Se você disser que o jornalista é um intelectual, não vai errar. Melhor: talvez acerte na mosca. O paradigma do intelectual se fixou a partir do final do século 19 e, atenção para isso, a partir da imprensa. O escritor francês Émile Zola (1840–1902) é apontado como o principal modelo desse novo personagem da esfera pública moderna. O texto que ele publicou no dia 13 de janeiro de 1898, na primeira página de L’Aurore, de Paris, conformou em definitivo o tipo a que passamos a dar o nome de intelectual: o homem de letras que se levanta de sua escrivaninha, deixa a biblioteca, enfrenta o poder e se lança na esfera pública para denunciar iniquidades, apontar caminhos, ajudar os seus concidadãos a pensar com liberdade e com coragem. O intelectual é o portador da opinião abalizada e livre.
O título em letras garrafais desse artigo histórico foi “J’accuse…!” (“Eu acuso…!”) e, na visão do jornalista Alberto Dines, constitui a maior e mais influente manchete de todos os tempos. Em forma de carta aberta de Zola ao presidente da França, Félix Faure, o texto apontou uma conspiração de falsidades para levar o capitão de origem judaica Alfred Dreyfus à prisão perpétua. Sob a suspeita – forjada – de ser espião a soldo dos alemães, Dreyfus se viu caluniado de todas as formas. Zola escancarou a injustiça, lançando um movimento que não apenas ajudou a libertar o capitão como denunciou o antissemitismo de seus algozes. Em poucas horas, os 300 mil exemplares do Aurore se esgotaram nas bancas e, desde então, não há mais como dizer que a imprensa não é coisa de intelectual. É, sim. Mais ainda: o jornalismo é, e deve ser, o livre exercício da opinião.
Você também pode dizer que o jornalista é um operário, um trabalhador da notícia, um operador de grandes engrenagens da indústria poderosa das grandes redações. Você estará certo, do mesmo jeito. Carl Bernstein e Bob Woodward são o símbolo mais notável desse modelo. A série de reportagens com a assinatura da dupla no Washington Post entre 1972 e 1974 foi crucial para desmontar, dessa vez com informação bem apurada, e não com opinião, os crimes cometidos pela cúpula do governo de Richard Nixon para espionar os adversários. No final daquele escândalo que entrou para a história com o nome de Watergate, Nixon foi obrigado a renunciar.
Enquanto Zola era um pensador maduro e consagrado, uma voz autoral, o intelectual por excelência, os dois repórteres do Post beiravam os 30 anos, eram praticamente anônimos, e davam expedientes extenuantes numa redação de nada menos do que mil jornalistas. Eram operários, sim, mergulhados integralmente num regime de trabalho industrial. Justificavam seu salário garimpando informação exclusiva, inédita, essa matéria-prima insubstituível do jornalismo. O jornalismo, portanto, também é informação. Mais exatamente, o jornalismo é a informação que o poder adoraria esconder.
Hoje, o regime de trabalho da imprensa vem admitindo variantes inovadoras e surpreendentes. Temos visto, cada vez mais, o jornalismo baseado em reportagens transnacionais, elaboradas a partir de núcleos de diferentes nacionalidades que colaboram entre si. A revelação das contas secretas (numeradas) abertas na Suíça por políticos, empresários, celebridades, traficantes e outros tipos humanos por meio de orientações do HSBC só foi possível graças à ação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês), com base em Washington. O ICIJ reuniu 140 profissionais de 45 países, em cooperação com repórteres de grandes veículos da imprensa convencional.
Mais uma vez, a imprensa age para fiscalizar e contestar o poder, como aconteceu com o caso Dreyfus e com o escândalo de Watergate. Agora, porém, os jornalistas se veem diante do desafio de investigar organismos cujos tentáculos não se confinam dentro de fronteiras nacionais. Os grandes conglomerados globalizados de bancos, gigantes do poder financeiro e também capazes de influenciar governos, são uma forma de poder transnacional. Nessa nova forma de reportagem colaborativa, os jornalistas já não operam em relações industriais de trabalho, mas se associam em uma engrenagem mais colaborativa e menos hierarquizada.
Seja como intelectual, seja como operário da notícia, seja como integrante de coletivos que se organizam fora do mercado, o jornalista que faz diferença no mundo segue cultivando a independência, a verdade, a transparência e a vigilância do poder. A imprensa segue viva, segue atuante e, claro, segue mudando. E o que será do futuro? Muitas indagações estão em aberto.
Enquanto isso, no Brasil, só o que mobiliza as entidades representativas dos jornalistas profissionais é a emenda constitucional que tornará o diploma obrigatório. Na França, nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha não existe nem nunca existiu nada de diploma obrigatório, um cacoete de país autoritário ou de ordenamentos jurídicos anacrônicos. Mas essa é, como tem sido, a obsessão nacional aqui no Brasil.
Enquanto o jornalismo de qualidade transpõe fronteiras complexas na direção de um futuro tão difícil quanto fascinante, aqui, na terra do Jeca Tatu e da saúva, querem restaurar não o Sítio do Picapau Amarelo, mas um diploma legal que foi inventado pela ditadura militar para fiscalizar jornalistas por meio do Ministério do Trabalho e que, sabiamente, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O que isso tem a ver com o intelectual na imprensa? Nada. O que isso tem a ver com o exemplo do Washington Post? Nada. O que isso tem a ver com as novíssimas dimensões do jornalismo transnacional, em rede? Nada. E, no entanto, é isso, e só isso, que acende os ânimos das nossas entidades sindicais. O diploma.
Consideradas as coisas como são por aqui, é bem possível que consigam torná-lo obrigatório outra vez. É bom (ou talvez muito ruim) lembrar que o mesmo pessoal que defende o diploma como um dever constitucional, imagine, defende também a tese excêntrica – que você só encontra no Brasil – de que jornalistas e assessores de imprensa exercem a mesmíssima profissão. Deve ser por isso que se refugiam no estatuto da reserva forçada de mercado. Será que a redação do Post nos anos 1970 diria que os homens do presidente encarregados de contestar suas reportagens eram jornalistas? Será que Zola se imaginava do mesmo lado que os encarregados de defender na imprensa a farsa montada por Félix Faure contra Dreyfus? Será que os repórteres do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos acham que os assessores de imprensa do HSBC exercem a mesma profissão que eles?
O diploma obrigatório vai ajudar a opinião livre, a informação exclusiva e a independência editorial a fiscalizarem o poder? Claro que não. Vai atrapalhar? Tomara que não. Quanto ao mais, vai entender…
Leia também
A saga do canudo – Angela Pimenta
A imprensa quer o colinho do Estado – Luciano Martins Costa
A mídia na contramão do bom jornalismo – Elstor Hanzen
Reparar o equívoco – Paulo Pimenta
Visão corporativista – Editorial de O Globo (5/6/2015)