99 pessoas, fez um comparativo entre os Estados Unidos e a Bruzundanga e concluiu: se você puder, peça a indenização a um juiz norte-americano.

Isso, todo mundo no meio jurídico sabe. Em razão de peculiaridades históricas, os tribunais norte-americanos resolvem os processos com mais rapidez e efetividade; o Judiciário interfere menos na auto-regulação de direitos de propriedade, embora seja muito ativo nas questões sociais, como aborto, eutanásia, relações homossexuais, laicidade do Estado e, sobretudo, no controle dos outros poderes. Além disso, o sistema norte-americano abre às partes, também no processo criminal, um espaço de consenso impensável no Brasil.

Compensação rápida e justa

É curioso ver que nenhum juiz foi ouvido pelo Estadão numa reportagem que pôs o sistema judicial no paredão. Pode ter sido esquecimento, desinformação, falta de fontes ou descuido do repórter. Mas não se pode afastar a hipótese de que a imprensa tenha descoberto, finalmente, que a Justiça brasileira, na função de controladora dos outros poderes, situa-se entre a irrelevância e o escárnio – e que o silêncio dos juízes diante da tragédia não é apenas o resultado de séculos de alheamento dos problemas econômicos e sociais, mas também o sinal de que eles não têm mesmo nada de importante a dizer sobre a sociedade que deveriam ajudar a conformar.

Algum juiz pode responder a este procurador impertinente: ‘O juiz fala apenas nos autos; não deve expor-se na mídia, muito menos em casos que fatalmente chegarão ao Judiciário.’ Então façam-nos um favor, Meritíssimos: falem nos autos, fechem imediatamente Congonhas até que a investigação oficial da Aeronáutica estabeleça conclusões definitivas sobre o acidente do vôo 3054 e concedam às famílias rápida e justa compensação pela perda dos seus.

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Procurador da República, São José dos Campos, SP