Em meio à polarização que inflama os fóruns digitais, ganhou notoriedade uma linha argumentativa supostamente avessa a todos os flancos que porventura participem dos debates. A tendência, calcada no repúdio indiscriminado à esfera política, atrai descontentes que não querem se comprometer com programas e legendas. A eles ficou associada a alcunha “isentão”, que já entrou para o léxico informal da mídia brasileira.
Cabe esclarecer que não estamos no âmbito da relutância, da ambiguidade, da incerteza, do desinteresse e de outras reações compreensíveis diante de algum tema espinhoso. O diferencial do “isentão” reside tanto na postura incisiva, polêmica e amiúde raivosa nos debates políticos quanto na superfície retórica de objeção aos mesmos comportamentos. É uma espécie de hooligan da (falsa) neutralidade.
Claro que esse discurso é tão ideológico quanto outro qualquer. Podemos vislumbrar repertórios de valores bem marcados no seu punitivismo inflexível, no ódio à militância, no individualismo anticoletivista e meritório, enfim, numa rede simbólica ligada a práticas sociais tipicamente conservadoras, talvez mesmo reacionárias. Além disso, há ali o sintoma clássico da ideologização, o esforço para tornar um posicionamento natural, desapegado, incontroverso.
Assim como todo silêncio alude a um não-dito com certo grau de especificidade, o recurso à aparência de isenção está contaminado pelo viés que procura esconder. Ela funciona a favor de algo que precisa ser negado para garantir sua própria legitimidade junto aos interlocutores. No caso, em meio a disputas inflamadas de narrativas com vínculos eleitorais, tenta-se apagar as marcas de interesses político-partidários cujo desmascaramento quebraria o feitiço niilista da antipatia giratória.
Tais ligações sobressaem na predominância de eixos argumentativos que partem de um antagonismo radical a certas identidades políticas, mas que se tornam cuidadosamente generalizantes, perdendo a contundência e a especificidade, quando se aproximam de outras. O repúdio localizado e o desalento global formam uma estrutura discursiva coesa, fundada na sua própria incoerência, isto é, no vetor indutivo que dela resulta.
O discurso único
Como bom produto ideológico, o “isentismo” demanda adesão completa. Todas as suas manifestações se assemelham na intransigência com que defendem as respectivas linhas de raciocínio e desqualificam o espírito crítico, particularmente do cidadão politizado, estigmatizando as controvérsias que ele provoca. É fácil entender a força que adquire o antipetismo, por exemplo, nesse simulacro de intercâmbio.
O apego ao chamado “discurso único” remete à imprensa corporativa, de onde partem os enunciados que os falsos apartidários reverberam sobre si mesmos. Também o jornalismo tendencioso precisa do ramerrão da objetividade para legitimar suas preferências. O afã de escondê-las, de resto bastante suspeito, revela a tolerância que a dissimulação adquire junto ao público-alvo desses veículos.
Sintomaticamente, outro forte elo intertextual dos “neutros” vem do campo Judiciário, espécie de modelo ético daquele grupo. Na mitologia objetivista, onde os magistrados são idôneos por natureza, a repetição de quimeras igualitárias parece dirimir a prática tendenciosa que as contradiz. Delas nasce o mote favorito do cinismo antitudo, a defesa de punições judiciais isonômicas que jamais acontecem e nas quais ninguém acredita realmente.
O “isentão” personifica a falência de um programa conservador que em outras épocas teve status de plataforma eleitoral. Sem nortes programáticos, frustrados por lideranças indefensáveis, seus adeptos constroem uma nova identidade ocultando os resquícios da antiga, mantendo, porém, o mesmo conteúdo e as mesmas estratégias de persuasão. O menosprezo à democracia representativa é apenas o canal mais conveniente para essa reciclagem de velharias autoritárias.
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Guilherme Scalzilli é historiador e escritor, mestre em Divulgação Científica e Cultural. Blog: http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/